Santo Sepulcro: o local mais sagrado para os cristãos abriga seis igrejas e é guardado por muçulmanos

O templo construído sobre os lugares que simbolizam a crucificação, o túmulo e a ressurreição de Jesus é um dos locais mais sensíveis à face da Terra. Dentro do Santo Sepulcro, vivem em permanência monges de diferentes ritos cristãos. A sã convivência entre todos depende do cumprimento de um conjunto de regras estabelecidas no século XIX e ao zelo de duas famílias muçulmanas

Na época da Páscoa, a cidade de Jerusalém recua mais de 2000 anos no tempo. No Domingo de Ramos, uma procissão no Monte das Oliveiras recria a entrada triunfal de Cristo na cidade, com os fiéis a empunharem folhas de palmeira.

Na Sexta-Feira Santa, o cortejo da Via Sacra, que reconstitui o trajeto de Cristo a carregar a cruz até ao Calvário, percorre as ruas estreitas da Via Dolorosa, através dos bairros muçulmano e cristão da Cidade Velha. No domingo de Páscoa, o Santo Sepulcro — construído no século IV no local onde se crê que Jesus foi crucificado, sepultado e depois ressuscitou — torna-se o centro da cristandade.

Ano após ano, as cerimónias realizam-se com a devoção de sempre, mas nesta Páscoa, em particular, os peregrinos estão ausentes. “Não há turistas em Jerusalém, por causa da guerra. À última hora, muitas viagens começaram a ser canceladas. Só me lembro da cidade assim vazia no tempo da pandemia”, diz ao Expresso Adeeb Jawad Joudeh Alhusseini, um palestiniano muçulmano que tem um cargo único no Santo Sepulcro.

Adeeb ostenta o título de “Depositário das Chaves do Santo Sepulcro e Titular do Selo do Túmulo Sagrado”. É ele que tem a responsabilidade de guardar a chave que abre a porta do templo que abriga o túmulo de Jesus. Fá-lo no cumprimento de uma tradição — e obrigação — familiar que dura há mais de oito séculos. “Este é um trabalho honorário. Não recebemos dinheiro por fazê-lo. É um trabalho que estimamos e do qual nos orgulhamos como família”, diz.

Adeeb Joudeh Alhusseini segura a chave do Santo Sepulcro enquanto dá explicações a William, durante a visita do príncipe britânico, em 2018 GALI TIBBON / AFP / GETTY IMAGES

Os Joudeh AlHusseini são uma das famílias mais antigas de Jerusalém. Receberam a chave do Santo Sepulcro em 1187 após Saladino ter reconquistado aos cruzados aquela que é uma cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos.

Este líder muçulmano garantiu que o Santo Sepulcro mantivesse o seu caráter cristão, recusou transformá-lo numa mesquita e facilitou o acesso de peregrinos. Mas temendo que, entre os fiéis que rumassem à Terra Santa, pudessem estar soldados infiltrados com a intenção de tomar a igreja, ele ordenou que a chave do Santo Sepulcro fosse dada a uma família nobre muçulmana.

“Se eu tivesse rezado na igreja, ela estaria perdida para vocês, uma fez que os crentes [muçulmanos] ter-se-iam apropriado dela dizendo: ‘Omar rezou aqui’.”

Califa Omar para Modesto, patriarca de Jerusalém, na década de 630, após se ter recusado entrar no Santo Sepulcro

A honraria atribuída aos Joudeh AlHusseini consta de firmões (decretos) emitidos por sucessivos sultões que governaram Jerusalém, atualmente guardados nos arquivos otomanos, na Turquia, e que atestam a história desta família.

Hoje com 59 anos, Adeeb tinha oito quando o pai lhe confiou as chaves do Santo Sepulcro pela primeira vez. Jawad, o seu filho mais velho, atualmente com 26 anos, será o seu sucessor nesta missão famíliar. A segurança da chave não lhe causa particular ansiedade: “Tenho um cofre em casa”, revela.

O momento de abertura da porta do Santo Sepulcro atrai muitas atenções HAZEM BADER / AFP / GETTY IMAGES

Com algumas exceções, a alta e pesada porta do Santo Sepulcro abre, diariamente, às 4h. Esse momento obedece a um ritual coreográfico que atrai muitos curiosos. Em representação dos Joudeh AlHusseini, Adeeb traz a chave e entrega-a a um membro de outra família muçulmana — os Nusseibeh —, que são basicamente os porteiros do Santo Sepulcro.

Wajeh Nusseibeh bate na aldraba, sinalizando para dentro do Santo Sepulcro que é hora de abrir a porta. Do interior, alguém faz passar uma escada para o exterior, através de uma pequena janela rasgada na porta. Nusseibeh sobe a escada até à altura da fechadura e destranca-a. Depois desce a escada, destrava a fechadura inferior e devolve a chave a Adeeb AlHusseini que a guarda até ao dia seguinte.

Às 21h, quando o Santo Sepulcro encerra, só o porteiro intervém já que a chave não é necessária. Todo o cerimonial de abertura pode ser visto no vídeo abaixo.

Quando o templo está fechado, há vida no interior. “Dentro do espaço de Santo Sepulcro, há três comunidades que vivem lá, fazem a sua vivência religiosa, as suas expressões cultuais”, explica ao Expresso João Lourenço, Professor catedrático emérito da Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.

As igrejas que têm monges em permanência dentro do Santo Sepulcro são os ortodoxos gregos, os católicos latinos (franciscanos) e os ortodoxos arménios.

“Procuram conviver dentro daquilo que significa expressões culturais convergentes e, ao mesmo tempo, matrizes de expressão diferentes que resultam muito do acumular de questões históricas e locais da proveniência dos próprios crentes desses ritos”, acrescenta este padre franciscano.

“Cada comunidade religiosa pode receber visitantes”, explica Adeeb AlHusseini. “Os monges e seus convidados fazem orações noturnas até de madrugada. Eu chego às 4h, abro a porta e as orações continuam até as 8h.”

O Santo Sepulcro é visitado por fiéis de vários ritos cristãos LATIFEH ABDELLATIF / AFP / GETTY IMAGES

Além das igrejas que vivem dentro do Santo Sepulcro, outras três confissões cristãs estão presentes no complexo desta igreja: os coptas egípcios, os ortodoxos etíopes e os ortodoxos siríacos. Vivem nas redondezas da basílica e têm direitos limitados no acesso a determinadas zonas do mausoléu.

“Tudo isto é um acumular de tradições, de vivências, de expressões culturais de séculos”, acrescenta João Lourenço. “E é um pouco na diferença entre o objetivo comum que todos têm e as tradições que todos e cada um acumulam que se encontra o sentido para a existência de um decreto que tenta regulamentar as convivências” — o Status Quo, firmado em 1852.

Este decreto estabelece orientações que levem a um equilíbrio, a uma situação de justiça e a uma convivência sã e ordenada entre as diferentes confissões cristãs na Terra Santa. E reflete-se na vida dentro de lugares religiosos de significado histórico como o Santo Sepulcro, em Jerusalém, ou a Igreja da Natividade, em Belém.

O Status Quo detalha a divisão do espaço físico (capelas, túneis, grutas), coordena os serviços litúrgicos, os horários das orações, os direitos de circulação através das várias secções, as áreas partilhadas e as que são de uso exclusivo.

Contribui, em teoria, para criar harmonia e reduzir o potencial de conflito entre as várias igrejas. Nenhuma pode fazer alterações dentro do Santo Sepulcro — fazer obras ou mudar o horário de uma procissão, por exemplo — sem a concordância das outras.

Em 1852, quando este decreto foi firmado, o mundo estava tomado pela tensão entre o Império Russo e o Império Otomano que levaria à Guerra da Crimeia (1853-1856).

“Nessa guerra, as confissões cristãs orientais tomaram partido. A Rússia protegia muito os ortodoxos russos na Terra Santa, o que nem sempre ia ao sabor dos ortodoxos gregos”, explica João Lourenço, doutorado pela Pontifícia Universidade Antonianum, de Jerusalém, onde estudou no início da década de 1980. “Perante esse acentuar das tensões, o Império Turco procurou regulamentar essa vivência interna para que não houvesse conflitos latentes.”

A “escada imóvel” é o que melhor simboliza o Status Quo. Está colocada na fachada do edifício desde a primeira metade do século XVIII. Não se sabe quem a pôs ali e ninguém lhe toca para não criar fricções ALBERTO PIZZOLI / AFP / GETTY IMAGES

Na prática, a convivência nem sempre é tão clara como no papel. A 9 de novembro de 2009, a polícia israelita teve de entrar no Santo Sepulcro para sanar confrontos físicos entre ortodoxos gregos e arménios, durante uma procissão dos últimos junto a Edícula (túmulo de Jesus). Os gregos exigiam a presença de um dos seus monges temendo que os arménios usassem a procissão para subverter os termos acordados de acesso ao local.

Na atualidade, há uma disputa declarada em torno de uma pequena igreja localizada no telhado do Santo Sepulcro — Deir al-Sultan —, reclamada pelos ortodoxos etíopes e pelos coptas egípcios. No verão de 2002, num dia particularmente quente, um religioso egípcio (copta) moveu a cadeira colocada junto à entrada do telhado uns centímetros para fugir do sol, o que foi interpretado como um ato hostil e uma violação dos limites acordado. Sete monges etíopes e quatro egípcios foram hospitalizados na sequência de confrontos.

O Expresso pergunta a Adeeb se já testemunhou conflitos entre as diferentes igrejas. “Essa é uma pergunta embaraçosa para mim, que não gosto de interferir na privacidade dos outros. Perdoe-me, as comunidades estão autorizadas a responder, mas estou fora desse assunto”, respondeu, assumindo uma posição neutral entre as várias denominações cristãs.

A pluralidade religiosa na Terra Santa e, em particular, a complexidade cristã “é fruto de muita história acumulada”, conclui o padre João Lourenço. O modelo de coexistência praticado numa região tão vulnerável a tensões e disputas tem evitado males maiores.

(FOTO Procissão de Domingo de Ramos, junto à Edícula, que abriga o túmulo de Jesus, no interior da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém MOSTAFA ALKHAROUF / ANADOLU / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de março de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui e aqui

Nowruz Mubarak! O novo ano persa começou esta quinta-feira: seguem-se 13 dias de fogueiras, piqueniques e mesas com ‘sete ésses’

Para milhões de pessoas de cultura persa, a chegada da primavera coincide com a entrada num novo ano. É altura de celebrar o Nowruz, festividade de 13 dias que celebra a natureza e o que dela cada um pode extrair para viver o novo ano com otimismo e positividade. Sete curiosidades sobre o Nowruz

Um iraniano participa na festa do fogo, em Teerão, um dos rituais do Nowruz ABEDIN TAHERKENAREH / EPA

Em várias regiões do globo, centenas de milhões de pessoas de cultura persa aperaltam-se, esta quinta-feira, para entrar num novo ano. Pelo calendário persa (solar), começa hoje o ano 1404.

O início das festividades — a que chamam Nowruz (“novo dia”, em língua farsi) — coincide com o equinócio da primavera. Durante 13 dias, famílias e comunidades celebrarão o recomeço (representado pela entrada num novo ano) e o renascimento (simbolizado pelo ciclo de renovação da natureza que a primavera representa).

A cada pessoa, individualmente, o Nowruz convida à reflexão e proporciona uma oportunidade para recarregar energias.

ASSIM FALOU ZARATUSTRA

As raízes do Nowruz remontam ao Zoroastrismo, religião muito antiga que o Império Persa (550 a.C.-651 d.C.) — de que a República Islâmica do Irão é herdeira — tornou religião oficial. Esse credo foi fundado por Zoroastro, profeta também conhecido como Zaratustra, que terá vivido ainda antes de o império se afirmar.

No Zoroastrismo, o Nowruz tem um significado profundamente espiritual e cósmico. Segundo a tradição, a festividade significa o regresso a um espírito que esteve ausente durante os meses do inverno e simboliza o triunfo do bem sobre o mal, da alegria sobre a tristeza, da luz sobre a escuridão.

DA TURQUIA AO AFEGANISTÃO

Nowruz é celebrado por grupos étnicos que habitam territórios ao longo da antiga Rota da Seda. É o caso de iranianos, paquistaneses, afegãos, turcos, tajiques, curdos e também os tártaros da Crimeia, território ucraniano que a Rússia invadiu e anexou em 2014.

Nalguns países da Ásia Central, Médio Oriente, Cáucaso e Balcãs, é feriado nacional. Naturalmente, o Nowruz é também assinalado um pouco por todo o mundo no seio das comunidades de origem persa na diáspora.

Quando esteve na Casa Branca, Barack Obama assinalou a data, anualmente, com uma mensagem dirigida ao povo e às autoridades do Irão. Nesta, em 2013, mostrou-se esperançoso de que Estados Unidos e Irão pudessem “ir além das tensões” e “ultrapassar décadas de desconfiança”.

‘ABANAR A CASA’

Apesar de o tiro de partida para os 13 dias de festa ser dado apenas pelo equinócio, os preparativos começam com semanas de antecedência.

Para entrar no novo ano com o pé direito, há que ter a consciência limpa e a casa num brinco, pelo que uma das tarefas prioritárias é uma limpeza a fundo — um ritual chamado Khane-takani, que significa “abanar a casa”.

Na prática, são feitas intervenções não tão quotidianas como lavar os tapetes, limpar o quintal, arrumar o sótão, livrar-se de tralha e até pintar a casa.

Tudo contribui para criar a sensação de um recomeço limpo e fresco. E as casas ficam asseadas para receber familiares, como também é tradição no Nowruz.

A MESA DOS SETE ‘S’

Nas casas, o convívio familiar faz-se à volta de mesas fartas e decoradas a preceito. Uma das principais tradições do Nowruz passa por compor uma mesa com sete objetos, todos com nomes começados pela letra S — os haft sin (sete ésses, em farsi). Cada um deles representa desejos para o novo ano.

  • Sabzeh (rebentos de trigo, cevada ou lentilhas cultivados num prato uma ou duas semanas antes do Nowruz) simboliza o renascimento e o crescimento.
  • Samanu (pudim doce feito de trigo) representa a doçura e a fertilidade.
  • Senjed (fruta seca de oleastro) visa despertar o amor.
  • Seer (alho) simboliza a medicina e a saúde.
  • Seeb (maçã) invoca a beleza.
  • Somagh (sumagre) simboliza o nascer do sol e o recomeço.
  • Serkeh (vinagre) simboliza a idade e a paciência.

A composição da mesa pode diferir de região para região e, frequentemente, há outros objetos: espelho (autoconhecimento e reflexão), moedas (riqueza), relógio (tempo), ovos pintados (fertilidade, criação e renovação da vida), peixes dourados (vida e movimento), velas (luz, sabedoria e esperança), jacintos (chegada da primavera) e um livro de sabedoria, geralmente o Alcorão, mas também pode ser um livro de poesia.

Este ano, o Nowruz coincide com o mês sagrado do Ramadão, pelo que as refeições têm de esperar pelo pôr do sol.

NOITE DAS FOGUEIRAS

Na última quarta-feira do ano que finda, realiza-se o Charshanbeh Suri ou noite da fogueira. Trata-se de uma celebração comunitária em que as pessoas saltam por cima de fogueiras acesas em praças públicas para purgar as negatividades do ano que fica para trás.

À volta das fogueiras, interpretam-se canções tradicionais e realizam-se danças. No ar, há fogo de artifício. Há também quem vá de porta em porta pedir iguarias, recebendo geralmente frutos secos.

O fogo é um elemento importante no Zoroastrismo, que considera que o deus do bem é adorado mediante o fogo sagrado mantido aceso pelos sacerdotes nos templos. Por essa razão, a cremação não é permitida para que esse elemento natural não seja contaminado.

Neste dia, há famílias que aproveitam para reabastecer o seu domicílio de água, num gesto associado à ideia de purificação e à saúde.

FIROUZ, O ENTERNAINER

Na época do Nowruz, sai à rua Haji Firouz, uma personagem imaginária do folclore iraniano. Veste-se com roupas vermelhas brilhantes e um chapéu de feltro e tem o rosto coberto de fuligem. Entretém os transeuntes com cânticos tradicionais, danças e a tocar pandeiretas, em troca de algumas moedas.

PIQUENIQUES NA NATUREZA

O 13.º e último dia do Nowruz é dedicado à natureza (Sizdah Bedar). Tradicionalmente, as pessoas passam o dia fora de casa, em parques, nas margens de rios ou em campos, para desfrutar do meio ambiente, ouvir música, jogar ou simplesmente passar o tempo à conversa com familiares e amigos.

Este dia é também aproveitado para atirar aos cursos de água o sabzeh, os rebentos plantados num prato e colocados na ‘mesa dos sete ésses’. Acredita-se que estas plantações absorveram as agruras do ano que termina pelo que, com este gesto simbólico de as atirar à água corrente, afastam a má fortuna do novo ano.

No Irão, em alturas de manifestações populares e tensões com as autoridades, estes momentos relaxados ao ar livre são aproveitados para atitudes de desafio às regras conservadoras impostas pelos ayatollahs. Não raras vezes, homens e mulheres dançam uns com os outros. E os lenços (hijabs) de muitas mulheres, de uso obrigatório no país, descaem da cabeça para os ombros e deixam os cabelos à mostra.

No Irão, o Nowruz é uma celebração secular que resiste ao espartilho social e cultural que decorre da Revolução Islâmica de 1979. Os seus rituais estão firmemente enraizados na cultura iraniana e são cumpridos por cidadãos de todas as religiões e origens étnicas. Trata-se de uma celebração nacional e não religiosa, que o regime teocrático aceita como feriado oficial.

A Organização das Nações Unidas reconheceu o poder do Nowruz como cimento cultural da resiliência e sustentabilidade das sociedades e inscreveu-o na Lista de Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO.

“Nestes tempos de grandes desafios, o Nowruz promove o diálogo, a boa vizinhança e a reconciliação”, defendeu o secretário-geral da ONU, António Guterres.

A 21 de março de cada ano, é celebrado o Dia Internacional do NowruzNowruz Mubarak!

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de março de 2025. Pode ser consultado aqui

Dia Internacional da Educação: Em Gaza, os livros são usados para acender fogueiras onde as pessoas cozinham e se aquecem

Na Faixa de Gaza, não há razões para celebrar o Dia Internacional da Educação, que se assinala esta sexta-feira. Escolas e universidades são alvos de guerra e, pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano. Asma Mustafa, uma professora de inglês que já se deslocou oito vezes, tenta contrariar as adversidades

Asma Mustafa é professora de inglês na Faixa de Gaza desde 2008 CORTESIA ASMA MUSTAFA

A guerra está a tornar a escola uma memória cada vez mais longínqua para centenas de milhares de jovens da Faixa de Gaza. Pelo segundo ano letivo consecutivo, não há aulas no território palestiniano.

A esmagadora maioria das escolas e universidades foram arrasadas e as que se aguentaram de pé deixaram de ser centros de estudo e transformaram-se em abrigos para deslocados.

Na ausência de educação formal, o conhecimento continua a transmitir-se graças a pessoas determinadas como Asma Mustafa. Esta professora de inglês de 38 anos, que até ao início da guerra trabalhava numa escola pública para raparigas, no norte de Gaza, desenvolveu uma iniciativa ao estilo de “primeiros socorros educativos”.

“A educação parou desde o 7 de Outubro e ninguém se preocupou mais com as crianças de Gaza. Fiquei muito inquieta pelo facto de os alunos ficarem sem aulas pelo segundo ano consecutivo. É algo muito difícil de aceitar para uma mãe e professora”, diz ao Expresso Asma Mustafa, mãe de duas meninas pequenas.

“Ao mesmo tempo, comecei a olhar à minha volta, nos abrigos e nos acampamentos de deslocados… As crianças estavam perdidas. Segui o meu coração e o meu dever, enquanto professora e mãe para com as crianças deslocadas que me rodeiam, e decidi tornar-me a escola delas”, partilha. “Assumi a responsabilidade de começar a ensiná-las de forma espontânea.”

A professora improvisa salas de aula em todos os locais para onde é deslocada
CORTESIA ASMA MUSTAFA

Cerca de um mês após o início da guerra, a professora empreendeu uma iniciativa educativa a que chamou “Uma História Por Dia”.

“Conto histórias às crianças, histórias com uma lição de vida ou uma mensagem. Histórias que lhes deem força e transmitam ensinamentos sobre a vida. Quero que essas histórias as levem a ter melhores comportamentos e a saber como solucionar problemas. Foco-me muito na resolução de problemas e nas competências para a vida.”

Além das histórias, Asma transmite-lhes conhecimentos básicos de inglês, árabe e matemática. Cria jogos, põe-nas a pintar e a desenhar, organiza atividades de grupo, dá-lhes dicas de higiene pessoal (quando doenças se espalham pelos acampamentos) e promove brincadeiras, para que as crianças façam alguma descarga emocional e lidem menos mal com a sua condição de deslocados.

“Às vezes, reúno-as à volta do meu leitor de MP3. Fico feliz quando elas saltam e começam a bater palmas. Sinto os seus batimentos cardíacos”, diz. Asma ensina-as a dançar a Dabkha, a dança tradicional palestiniana, inscrita, em 2023, na lista da UNESCO de Património Cultural Imaterial da Humanidade.

Tudo contribui para as ajudar a lidar com o trauma da guerra. “Elas ficam felizes por encontrar alguém que as possa ajudar, alguém que é líder, como um professor. Elas acreditam nos professores.”

As sessões são importantes para alhear as crianças do som das bombas, do zumbido dos drones, da omnipresença da guerra, dia e noite. Permitem também que convivam entre si, criem uma rotina e alimentem a esperança de que um dia possam voltar à escola.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

“Nas sessões, também as escuto”, acrescenta a professora. “Os meus alunos estão cheios de histórias e, nas tendas, os pais não têm tempo para os ouvir”, ocupados que estão a arranjar meios de sobrevivência.

As próprias crianças não são poupadas às tarefas de emergência. As horas que deviam passar na escola, são usadas a procurar lenha para as fogueiras, a carregar jerricãs de água ou à espera de comida em pontos de distribuição.

Muitas ficaram órfãs e passam a ser ‘mãe ou pai’ de irmãos mais novos. São obrigadas a tornarem-se adultos à força.

As “turmas” de Asma são compostas por crianças que vivem nas tendas em redor da sua. À semelhança da esmagadora maioria dos habitantes de Gaza, também ela teve de fugir da casa onde vivia, no norte do território. Fala ao Expresso a partir do campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza.

“Já me desloquei por oito vezes: duas para abrigos e seis para tendas. Já me desloquei quatro vezes dentro da mesma zona humanitária, como lhe chama Israel”, diz. “Já testemunhei sete guerras antes desta, mas nunca antes tive de sair de casa, a não ser no dia 7 de outubro de 2023.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

A cada nova etapa rumo ao desconhecido, Asma leva, junto com os pertences, o material educativo que consegue arranjar, por vezes comprado a preços elevados. Chegada a um novo destino, monta “a sua escola”.

“A vida é miserável. Perdemos as casas, perdemos tudo. Agora, para cozinhar, usamos lenha, papéis, tudo o que se consegue arranjar. Povos do mundo, acordem, em Gaza cozinhamos com fogo! Os livros que havia em Gaza foram queimados para as pessoas fazerem fogueiras e poderem cozinhar alimentos”, alerta a professora.

“Mas o mais importante para mim é continuar com as crianças à minha volta. Enquanto for viva, irei ensinar, haja ou não quadro, giz, papel ou lápis. O professor é a escola. O professor é o livro. O professor é a caneta.”

Os números da destruição

Segundo o último relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), com data de 14 de janeiro, este é, até ao momento, o impacto da guerra no sector da educação:

  • 658 mil alunos não têm educação formal;
  • 12.241 estudantes e 503 funcionários educativos, incluindo professores, foram mortos;
  • 88% dos edifícios escolares (496 de um total de 564) foram destruídos ou parcialmente danificados;
  • 51 edifícios universitários foram destruídos e 57 danificados.

A 18 de abril de 2024, 25 relatores especiais das Nações Unidas expressaram grande preocupação com o padrão dos ataques a escolas, universidades, professores e estudantes, o que parecia configurar, nas suas palavras, “a destruição sistémica do sistema educativo palestiniano”.

Israel sempre rejeitou as acusações, acusando o Hamas de usar os estabelecimentos de ensino para atividades terroristas e a população estudantil como refém.

CORTESIA ASMA MUSTAFA

Quaisquer que sejam as adversidades, e em Gaza são muitas, Asma Mustafa mantém um compromisso diário com a educação, por meio de métodos de ensino originais e inovadores.

No seu website, por exemplo, ela disponibiliza “45 estratégias inovadoras de ensino de inglês como língua estrangeira”. Nos tempos da pandemia de covid-19, promoveu a iniciativa “Teachers Behind Screens” (Professores atrás de ecrãs), para treinar professores para o ensino de forma virtual.

Com o projeto “I Believe I Can Fly” (Acredito que posso voar), pôs os alunos em contacto com dezenas de países. “As crianças não estão autorizadas a viajar devido ao cerco imposto a Gaza. Estão a perder a comunicação com todo o mundo.”

Em 2020, esta professora foi distinguida com o Global Teacher Award, atribuído pela organização privada indiana AKS (Alert Knowledge Services), que se dedica ao reconhecimento de “educadores excecionais pela eminência e eficácia do seu ensino, pela sua liderança especializada e pelo seu envolvimento com a comunidade”. Em 2022 foi considerada a melhor docente na Palestina.

Formada pela Universidade Islâmica de Gaza, Asma entrou para os quadros do Ministério da Educação em 2008, quando o Hamas já controlava o território.

“Dediquei-me a ensinar as crianças por meio de uma aprendizagem ativa. Quero ajudá-las a pensar de forma crítica e profunda e não apenas a receber informação dos professores, como acontecia comigo quando estudava. Achei que precisava de mudar o método tradicional com que recebi educação. Adoro ensinar com recurso a jogos e acredito nesse tipo de ensino. Quero que os cérebros dos meus alunos estejam frescos e capazes de pensar e repensar.”

CORTESIA ASMA MUSTAFA

O contexto em que se vive em Gaza nos últimos anos — sob bloqueio desde 2007 e, desde então, sob intensos bombardeamentos de Israel, por várias ocasiões —, condena as crianças e jovens a uma carência particular. “Há uma necessidade massiva dos alunos terem mais um amigo do que um professor”, diz Asma. “Decidi ser amiga deles. Em Gaza, as crianças acreditam nos professores.”

No ano em que Asma começou a trabalhar como professora, em 2008, Gaza passou por uma guerra com Israel. “Eu era jovem, tinha 21 anos e era muito próxima dos meus alunos. Após 21 dias de guerra, voltámos às escolas e foi pedido aos professores que se dedicassem à descarga emocional dos alunos. Jogamos, brincamos, deixamos as crianças fazer desenhos e contar as suas histórias para expressarem os sentimentos.”

A mesma tarefa parece agora ser mais difícil de concretizar. “Eu não esperava que a guerra durasse 15 meses. Ninguém esperava”, admite. Por todo o mundo, crises mostram que quanto mais tempo as crianças ficam fora da escola, maior é o risco de não regressarem.

Estima-se que, na Faixa de Gaza, mais de 40% da população tenha até 14 anos. Se continuarem privados de educação, um grande segmento da sociedade fica com o futuro em risco. “Deixar de estudar durante algum tempo torna-se um grande problema. Se a guerra continuar, também o futuro da Palestina ficará perdido.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Mundo ansioso à espera de um mestre na arte de agitar águas

Donald Trump tem à espera problemas herdados e outros criados por si após ser eleito

Donald Trump venceu as eleições há mais de dois meses e, apesar de só na segunda-feira se tornar o 47º Presidente dos Estados Unidos, parece estar em funções há muito tempo. O cessante Joe Biden já pouco se ouve e muito do que Trump diz assume importância de Estado.

A imprevisibilidade com que governou entre 2017 e 2021 — que o levou a aproximar-se da Coreia do Norte, mas também a ameaçar desproteger aliados da NATO — gera agora ansiedade, potenciada pela sua tendência para simplificar a abordagem de problemas complexos. Da invasão russa da Ucrânia à cobiça do Canal do Panamá, tem-se revelado um mestre na arte de agitar águas à custa de argumentos pouco consistentes, que ele vai adaptando ao sabor da maré.

UCRÂNIA

Em março de 2023 Trump começou a dar sinais de que tencionava voltar à Casa Branca e escolheu a guerra na Ucrânia para puxar dos galões. Em entrevista à Fox News disse que resolveria o conflito “em 24 horas”, sem revelar como. Garantiu também que as negociações com Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky seriam “fáceis”. A 7 de janeiro, numa conferência de imprensa em Mar-a-Lago, refez o calendário: “Espero ter… seis meses.” A determinação em acabar com a guerra mantém-se, o que obrigou Zelensky a mudar de discurso. Se o seu Plano de Paz de 10 Pontos omitia qualquer negociação, com Trump em cena o ucraniano passou a admitir a necessidade de “meios diplomáticos” para alcançar “uma paz duradoura”. Em Moscovo, a 19 de dezembro, na sessão anual com jornalistas e cidadãos, Putin disse estar disposto a reunir-se com Trump: “Estamos prontos, mas o outro lado precisa de estar pronto para negociar e para um compromisso.”

GAZA

Com o anúncio do cessar-fogo entre Israel e o Hamas (ver texto nesta edição), Trump averbou uma vitória antes mesmo de entrar na Casa Branca. Depois de ganhar as eleições, ameaçara fazer “rebentar o inferno no Médio Oriente” se os reféns não fossem libertados antes da tomada de posse. O acordo deveria entrar em vigor na véspera. Nas negociações em Doha, no Catar, além da equipa de Biden, participou Steve Witkoff, empresário judeu que Trump nomeou enviado especial para o Médio Oriente. Foi ele quem voou de Doha até Jerusalém e forçou Benjamin Netanyahu a quebrar o shabbat para discutir o acordo. A imprensa israelita diz que a conversa foi “tensa”.

CHINA

O primeiro Governo de Trump foi marcado por uma guerra comercial e tecnológica com a China. A disputa foi tal que durante a pandemia Trump substituiu “coronavírus” por “vírus da China”. O convite a Xi Jinping para a tomada de posse (não estará) pode indiciar predisposição diferente, apesar de Trump ter escolhido um forte crítico de Pequim, Marco Rubio, para chefe da diplomacia. Em campanha, prometeu impor taxas de 10% a 60% sobre os produtos chineses. Questionado sobre o que faria se a China invadisse Taiwan, descartou a resposta militar: “Diria: se forem para Taiwan, peço desculpa, mas vou tributar-vos entre 150% e 200%.”

MÉXICO

Dos mais de 11 milhões de migrantes em situação irregular nos Estados Unidos, uma larga fatia vem do México. Após um primeiro mandato marcado pela questão do muro na fronteira sul, Trump volta à carga e promete castigar o vizinho com mais taxas aduaneiras se não apresentar serviço a conter os fluxos de migrantes e de drogas. Mas não só: “Vamos mudar o nome do golfo do México para golfo da América. É um anel lindo e cobre muito território”, propôs Trump. Há cerca de 100 dias no poder, a Presidente, Claudia Sheinbaum, respondeu sugerindo que o continente passasse a designar-se “América Mexicana”, como consta num documento antigo. “O México é um país livre, independente e soberano. Coordenámos, colaborámos, mas nunca nos subordinámos.”

CANADÁ

Trump repetiu a fórmula com o vizinho do Norte e ameaçou taxar em 25% todos os produtos importados do Canadá. “Esta tarifa permanecerá em vigor até que as drogas, em particular o fentanilo, e todos os estrangeiros ilegais deixem de invadir o nosso país!”, justificou. Justin Trudeau, o demissionário primeiro-ministro canadiano, retaliou: “Nenhum americano quer pagar mais 25% pela eletricidade, petróleo e gás vindos do Canadá.” Trump sugeriu que “a linha traçada artificialmente” na fronteira desaparecesse e o Canadá se tornasse o 51º estado da federação. Retorquiu Trudeau: “Os canadianos são extraordinariamente orgulhosos de ser canadianos. Uma das formas mais fáceis de nos definirmos é: ‘Não somos americanos’.”

IRÃO

Em 2018, Trump rasgou o acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão. Questionado sobre um putativo ataque preventivo às instalações nucleares irania­nas, respondeu: “Não falo sobre isso, é estratégia militar. Só uma pessoa estúpida responderia.” Volta ao poder numa altura em que dois pivôs regionais do Irão estão enfraquecidos: o palestiniano Hamas e o libanês Hezbollah. “Espero que Trump conduza a região e o mundo à paz e não contribua para o derramamento de sangue ou a guerra”, disse à NBC, esta semana, o Presidente iraniano, Masoud Pezeshkian. “Vamos reagir a qualquer ação. Não tememos a guerra, mas não a procuramos.”

NATO

“Há anos, quando comecei com isto, não sabia muito sobre a NATO, mas acertei. Disse que eles estavam a aproveitar-se”, recordou Trump recentemente. O magnata sempre se insurgiu contra os membros que não gastavam 2% do PIB em defesa. Chegou a dizer que encorajaria a Rússia a atacar os incumpridores. Há dias, defendeu que a percentagem deveria ser de 5% (ver texto nestas páginas).

PANAMÁ

“É uma vergonha o que aconteceu no Canal do Panamá. Jimmy Carter deu-lho por 1 dólar e eles deveriam tratar-nos bem”, acusou Trump. “A China está nas duas extremidades do Canal do Panamá. A China está a gerir o Canal do Panamá.” Para o Panamá, esta via de cerca de 80 km é o seu principal ativo económico. José Raúl Mulino, na presidência desde 2024, não quer reagir até Trump ser investido. Com sorte, este contentar-se-á com um tratamento mais favorável para os seus navios.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de janeiro de 2025, e no “Expresso”, a 17 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Marco Rubio, o latino que vai liderar a diplomacia dos Estados Unidos e tratar do “quintal da América”

Esta quarta-feira, Marco Rubio tem presença marcada no Comité de Relações Externas do Senado dos Estados Unidos para ser confirmado secretário de Estado. Pela primeira vez, a pasta será entregue a um latino, filho de imigrantes cubanos e casado com uma filha de colombianos. “A América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração”, defende um estudioso da política norte-americana para a região

Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, o secretário de Estado será um latino. Marco Rubio, o escolhido por Donald Trump para chefiar a diplomacia do país, nasceu em Miami, no seio de um casal de imigrantes cubanos.

Mario e Oriales abandonaram a ilha em 1956, três anos antes da revolução que colocou Fidel Castro no poder em Havana. El Comandante ficou no cargo 47 anos, seguidos de mais 12 com o seu irmão Raul ao leme do país.

Os Rubio continuaram pelos EUA e obtiveram a cidadania norte-americana em 1975. Mario trabalhou sobretudo como barman e Oriales como empregada de hotel. Tiveram quatro filhos — Marco foi o terceiro a nascer, a 28 de maio de 1971.

O ódio ao comunismo

Marco cresceu no seio de uma comunidade de centenas de milhares de migrantes, exilados e dissidentes políticos, obcecada com a ideia de usar todo o poder dos EUA para punir o regime castrista, nomeadamente através do voto. Nesse contexto, também ele desenvolveu um ódio ao comunismo.

Formou-se em Direito, casou com Jeanette Dousdebes, filha de imigrantes colombianos, e teve quatro filhos. Coroou o sonho americano ao entrar para o Congresso como senador, pela primeira vez em 2010, pelo estado da Florida. O seu livro de memórias tem como título “An American Son” (Um Filho Americano).

Desde a primeira eleição para o Congresso, Rubio tem merecido a confiança ininterrupta dos eleitores, em especial da comunidade cubana de Miami. Esta quarta-feira, comparecerá diante do Comité de Relações Externas do Senado para responder a perguntas dos seus pares visando a sua confirmação como secretário de Estado.

“Sob a liderança do Presidente Trump, conseguiremos a paz através da força e colocaremos sempre os interesses dos americanos e da América acima de tudo”, afirmou Rubio, a 13 de novembro, numa reação à notícia da sua nomeação em tudo consentânea com a forma egocêntrica como Trump posiciona a América no mundo.

As principais prioridades de Trump ao nível da política externa não serão muito diferentes das de Joe Biden — as guerras na Ucrânia e Gaza, e a ascensão da China — porque são questões centrais para os interesses dos EUA”, diz ao Expresso William LeoGrande, professor na Universidade Americana, em Washington DC.

“E se Rubio quiser ser candidato a Presidente em 2028, não pode ser visto como o secretário de Estado para a América Latina”, acrescentou este especialista em política externa norte-americana para a região. “Porém, a América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração.”

“Vamos ter a maior deportação. Não temos escolha”

Donald Trump, a 18 de junho de 2024, num comício em Racine, no estado de Wisconsin

Estima-se que, atualmente, vivam nos EUA mais de 11 milhões de migrantes em situação irregular — 3% da população total. A maioria é oriunda do México e do chamado Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras). Uma larga fatia vive no país há pelo menos uma década.

Para concretizar o plano de expulsão de milhões de latino-americanos, a futura Administração Trump precisa da colaboração dos países de destino, numa região politicamente fragmentada onde muitos líderes encaram com reservas o lema America First (a América primeiro) do 48.º Presidente.

Os migrantes mexicanos “enviam 65 mil milhões de dólares [63,2 mil milhões de euros] para as suas famílias no México, mas contribuem mais para os Estados Unidos porque esse valor é apenas 20% do que ali deixam, em consumo, poupança e impostos”, alertou Claudia Sheinbaum, a Presidente do México, num discurso comemorativo dos seus 100 dias no poder, assinalados a 9 de janeiro.

“Estaremos sempre de cabeça erguida. O México é um país livre, independente e soberano. Coordenámos, colaborámos, mas nunca nos subordinámos”, acrescentou a governante, que é judia e pertence ao Movimento Regeneração Nacional, de esquerda.

Se o primeiro governo de Trump, no que ao México diz respeito, ficou marcado pela questão do muro na fronteira entre os dois países, agora, além da deportação massiva de imigrantes, Washington ameaça castigar com a aplicação de tarifas alfandegárias e ações em nome do combate aos cartéis do crime.

“Enquanto os EUA continuam a enfrentar uma crise sem precedentes de fentanil e de migração ilegal, espero que a Presidente eleita [Claudia] Sheinbaum enfrente estes desafios à segurança e democracia”, reagiu Marco Rubio à vitória eleitoral da mexicana, em junho de 2024.

Há uma semana, Trump agitou as águas entre os dois países ao dizer: “Vamos mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América. É um anel lindo e cobre muito território. Golfo da América, que lindo nome, é apropriado”.

A chefe de Estado mexicana respondeu no mesmo tom e, numa das suas conferências de imprensa diárias, diante de um mapa-mundo, sugeriu que o continente americano passasse a designar-se “América Mexicana”, citando um termo que consta de um documento de 1814, anterior à Constituição mexicana.

Entre os líderes latino-americanos com quem será mais fácil Marco Rubio estabelecer comunicação está o Presidente da Argentina, Javier Milei, que o norte-americano descreveu como “uma lufada de ar fresco” quando o visitou em Buenos Aires, em fevereiro passado.

Autodenominado “anarcocapitalista”, Milei é dono de um estilo muitas vezes comparado a Donald Trump: são antigas figuras da televisão, chegaram à política com estatuto de outsider, têm uma retórica populista e um estilo não convencional e provocador.

Mal entrou na Casa Rosada, uma das primeiras medidas de Milei foi retirar o seu país da rota de adesão aos BRICS, onde está o vizinho Brasil. A Argentina tinha entrada prevista no grupo a 1 de janeiro de 2024.

Outro líder latino-americano que já mereceu elogios de Rubio é Nayib Bukele, o Presidente de El Salvador que professa o “Bukelismo”, uma combinação de populismo, pragmatismo económico, autoritarismo e centralização de poder.

Na sua primeira visita oficial ao país, em março de 2023, Rubio destacou o combate de Bukele contra a violência dos gangues e do crime organizado, um problema na origem do êxodo de milhares de salvadorenhos para os EUA.

“Sob a presidência de Nayib Bukele, um dos países mais perigosos do mundo tornou-se um dos mais seguros e promissores da região, tudo numa questão de meses”, disse Rubio. Bukele, de 43 anos, está no poder desde 1 de junho de 2019.

Em contraponto aos países apreciados por Rubio está a “troika da tirania”, como os designou o ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos John Bolton, durante o primeiro governo Trump, referindo-se a Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Na primeira Administração Trump, Washington inverteu a aproximação a Cuba que vinha sendo desbravada por iniciativa do Presidente antecessor, Barack Obama, que fez uma visita histórica à ilha dos antepassados de Marco Rubio. Este nunca se deixou levar pelas emoções, sempre pugnou pela aplicação de sanções à ilha e considerou qualquer tentativa de aproximação diplomática a Cuba um ato de ingenuidade.

“A decisão [de Obama] recompensar o regime de Castro e iniciar o caminho na direção da normalização das relações com Cuba é inexplicável”, acusou. “Cuba, tal como Síria, Irão e Sudão, continua a ser um Estado que patrocina o terrorismo.”

Igualmente, na primeira passagem de Trump pela Casa Branca, Washington reconheceu (sem sucesso) Juan Guaidó, autoproclamado Presidente da Venezuela, como líder legítimo do país. Na terminologia de Rubio, a Venezuela é a “narco-ditadura de Maduro” à qual a única resposta possível é a “pressão máxima” das sanções.

Assim que foi anunciada a escolha de Rubio para secretário de Estado, a opositora venezuelana María Corina Machado saudou a nomeação: “São excelentes notícias para toda a América Latina”, escreveu na rede social X. “O senador tem uma profunda compreensão das ameaças que regimes como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela representam para todo o hemisfério.”

A 23 de abril de 2024, num artigo na revista conservadora “The National Interest”, Marco Rubio defendeu: “A nossa região atravessa atualmente pelo menos seis grandes crises. Vão de uma migração em massa sem precedentes na fronteira sul dos EUA, ao colapso completo da ordem social no Haiti e à aceleração da opressão estatal em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela”.

Um terceiro grupo de países protagonizou, nos últimos anos, uma “onda vermelha” no continente. Foi o caso do Chile, onde Gabriel Boric, um ex-líder estudantil, é Presidente desde 2022. Rubio, fortemente pró-Israel, defendeu que “sob a presidência de Boric, o Chile tem sido uma das principais vozes anti-Israel na América Latina, mesmo antes do 7 de Outubro” e também um porto seguro para financiadores do grupo xiita libanês Hezbollah.

Outro líder incómodo em Washington é Gustavo Petro, um antigo guerrilheiro do grupo M-19, eleito Presidente da Colômbia em 2022. Rubio considerou tratar-se de uma escolha “muito perigosa” para um país que os EUA veem como um aliado no combate ao narcotráfico.

A 1 de março próximo, o Uruguai consumará outra viragem à esquerda na América Latina, com a tomada de posse de Yamandú Orsi, que venceu as presidenciais de 24 de novembro. Esse escrutínio registou uma taxa de afluência às urnas de 89,36%.

Ao longo de 2025, quatro países realizarão eleições presidenciais: Equador (9 de fevereiro), Bolívia (17 de agosto), Chile (16 de novembro) e Honduras (30 de novembro).

No passado, as políticas intervencionistas dos Estados Unidos na região levaram a que os países latino-americanos fossem genericamente designados — de forma depreciativa — “o quintal da América”.

À primeira passagem pela Casa Branca, entre 2017 e 2021 — quando os EUA tiveram como secretários de Estado Rex Tillerson, um ex-CEO da petrolífera ExxonMobil, e Mike Pompeo, ex-diretor da CIA —, Trump não realizou uma única visita oficial à América Latina, nem mesmo quando o Peru acolheu a oitava Cimeira das Américas, em 2018.

Agora, antes mesmo de assumir formalmente a presidência, já revelou interesse pela América Latina ainda que não de forma cordial. Além de prometer uma mega deportação de migrantes e de propor a mudança de nome do Golfo do México, partilhou a cobiça pelo Canal do Panamá, a via marítima artificial de 82 quilómetros que liga o Atlântico e o Pacífico.

“O Canal do Panamá é vital para o nosso país. Está a ser operado pela China. China! E nós demos o Canal do Panamá ao Panamá, não o demos à China. E eles abusaram disso. Abusaram deste presente”

Donald Trump, numa conferência de imprensa em Mar-a-Lago, a 7 de janeiro

“Trump parece ter uma visão do Hemisfério Ocidental de final do século XIX”, conclui William LeoGrande, “em que a diplomacia do canhão e a coerção económica são utilizadas para assegurar o domínio dos Estados Unidos, a fim de garantir rotas marítimas (Panamá) e minerais estratégicos (Gronelândia)”.

Para o Panamá, o Canal é o seu principal ativo económico. José Raúl Mulino, na presidência desde 1 de julho de 2024, não comentou as palavras de Trump.“Não lhe responderei até que seja Presidente”, disse.

Para concretizar o que defende, Donald Trump terá de se dedicar à América Latina como não o fez da primeira vez. Terá a seu lado Marco Rubio, atento àquilo que de positivo existe na região. Defendeu ele em abril passado: “Mesmo reconhecendo os horrores que ocorrem não muito longe das nossas costas — e fazendo o nosso melhor para os combater — devemos inspirar-nos na nova geração de líderes potencialmente pró-América no Hemisfério Ocidental”.

(IMAGEM Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA EXECUTIVEGOV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.