Um mundo mais árido

Menos mediática que um sismo ou um furacão, a desertificação causa centenas de milhares de refugiados. Para debater o problema, uma das ameaças do próximo milénio, 159 países estão reunidos no Brasil

A desertificação dos solos é um fenómeno natural não tão mediático como um terramoto ou uma inundação, não tão espectacular quanto a erupção de um vulcão, não tão devastador como a passagem de um ciclone, mas é, seguramente, aquele que maior número de pessoas afecta. Discretamente hectares de terra vão sendo consumidos pela erosão resultante quer das alterações climáticas quer da intervenção humana, tornando insuportável — senão mesmo impossível — a vida em algumas partes do planeta.

Como uma verdadeira guerra, a desertificação tem já os seus «refugiados». Os números dizem que cerca de 250 milhões de pessoas são directamente afectadas por este fenómeno e que 1000 milhões estão em risco, sofrendo já de má nutrição (ver mapa e quadro).

Para fazer o ponto da situação do avanço da «onda amarela», os 159 países signatários da Convenção de Combate à Desertificação estão reunidos desde segunda-feira no Recife (Brasil), até à próxima sexta-feira.

Refugiados ambientais

Em muitos países, o problema dos «refugiados ambientais» será um dos maiores desafios do próximo milénio.

No México — onde a desertificação atinge 85% do território — as estatísticas revelam que, anualmente, entre 700 mil e 900 mil pessoas continuam a emigrar para os Estados Unidos. No Haiti, a situação é, por natureza, ainda mais desesperante, Centenas de haitianos «empilham-se», mensalmente, nos mediáticos «boat people», com a costa da Florida no horizonte, deixando para trás um país em total desertificação. Segundo o Ministério da Agricultura haitiano, a floresta Pic Macaya — um «pulmão verde», no Sul do país — tinha, há 30 anos, 6250 hectares de floresta virgem; em 1985, já só eram 225. Hoje, a cobertura vegetal não deverá ultrapassar os 100 hectares.

Em qualquer cenário de pobreza, fome e/ou guerra, as dificuldades económicas já não justificam, por si só, o êxodo demográfico. Cada vez mais, os fluxos migratórios devem-se, também, a motivações ambientais resultantes da pressão que a improdutividade dos solos gera sobre as populações.

«Se não produzirmos carvão, não comemos…»

Os escritos experientes do comandante Cousteau testemunham bem a frágil fronteira entre a necessidade de preservar os recursos naturais e a urgência em sobreviver: «Sem petróleo disponível e sem electricidade suficiente, muitos haitianos têm apenas madeira como combustível, apesar de estarem conscientes de que os seus fogões a carvão estão, gradualmente, a dizimar as últimas árvores da ilha. ‘Nós estamos a lutar contra a fome. Se não produzirmos carvão, não comemos´, explica o carvoeiro. O resultado é um pesadelo ecológico…»

A desflorestação — paralelamente à sobreexploração dos solos, à sobrepastagem, à degradação química das terras e à utilização incorrecta de métodos de cultivo — é uma das causas de desertificação provocadas pelo homem.

Em África — onde a terra assumum carácter verdadeiramente «sagrado» no quotidiano das populações —, o abate das florestas, combinado com longos períodos de seca, é mesmo a causa primária de desertificação. Mais do que em qualquer outro lugar, é em África que é mais imperioso envolver as comunidades locais no combate à desertificação dos solos.

Mulheres de Popenguine

A este nível, o Senegal — no coração da árida região do Sahel — foi palco de uma curiosa iniciativa de sucesso. Em Janeiro de 1989, um grupo de 119 mulheres — na sua maioria mães e donas-de-casa —, naturais de Popenguine (45km a Sul de Dacar), instituiu o «Grupo das Mulheres de Popenguine para a Protecção da Natureza». Tinham como objectivo a recuperação e protecção de uma área em adiantado estado de degradação e, para tal, ergueram, ao longo de 12km, uma cerca com seis metros de largura para proteger dos incêndios toda a fauna e flora aí existente.

Passados dez anos, as consequências não podiam ser mais animadoras: Popenguine é o destino de férias favorito dos senegaleses mais endinheirados; o Presidente da República construiu aí a sua residência de fim-de-semana e, devido ao santuário mariano existente, a região tornou-se um importante centro do catolicismo em África Ocidental, atraindo, anualmente, milhares de peregrinos.

A experiência de Mossi

Mas nem sempre o envolvimento dos locais é, só por si, garantia de sucesso. Em Burkina Faso, por exemplo, a população do planalto Mossi «descobriu» o desenvolvimento quando começou a desbastar florestas para produzir lenha, para abastecimento próprio e para as zonas urbanas. Depois, transformou as clareiras em campos de cultivo, submetendo os solos a uma forte pressão, no sentido de alimentar os locais e gerar algum rendimento para os agricultores. Sem pousio, as terras ficaram exaustas e entraram em regressão.

Terceiro problema mais preocupante

Não é pois de estranhar que, num recente inquérito sobre as preocupações ambientais, a desertificação tenha sido o terceiro problema mais preocupante para os inquiridos (depois das alterações climáticas e da escassez de água doce): afinal, cerca de 40% da superfície terrestre corresponde a terras áridas, semiáridas e sub-húmidas, as mais susceptíveis à erosão e as responsáveis pela produção da maior parte dos recursos alimentares do mundo.

♦ A desertificação afecta 120 países, entre os quais Portugal, causando um prejuízo global anual de 42 mil milhões de dólares

♦ Dos 14.900 milhões de hectares da superfície terrestre
— 6.100 milhões são terras secas
— 3.600 milhões são terras secas desertificadas
— 1.000 milhões são deserto hiperárido natural

♦ Dos 6000 milhões de habitantes do mundo
— 250 milhões são directamente afectados pela desertificação
— 1000 milhões estão em risco
— 25 milhões são ‘refugiados’

♦ Em África, o continente mais afectado
— 2/3 das terras são áridas ou semiáridas
— 1/3 está ameaçado pela desertificação
— O Programa das Nações Unidas para o Ambiente estima que, desde 1950, cerca de 500 milhões de hectares têm vindo a sofrer desertificação, incluindo 65% dos terrenos agrícolas. As áreas mais afectadas são a costa mediterrânica, a região sudano-saheliana e o Sul

PORTUGAL NÃO ESCAPA

Portugal é um dos 120 países afectados pela desertificação dos solos. Quase metade do território — Leste de Trás-os-Montes, Beiras, Alentejo e Algarve — é altamente susceptível ao problema.

Trás-os-Montes e Beiras têm vindo a pagar a factura da interioridade — por isso a desertificação é, sobretudo, humana. Já no Alentejo, o problema é, essencialmente, físico, fruto da adopção, no passado, de políticas que aceleraram a degradação das terras, nomeadamente a campanha do trigo, nos anos 30 e 40.

No Algarve — onde doze dos dezasseis concelhos registam taxas de susceptibilidade à desertificação entre os 90 e os 100% —, a erosão é, essencialmente, hídrica, à qual não será alheio o volume de água gasto na manutenção dos campos de golfe. A rega de um campo de 18 buracos, por exemplo, consome, num ano, tanta água quanto um agregado de 15 mil pessoas. A tendência de degradação dos solos é ainda agravada pelo facto de, em Portugal, só 8% das terras serem de boa qualidade (contra 14% nos restantes países do Sul da Europa) e 25% terem uma qualidade moderada (contra 52%).

Em Julho, o Ministério da Agricultura anunciou uma forte aposta no regadio como estratégia proncipal de fomento da produção agrícola nacional: o investimento de cerca de 135 milhões de contos na criação de 72.500 ha de regadios, através da construçãod e poços, furos, charcas, pequenas barragens e açudes e da aquisição de «pivots» e outros sistemas de rega.

Artigo publicado no “Expresso”, a 20 de novembro de 1999