A descoberta de 58 chineses mortos no contentor de um camião em Dover (depois de um odisseia de quatro meses) chocou o Mundo e «aqueceu» o debate da imigração ilegal para a Europa. No 10º aniversário da Convenção Schengen
Alertados para a presença de um camião «suspeito», dois funcionários do porto de Dover (Sul de Inglaterra) tentaram, no domingo à noite, que a abordagem fosse tão natural quanto possível.
Habituados às situações mais insólitas, nunca lhes ocorreu, porém, estarem prestes a testemunhar a mais macabra das cenas de horror. Após abrirem as portas de um camião-frigorífico de matrícula holandesa, e abrirem caminho por entre o pequeno carregamento de caixas de tomate, que «disfarçava» a entrada do contentor, depararam com uma pilha de 58 cadáveres.
Os criminosos não deixaram impressões digitais, mas as autoridades policiais não param de apontar o dedo às mafias chinesas, «donas e senhoras» de um dos negócios mais rentáveis deste final de milénio — o tráfico de imigrantes ilegais para a Europa.
Calcula-se que esta trágica odisseia tenha começado em Fevereiro, na província chinesa de Fujian. Agentes locais das mafias da emigração ilegal terão aliciado as vítimas, com o «Eldorado europeu» no horizonte (ver texto nesta página).
Durante uma semana, estes clandestinos terão viajado de comboio até Moscovo, onde terão apanhado outro comboio até Praga. Da República Checa terão passado «a salto», pela montanha, para a Alemanha — entrando, assim, no espaço Schengen —, onde foram albergados junto de familiares ou células das mafias.
Supõe-se que este seja o grupo de chineses que, em Abril, foi encontrado em Bornem e Puurs — duas aldeias belgas, a sul de Antuérpia. Expulsos do país, foram metidos num comboio com destino a Antuérpia. Mas não foram escoltados, pelo que rapidamente se lhes perdeu o rasto.
Entregues a si próprios, os ilegais passaram, desde então, a constituir uma tentação para quem quer que fizesse da ganância o lema de vida. Já com os chineses em mira, Arjen van der Spek, um engenheiro holandês de 24 anos, acabado de sair de uma prisão espanhola, onde cumprira pena por traficar haxixe de Marrocos, criou — três dias antes da tragédia de Dover… — uma companhia de transportes com o seu nome e sediada em Roterdão.
De seguida, preocupou-se em encher um camião com a maior quantidade possível de «cabeças» — no caso, 60 pessoas, todas com menos de 30 anos, entre as quais quatro mulheres — e entregou o volante a Perry Wacker, um holandês de 32 anos, com algumas incursões no roubo de cargas.
A primeira etapa seria feita por terra, até ao porto de Zeebrugge (Norte da Bélgica); a segunda de «ferry» até Dover, a antecâmara da «terra prometida».
Um «descuido»
Mas ainda em Zeebrugge, um «descuido» tinha levantado suspeitas: o pagamento à P&O Stena Line — a transportadora marítima que assegura a rota Dover-Zeebrugge — fora feito em dinheiro, o que não era habitual.
A suspeita atraiu as atenções e novo alerta foi dado: a Van der Spek era uma empresa totalmente desconhecida. Quando, às 19h30 de domingo, o «ferry» partiu para Dover, já aí era disfarçadamente aguardado.
As quatro horas de travessia do canal da Mancha poderão ter sido fatais. Esse dia tinha sido o mais quente do ano, em Inglaterra, com o mercúrio a ultrapassar os 30ºC. Dentro do contentor, hermeticamente fechado e com o sistema de refrigeração desligado — dada a escassez de carga transportada —, o calor terá superado os 50ºC, levando à morte, por asfixia, de 58 clandestinos.
Os dois sobreviventes são agora preciosos para os 60 agentes ingleses que, juntamente com belgas e holandeses, tentam desmontar a teia criminosa.
Três pessoas detidas
O condutor, o pai deste e o dono do camião foram já detidos. O primeiro incorre numa multa de 120 mil libras (cerca de 38 mil contos) — 2 mil libras (cerca de 636 contos) por cada ilegal transportado — e já respondeu ontem em tribunal por homicídio involuntário.
Ao fim de quatro meses, os malogrados imigrantes chineses chegaram finalmente ao destino — mas mortos. «A imigração é uma guerra. Brevemente, será necessário erigir um monumento ao ‘imigrante desconhecido’», comentou «L´Unità», o diário italiano ligado aos democratas de esquerda.
Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de junho de 2000
