A cruzada pan-africana de Kadhafi

O maior paladino do pan-africanismo, o líder líbio, Muammar Kadhafi, está a tornar-se um campeão das mediações e um actor incontornável da paz em África

Muammar Kadhafi, Presidente da Líbia AZAZELOK / PIXABAY

Ao leme de um país politicamente marginalizado, o Presidente da Líbia, Muhammar Kadhafi, tem-se afirmado como um diplomata de eleição, que soma êxitos onde as diplomacias ocidentais fracassam redondamente.

No início da semana passada, os separatistas muçulmanos filipinos do grupo Abu Sayyaf libertaram seis reféns — um alemão, uma franco-libanesa, duas francesas e dois sul-africanos — do cativeiro na ilha de Jolo, no Sul das Filipinas. A libertação surgiu na sequência de 15 semanas de negociações, mediadas por uma fundação líbia, dirigida por Seif al-Islam, um dos filhos de Kadhafi.

Fontes filipinas dizem que Tripoli terá pago 1 milhão de dólares por cada refém libertado, mas a Líbia alega que apenas prometeu um pacote financeiro para o desenvolvimento da região.

Uma festa nas ruínas

A vitória diplomática foi comemorada a preceito. Na terça-feira, em Tripoli, realizou-se uma recepção aos reféns, junto às ruínas da residência de Kadhafi que, em 1986, foi bombardeada pela aviação dos EUA — matando 37 pessoas, entre as quais uma filha adoptiva.

Estiveram presentes representantes dos governos dos países de origem dos reféns e, durante os discursos, a Kadhafi — surpreendentemente ausente — foi dito tudo o ele gostaria de ter ouvido. «Esta acção positiva da Líbia só pode melhorar a relação entre os nossos países», afirmou o ministro francês da Cooperação.

Com uma diplomacia activa e influente e um mercado sem a concorrência dos EUA, a Líbia é uma tentação para a Europa. Inversamente, uma aproximação ao Velho Continente significará para a Líbia o fim do isolamento a que foi condenada, após a explosão, em 1988, de um avião da Pan Am sobre a localidade escocesa de Lockerbie, fazendo 270 mortos — da qual a Líbia foi acusada.

A afirmação política de Kadhafi chega a ter requintes de ironia. Na segunda-feira, um outro grupo rebelde filipino raptou um norte-americano. De imediato, Tripoli ofereceu os seus préstimos: «Se pudermos fazer alguma coisa para salvar a vida de um ser humano, seja americano ou europeu, não hesitaremos», afirmou o subsecretário do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Sem surpresa, os EUA exigiram a libertação incondicional do refém, afastando assim a suprema das humilhações: a hipótese de um Estado pária libertar um norte-americano das garras de um grupo terrorista.

Se nos primeiros anos do seu «reinado» Kadhafi colocou a tónica na união do mundo árabe, quando, após o embargo decretado pelas Nações Unidas na sequência do «caso Lockerbie», não sentiu a solidariedade dos irmãos árabes, converteu-se ao pan-africanismo. «África é o meu lugar natural. Os árabes de África são africanos e os árabes que vivem na Ásia são asiáticos», diz, convicto.

As etapas do sonho

Gradualmente, o sonho pan-africano foi ganhando forma. Em 1997, a Líbia financiou a criação da Comunidade de Estados Sahelo-Sarianos (Comessa) e, em Julho passado, fez aprovar o seu projecto de União Africana, na Cimeira da Organização de Unidade Africana de Lomé (Togo).

Paralelamente, tem marcado presença nos bastidores dos principais conflitos: República Democrática do Congo, Grandes Lagos, Etiópia/Eritreia, Libéria, Serra Leoa, Somália e Sudão, onde todas as facções estão, actualmente, em diálogo, após aceitarem uma proposta de Kadhafi.

Presentemente, ninguém duvida que Kadhafi é não «um» mas «o» actor incontornável das relações interafricanas. Circula bem junto dos beligerantes mais complicados e consegue acordos que ninguém acha possível. Mas para voltar ao concerto internacional terá de provar que o apoio ao terrorismo faz parte do passado.

Ontem, a Líbia comemorou o 31º aniversário da revolução que colocou Kadhafi no poder. Mais de dez chefes de Estado africanos confirmaram a sua ida a Tripoli para o saudar, discutir os desenvolvimentos de Lomé e, eventualmente, solicitar-lhe os «bons ofícios».

O futuro próximo pertence-lhe. O julgamento de Lockerbie está a decorrer e, segundo uma carta de 17 de Fevereiro de 1999 — divulgada na semana passada pelo secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan —, Kadhafi tem a garantia dos EUA e do Reino Unido que o seu nome não será beliscado.

Por outro lado, está agendada para Outubro, em Marselha, a Cimeira do Mediterrâneo. A presença de Kadhafi não é um dado adquirido, mas não é provável que deixe escapar mais uma oportunidade para negar o seu isolamento e se aproximar da União Europeia.

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de setembro de 2000