Luta pela vida no fim do mundo

Luta pela vida no fim do Mundo foi o grande desafio que Jerri Nielsen, de 46 anos, enfrentou em 1999 na base polar Amundsen-Scott, na Antárctida. Única médica responsável pelos ocupantes da base, que fica durante meses isolada do Mundo, ficou ela própria gravemente doente. Regressada mais tarde aos Estados Unidos, onde recuperou, acaba de publicar um livro no qual relata a sua dramática experiência e do qual o Expresso publica alguns excertos, num exclusivo da Talk Miramax Books

Excertos de «Ice Bound» (Fronteira de Gelo) de Jerri Nielsen *

Depois da minha vida ter entrado numa espiral descontrolada, procurei refúgio no Pólo Sul. Encontrei aventura, uma beleza indescritível e grande consolação. Foi então que descobri um cancro no peito direito… (Jerri Nielsen)

Para: Mãe e Pai
Data: 21 de Novembro 1998 11:24:45
Assunto: Cheguei
Queridos Pais,
Cheguei ao Pólo Sul. É estranho e belo. O sol brilha como um maçarico de soldar às 3 da manhã. Conduzem bulldozers pelo meio da casa. Não há nada que se pareça com isto à superfície da Terra. Estou demasiado cansada para continuar a escrever, mas queria que (… falta texto…) aqui. O Verão polar é uma estação de luz fria e incessante e o Inverno é uma estação de escuridão ainda mais fria e também incessante. O tempo é praticamente irrelevante.

Para Jerri Nielsen, a Antárctida surgia como o refúgio ideal para exorcizar os fantasmas de um passado recente que não paravam de a atormentar. Aos 46 anos, tinha acabado de sair de um divórcio traumático, que pusera fim a um casamento infeliz de 23 anos, reduzira os seus índices de confiança a zero e a afastara dos três filhos. De volta a casa dos pais, no seu Ohio natal, Jerri procura dar um novo rumo à vida. Um dia, entre um golo de chá e o folhear desinteressado de uma revista médica deixada ao acaso sobre a mesa da cozinha, pára num anúncio pedindo um médico, por um ano, para a base Amundsen-Scott, na Antárctida.

«Li e reli as palavras, e o meu coração destroçado disse-me que isso era o que eu procurava, sem o saber», afirmaria, em entrevista ao jornal britânico «The Times». Em 1977, tinha-se formado em Emergência Médica, mas há muito que se fartara da rotina dos hospitais do
Ohio. Na Antárctida nada seria monótono e não seriam
as gélidas temperaturas que a impediriam de conquistar uma nova vida.

Estava a exagerar quando disse que tinha vestido dez camadas de roupa. São cinco, no máximo.
Will faz o que lhe é possível para me preparar sobre o que me espera. Infecções respiratórias e ferimentos são coisas frequentes. As frieiras são tão comuns que ninguém deixa de trabalhar por causa disso nem se quer se abriga do frio. Os artigos comuns de primeiros socorros, como fita adesiva, são inúteis aqui: não colam. As hemorragias nasais são um verdadeiro problema devido à altitude e à baixa humidade.

O FRIO É TÃO PROFUNDO E ABSOLUTO QUE PARECE SOBRENATURAL. AO RESPIRAR, SINTO A GARGANTA ARDER E OS PULMÕES GELAR

Durante os primeiros dias no pólo, eu e o Will recebemos doentes. Will não pode deixar de rir quando digo a alguém sem pensar: «A enfermeira irá ter consigo dentro de alguns minutos». A enfermeira mais próxima fica a 1500 quilómetros de distância. Rapidamente aprendi a guardar a cabeça do estetoscópio no «soutien» para evitar causar frieiras nos doentes quando lhes levanto as suas três a cinco camadas de roupa.
(…)
Estamos agora em Fevereiro e o mundo está a mudar — posso sentir isso no ar e vê-lo nas sombras que se alongam sobre o gelo. Lentamente, o sol inicia a sua espiral descendente depois de ter atingido o zénite de Verão, de 23 graus acima da linha do horizonte.
(…)
Andamos todos a vasculhar os mantimentos que nos restam e a fazer listas daquilo que precisamos que nos seja trazido pelos últimos voos da temporada. A estação deverá fechar a 15 de Fevereiro, antes que as baixas temperaturas e as tempestades imobilizem todos os aviões de carga.

De: Jerri Nielsen
Para: Família e amigos
Data: 27 de Fevereiro 1999
Assunto: Os últimos dias do Outono
Nunca fui tão feliz nem nunca me senti mais viva. Não tenho medo de nada, pois passo os dias com amigos. Aqui ninguém tem medo de morrer, embora seja coisa certa se fizermos um longo passeio lá fora. É engraçado!
Com muito amor,
Doc Holliday

Jerri irradiava felicidade em cada e-mail que enviava. O isolamento físico a que, anualmente, a Antárctida está obrigada reforçara a coesão do grupo de 41 aventureiros — entre investigadores e pessoal auxiliar — e teve em Jerri um curioso efeito psicológico, que ela descreveu na entrevista que deu ao «The Times»: «Por uma vez na vida eu estava num local onde me sentia completa. Estava numa comunidade perfeita e era julgada pelo que podia dar e isso agradava-me: eu gostava da dependência dos seres humanos. Eu, verdadeiramente, precisava de todos e todos precisavam de mim».

AQUI, NESTE SOLITÁRIO POSTO AVANÇADO, RODEADA PELO VAZIO, ENCONTREI O LAR MAIS FELIZ QUE PODIA IMAGINAR. NÃO ME QUERO IR EMBORA

Todos os anos, a Antárctida torna-se inacessível ao resto do mundo de Fevereiro a Outubro. O frio é mais que muito e os fortes ventos levantam a neve, tornando praticamente nula a visibilidade e impossibilitando a aterragem de aviões, sob pena do sistema hidráulico do aparelho congelar. Além disso, durante seis meses do ano é noite cerrada, realçando o carácter inóspito do ecossistema que o neozelandês Bob Thomson, um cientista polar com 78 visitas à Antárctida no currículo, comparou a «um grande animal à espera de nos comer, o sítio mais hostil à face da Terra».
A estação fechou há cerca de duas semanas e estou a ler um livro na cama, esfregando distraidamente a parte de cima do peito, quando os meus dedos param sobre um pequeno caroço duro. Está perto da superfície do meu seio direito, na vertical. Apalpo-o tentando determinar o seu tamanho e possível significado. Tenho seios fibro-císticos e já antes tinha encontrado pequenos caroços. Estavam sempre relacionados com o meu ciclo menstrual e desapareciam passado algumas semanas. A minha mamografia era negativa ainda há seis meses, por isso não fico muito preocupada. Decido ficar atenta a este caroço e aguardar um mês para ver se há alterações.
(…)
Passou um mês desde que descobri o caroço no peito. Esperava que desaparecesse depois do período, como das outras vezes. Mas este continua lá e cresceu mesmo um pouco e de forma irregular. Decido esperar mais algum tempo antes de falar com alguém, até porque não posso fazer nada relativamente a isto. Se for maligno, não tenho qualquer possibilidade de iniciar um tratamento nos próximos sete meses. Isto quer dizer que ou morrerei no gelo ou pouco tempo depois de partir.

De: Jerri Nielsen
Para: Jurgen Lehman
Data: 4ª feira, 28 de Abril 1999 07:37:05 +1200
Assunto: Olá
Caro J.,
Nada acontece por aqui. Hoje atendi dois doentes, por problemas de dentes, e fiz três massagens devido a fibromiosite, o que me ocupou muito tempo.
Estou com pensamentos negros devido à minha hipoxia crónica. Também tenho um seio inchado e duro que me preocupa. Fiz uma mamografia em Outubro. Esta coisa é dura e irregular e não desaparece.
Não tenho um médico para me tranquilizar, apenas estou eu e a minha imaginação.
Adoro-te
Jerri
Doutora das Trevas

O pai de Jerri foi quem sempre mais contestou a decisão de Jerri passar um ano na Antárctida. Dizia que a responsabilidade seria enorme e que, lá nos confins, não teria ninguém que a tratasse se adoecesse.
Para impressionar a filha, dizia-lhe que ela corria o risco de ter que vir a extrair o seu próprio apêndice. Jerri respondeu, então, com uma sonora gargalhada, mal sabendo que, uns meses depois, estaria a ensinar aos seus companheiros de aventura noções mínimas de quimioterapia para a ajudar no combate a um cancro.

Tornei-me numa pessoa «do gelo». Este tipo de transformação pode acontecer a qualquer pessoa cujo coração bata ao ritmo da paisagem. É como um caso de amor com um lugar. E de todos os lugares, a Antárctica é o amante mais exigente. Os primeiros exploradores regressaram duas e três vezes até lá perderem a vida. Scott morreu enregelado; Shackleton, navegando para sul noutra expedição, alguns anos mais tarde, morreu aparentemente de ataque cardíaco. No fim, só o Gelo encerrava um significado para ele; senntia-se perdido quando regressava ao mundo.
(…)
Suponho que esta é a maior ironia da minha vida: agora que finalmente me sinto inteiramente viva, tenho de me confrontar com a possibilidade de estar a morrer.
O edema que encontrei no seio no princípio de Março não diminuiu como esperava. Agora, passados três meses, sinto também um inchaço doloroso debaixo do braço direito. Embora ainda me agarre à hipótese remota de haver outra explicação para estes sintomas, toda a minha formação médica e experiência pessoal me dizem que se trata de cancro da mama. Durante um tempo pensei que ia simplesmente manter-me calada e morrer no gelo ou pouco depois de partir. Mas agora, com a possibilidade de as minhas glândulas linfáticas debaixo do braço estarem implicadas, parece provável ficar demasiado doente para conseguir cumprir o meu serviço como médica da estação.
Chegou a altura de informar os meus patrões sobre a minha situação física. Conto em primeiro lugar ao Mike, na esperança de que ele dispense alguns técnicos do seu trabalho normal para lhes ministrar alguma formação. Se eu ficar incapacitada, a vida de alguém pode correr perigo. Nunca imaginei que fosse a minha própria. Tínhamos todos aceite e compreendido as consequências desta missão. Não há saída. Como oficial médica sei melhor do que ninguém que, em caso de doença grave, apenas podemos depender dos nossos escassos recursos. Não haverá forma de retirar feridos nem de obter mais medicamentos ou equipamentos para mim. Não estou a pedir ajuda para mim própria, mas sim autorização para preparar a minha gente para viver sem mim.
(…)
«Mike, tenho um grande edema num peito. Pode ser cancro. Já o tenho desde Março mas não te falei disto porque não há nada que se possa fazer. Mas agora tenho um tumor debaixo do braço e começo a recear o pior. Posso não viver até à abertura da estação ou posso ficar demasiado doente para trabalhar». Ele deixa-me continuar a falar. «Gostaria de escolher algumas pessoas para as ensinar a substituirem-me. Os que têm mais destreza manual e raciocínio dedutivo estão na equipa de construção ou no centro de operações da estação. Mas vão necessitar de tanta formação que preciso da tua ajuda para os tirar do seu trabalho normal». «Jerri, nós podíamos extirpar o tumor», diz Mike. (…) Penso que devias contactar o Dr. Katz (…) tem de haver alguma coisa que possamos fazer, Doutora».
Nessa quinta-feira, 10 de Junho, escrevo a Gerry Katz, o médico responsável pelas estações médicas da Antárctica, em Denver.

Jerri aconselhava-se com vários médicos, através da Internet, e todos convergiam num ponto: o único procedimento acessível à paciente era a aspiração de vestígios da massa suspeita, alojada no seu peito direito, recorrendo à penetração de finas agulhas.

A 12 de Junho, Jerri tentou a operação, usando um cubo de gelo como anestesia local e recorrendo à ajuda dos companheiros de aventura. Mas após quatro inglórias tentativas, Jerri desiste. O médico de Denver comunica o resultado a outros colegas, via Internet.

De: Gerald Katz
Para: Eric Jürgen e Harry Mahar
CC: Jerri Nielsen
Data: 14 de Junho 1999, 07:53:28 -0700 (PDT)
Assunto: caso médico
Harry e Eric,
Aqui vai informação actualizada. Infelizmente, não foi possível aspirar qualquer líquido do tumor após quatro tentativas, o que indica que a lesão é sólida.
A paciente está naturalmente preocupada e gostaria de sair do Ice ASAP, reconhecendo que isso talvez não seja possível antes do fim de Outubro. Não há opções terapêuticas para o cancro da mama no Pólo Sul. O tratamento «standard» é fazer uma biopsia e, caso seja positiva para cancro, uma ablação do tumor ou uma mastectomia. As duas últimas opções excedem as capacidades médicas funcionais no Pólo Sul, seriam um esforço épico e demasiado arriscado, dado o facto do tumor poder ser benigno.
Embora haja um sentimento de urgência, não se trata de uma emergência médica. Mas precisamos de um plano de acção no caso deste edema persistir nas próximas duas semanas.
Vou mantê-los a par da situação.
Gerry
(…)

Quando abro o e-mail na segunda-feira à noite, vejo a resposta às minhas orações:

De: Kathy Miller
Para: Jerri Nielsen
Data: 14 de Janeiro 1999, 23:09:11 +1200
Assunto: Ajuda
Olá Jerri,
Sou médica oncologista especializada em cancro da mama na Indiana University. O seu amigo Dr. Lehman (Jurgen) contactou-me sobre a sua situação. Claro que receio que ela configure um cancro primário da mama — e tenho a certeza que você pensa o mesmo. Vou falar com o meu cirurgião e anestesistas locais na conferência sobre a mama que terá lugar na manhã de quinta-feira. Antes disso, seria útil se me pudesse dar mais informações sobre a sua situação e condições.
1) Qual é a sua experiência e formação? Se não tiver formação cirúrgica, creio que não será viável qualquer abordagem cirúrgica.
2) É absolutamente impossível tirá-la da estação do Pólo Sul (ou apenas muito difícil)? Ao que sei, está no meio do Inverno polar e a estação está fechada.
3) Nem vale a pena perguntar se tem acesso a alguma quimioterapia, mas haverá opções de tratamento hormonal?
Fico a aguardar ansiosamente notícias suas. Vou discutir a sua situação com o meu cirurgião assim que possível.
Kathy Miller

Em resposta a Kathy Miller, Jerri informa que os únicos tratamentos hormonais disponíveis na base são Premarin, Provera e pílulas anticoncepcionais há muito tempo fora de validade. Mas Jerri Nielsen refere a possibilidade de recurso a um sistema de vídeo ligado ao microscópio que permite o envio de fotografias e ‘slides’, bem como a possibilidade de aviões largarem pacotes sobre a base Amundsen. E, sem perder o humor, refere que se pudesse escolher um desses «presentes» caídos dos céus, escolheria… um cirurgião.

Kathy respondeu-me logo de seguida. Concorda que não é boa ideia tentar extirpar o edema ou iniciar quimioterapia antes de termos um diagnóstico confirmado de cancro. Quer explorar a possibilidade de uma biopsia e do envio de imagens por microscópio vídeo. Se for viável um abastecimento por ar, ela quer enviar-me medicamentos que impeçam a produção de estrógenos. A terapia hormonal poderia impedir o alastramento do cancro, mas também me levaria a uma menopausa prematura; ficaria sujeita aos acessos de calor, perda de libido, pele seca e alterações de humor por vezes associadas à menopausa natural, mas seria pior.
Com esse pensamento agradável presente, escrevo à família e aos amigos para lhes dar a terrível notícia. Tinha-me abstido de lhes dizer alguma coisa sobre a doença até ser absolutamente necessário, porque sabia que os ia preocupar. Ao mesmo tempo, Big John escreveu ao seu congressista e aos senadores pela Califórnia pedindo-lhes para apoiarem um lançamento por pára-quedas de equipamento médico e de um cirurgião da força aérea no Pólo Sul para me ajudar.
Agora que os membros do Congresso vão ouvir falar numa «mulher com um tumor na mama» bloqueada no Pólo Sul, não tenho dúvidas de que a Imprensa falará no caso muito em breve, portanto tenho de informar antes a família e os amigos.
Pela primeira vez retiro os endereços de e-mail dos meus filhos da minha lista de endereços «família e amigos». Não quero que eles saibam por e-mail que a mãe tem um cancro, assumindo que o meu ex-marido os deixe ler as mensagens. Peço à minha mãe que lhes telefone.
A biopsia é marcada para terça-feira, 22 de Junho, que por acaso coincide com o solstício de Inverno. Temos apenas alguns dias para arranjar um esquema para fazer uma coisa que nunca havia sido experimentada antes: fazer uma transmissão vídeo em directo para os médicos em Denver, retirar tecido do tumor, transferir o tecido para lamelas, tingi-las para ver as células e depois transmitir as imagens das lamelas para os Estados Unidos através de um microscópio vídeo especial.
A parte mais fácil será realizar a biopsia, que é semelhante a uma aspiração mas requer uma agulha grande e uma técnica mais agressiva. Dei formação a alguns colegas para trabalharem com o equipamento biomédico e realizar actos médicos simples, como suturar e administrar soro. Do grupo escolhi Welder Walt para me ajudar na biopsia. Doze anos antes, ele tinha recebido formação de enfermeiro militar. Bill Johnson, o contramestre de carpintaria, também me vai ajudar, já que tem experiência em suturar cavalos. Temos instruções pormenorizadas da inventora do sistema: telefona-me por telefone satélite para me dizer o que fazer. É muito simpática e tem grande sentido de humor. Pergunta-me se tenho cubos de gelo para anestesiar a pele! Asseguro-lhe que não há falta de gelo nas redondezas. Não posso tomar tranquilizantes nem analgésicos porque é ilegal prescrever substâncias controladas a si próprio. Portanto, vou confiar no gelo e na lidocaína para aguentar as dores.

AGORA QUE FINALMENTE ME SINTO INTEIRAMENTE VIVA, TENHO DE ME CONFRONTAR COM A POSSIBILIDADE DE ESTAR A MORRER

Entretanto, eu e Walt praticamos a nossa técnica. Wendy consegue «desviar» alguns vegetais e um dia ou dois antes da biopsia sentamo-nos a uma mesa para praticar, introduzindo agulhas numa maçã, num inhame ressequido e numa batata seca.
A certa altura, Walt pergunta-me se estamos a trabalhar numa maçã ou num pêssego. «É uma maçã», digo olhando para ele. Walt abana a cabeça. «Estou há tanto tempo fora da sociedade que já não me lembro dos nomes dos frutos e dos legumes».
Embora o nosso fornecimento de seringas deixe muito a desejar, porque congelaram e perderam o selo, em breve temos a certeza de que conseguiremos obter tecido celular suficiente para o podermos analisar. Convoco Ken Lobe, que foi técnico de laboratório
durante a guerra do Vietname, para tingir as lamelas. Estamos um tanto preocupados com esta acção porque a única tintura que temos está fora de prazo.
Quanto às transmissões por vídeo e às ligações via satélite, temos a sorte de ter um grupo de génios residentes que estão ansiosos por um desafio. O ASA assegurou a intervenção do Dr. Karim Sergi, citologista, que a partir de Denver ajudará a dirigir a biopsia e a interpretar os resultados.

A PARTE MAIS FÁCIL SERÁ A BIÓPSIA. PARA ME AJUDAREM, ESCOLHI WALT, ANTIGO ENFERMEIRO MILITAR, E BILL, CONTRAMESTRE DE CARPINTARIA

Sensivelmente um mês após a biopsia, e já com a certeza de que padecia de um cancro na mama, Jerri inicia as sessões de quimioterapia. Dias antes, um avião da Força Aérea norte-americana largara sobre a base seis pacotes com equipamento médico e abastecimentos. Uma máquina de ultra-sons, cujo pára-quedas não abriu, ficou irremediavelmente danificada após o impacto com o solo.

A pouco e pouco, Jerri foi perdendo o cabelo e acumulando cansaço, devido aos tratamentos e ao facto de ter de assegurar os cuidados médicos a quem ficasse doente. Paralelamente, a falta de luz solar, as baixas temperaturas e a altitude polar tornavam Jerri cada vez mais débil e vulnerável. Era uma lutadora, por natureza, mas o tempo começava a escassear.

A 16 de Outubro, duas semanas antes da data em que os voos são habitualmente retomados, dá-se a operação de resgate. Jerri não podia esperar mais. Um Hercules LC-130 da Força Aérea dos EUA aterra na base, onde só pode ficar poucos minutos — e com os motores a trabalhar —, sob o risco de não voltar a levantar. No meio de um vendaval de neve, com uma temperatura de 60 graus negativos e visibilidade reduzida, Jerri é resgatada do seu gélido exílio. A operação dura 22 minutos. «Foi a aterragem mais perigosa que eu alguma vez fiz», desabafaria depois George McAllister, o experiente piloto, que já voava há 11 anos para o Pólo Sul.

Estação Amundsen-Scott, Pólo Sul. 16 de Outubro de 1999. Hoje é o dia do meu último passeio de trenó na Antárctica — desde a cúpula incrustada no gelo onde vivi durante 11 meses até à beira do campo de aviação que surge do meio dos montes de neve. Normalmente percorreria a distância a pé em poucos minutos, mas estou demasiado fraca. Estou embrulhada em tantas camadas de roupa que mal me posso mexer. Tinha o cabelo comprido e louro quando cheguei ao Pólo, mas agora a minha cabeça está completamente careca e aconchegada como um ovo numa macia touca de lã debaixo do capuz.
Uso óculos de neve e um cachecol que vai até aos olhos e impede que a minha pele congele. Estão quase 60 graus abaixo de zero.
Não sei dizer se estou assustada ou aliviada. Estou doente e muito possivelmente à beira da morte. Ao noticiarem a minha situação difícil, os jornalistas referiram-se ao Pólo Sul como o «inferno na terra». Ficariam surpreendidos se soubessem como a Antárctica me pareceu bela, com as suas ondas de gelo numa centena de matizes de azul e branco, o seu negro céu de Inverno, as suas encantadas rodas de estrelas. E como eu não tinha medo.
Aqui, neste solitário posto avançado, rodeada pelo vazio prodigioso do planalto polar, num mundo despido de ruído e de confortos inúteis, encontrei o lar mais feliz que podia imaginar. Não me quero ir embora.

Chegada aos EUA, Jerri Nielsen deu entrada no hospital da Universidade de Indiana, onde foi tratada com êxito. Presentemente, vive sem a sombra desse tumor e planeia voltar à neve — ao Alasca ou à Gronelândia — para missões idênticas à que exerceu no Pólo Sul.

Para trás ficou a Antárctida e as recordações de uma vida que recomeçou ao confrontar-se com a morte.

* «Ice Bound», de Jerri Nielsen, é um ©2001 Talk Miramax Books

Artigo publicado no “Expresso Revista”, a 10 de fevereiro de 2001