Génova foi o palco da última grande manifestação antiglobalização. Um grupo de portugueses marcou presença. Reportagem em Génova

Lisboa tinha ficado para trás há mais de 30 horas quando o “autocarro da resistência” foi tomado pela primeira grande discussão. “Como é, tiramos a bandeira ou não?” Eram oito da manhã de sábado passado. Desde que arrancara de Lisboa, ao início da madrugada do dia anterior, o autocarro atravessara Portugal, Espanha e França com uma pequena bandeira cor-de-rosa do Bloco de Esquerda (BE) orgulhosamente colada no vidro do primeiro andar.
A bordo, 51 jovens portugueses — vindos de Lisboa, Porto, Coimbra e Faro, quase todos militantes do BE — seguiam para Génova, para a manifestação internacional antiglobalização. A proximidade com a fronteira franco-italiana levantou a dúvida acerca da oportunidade da bandeira. Dificilmente o autocarro não seria mandado parar, a questão era saber se a bandeira não dificultaria ainda mais as coisas. “Deixa ficar. Afinal, o que não falta, dentro do autocarro, são indícios de que vamos para Génova”, foi a posição que acabou por prevalecer.
Mas não seria por causa da bandeira que o autocarro ficaria imobilizado durante cerca de uma hora na fronteira de Ventimiglia. Era nas fronteiras internacionais que funcionava o principal filtro do tráfego que ia para Génova. Por isso, sem surpresa, todos os autocarros eram mandados parar.
Os “carabinieri” entram no autocarro português e recolhem as identificações dos passageiros. No exterior, as bagagens são retiradas da mala e alinhadas no chão. Dezenas de sacos, bolsas e mochilas são abertos e revistados por alto. Junto dos jovens, não há receio, apenas impaciência: “Isto é só para atrasar. Nem estão a ver aquilo como deve ser.” Mais ao lado, um “carabiniero” tenta deitar água na fervura: “Mais vale prevenir do que remediar.”

Alguns papéis mais suspeitos são traduzidos, com a ajuda de um agente brasileiro. Um saco com vídeos, livros, autocolantes, isqueiros e panfletos do BE causa alguma apreensão. A Polícia italiana quer ver o conteúdo dos vídeos, e é com algum gozo que os jovens portugueses observam os “carabinieri”, no interior do autocarro, a verem os tempos de antena do BE, ao mesmo tempo que divagam sobre o potencial de perigo das palavras de camaradas como Francisco Louçã ou Boaventura Sousa Santos à medida que vão surgindo no ecrã da televisão.
Quilómetros antes, ainda no lado francês, numa primeira barragem policial, a gargalhada soltara-se com igual facilidade. Após uma revista ao interior do autocarro, um guarda francês apreendera um exemplar do “Combate”, o jornal oficial do Partido Socialista Revolucionário (PSR). Mas a artificialidade do gesto foi tão evidente que o guarda nem se inibiu de sorrir e de posar para a fotografia, simulando que estava a ler o pretenso objecto de delito…
O autocarro acabaria por deixar o posto fronteiriço italiano sem problemas. Menos sorte teve um outro que vinha da Catalunha, igualmente com destino a Génova, que já lá estava quando os portugueses chegaram e que ainda lá ficou quando partiram.
Com pontualidade britânica, o autocarro português entra em Génova às 13h30 de sábado, exactamente 36 horas depois de ter partido de Lisboa. A ânsia de integrar a manifestação é grande, e rapidamente os jovens organizam-se atrás de uma faixa de protesto — “Pela globalização das lutas” —, munidos de coloridas bandeiras do BE e do PSR. Uma carrinha que vai a passar pára e previne que a Polícia anda a pulverizar a cidade com gás lacrimogéneo.

Os portugueses começam a marchar com a sensação de que a tarde não vai ser fácil. Pelo caminho, vão ensaiando “gritos de guerra”, até surgirem os primeiros obstáculos. É difícil circular, a maioria das ruas está bloqueada por cordões policiais, enormes contentores ou densas nuvens de gás lacrimogéneo. O som dos helicópteros da Polícia intensifica o clima de tensão, e é no meio de alguma desorientação que os portugueses lá conseguem intersectar o gigantesco cortejo antiglobalização.
Ao grito de “Repressão policial, terrorismo oficial”, os bloquistas são recebidos com uma estrondosa ovação. Um grupo de ingleses e irlandeses abre espaço, e o reforço português passa a desfilar, oficialmente, na “manif” de Génova, atrás dos curdos. Os primeiros momentos são de deslumbre. “É impressionante”, “Nunca vi nada assim”, “Isto está com um ambiente excelente”, é o que se vai ouvindo um pouco por todo o lado. Há centenas de cartazes e de faixas de protesto, mas nem uma única bandeira nacional: “Estas questões são universais”, afirma-se convictamente.
Vive-se o primeiro momento de entusiasmo geral quando corre o boato de que a cimeira do G8 tinha sido cancelada. Mas seria o povo de Génova que estaria na origem da maior euforia da tarde. Em cada edifício, várias janelas vão-se abrindo, ao ritmo da marcha, e os moradores empenham-se em refrescar os manifestantes com mangueiras, bacias ou garrafas de água. Durante os dias que antecederam as manifestações, Génova foi caracterizada como uma cidade-fantasma, abandonada pela sua população, pretensamente de costas voltadas para os protestos antiglobalização. Contrariamente, os manifestantes acabaram por testemunhar que as mesmas pessoas que, na véspera, tinham fechado as portas a sete chaves para sobreviverem à jornada de violência estavam com eles no protesto.
É mesmo provável que em Génova tenha nascido um novo ícone do movimento antiglobalização: a solidariedade implícita das populações, vítimas directas da violência das alas radicais do movimento mas em sintonia com os manifestantes pacíficos. Os protestantes percebem o simbolismo do acto e correspondem: “Genova libera” (“Génova livre”), repete-se muitas vezes.
As janelas vão-se abrindo, e os moradores empenham-se em refrescar os manifestantes com mangueiras e bacias de água
Ao fim de duas horas, o cortejo dissolve-se espontaneamente. Nalguns pontos da cidade, decorrem comícios, mas permanece no ar um sentimento generalizado de insegurança e um cheiro intenso a gás lacrimogéneo. Os jovens portugueses querem ir até à Praça Kennedy, onde têm combinado um encontro com um grupo de italianos, mas as informações que lhes chegam fazem abortar o plano: “A praça está destruída. Vamos mas é para o autocarro.”
Há muita gente a desmobilizar, e o percurso até ao autocarro é feito com um olho por cima do ombro. As bandeiras do BE e do PSR há muito que estão recolhidas: contrariamente à chegada à fronteira italiana, onde o espírito de aventura estava na sua máxima força, o perigo, em Génova, é real e espreita a cada esquina.
Ao passarem por três “radicais” que batem a compasso com paus em contentores do lixo, numa clara provocação à Polícia, os portugueses ouvem o inevitável: “Fujam! Fujam!” O alarme revela-se falso, mas é suficientemente assustador para desencadear uma curta correria e provocar algumas quedas inconsequentes. Já quase a chegarem ao autocarro — estacionado perto do estádio Luigi Ferraris —, vêem uma densa coluna de fumo negro emergir ao longe. “É na bomba de gasolina por onde passámos há bocado”, garantem.
Há a sensação de que a Polícia está a “limpar” a cidade a gás lacrimogéneo, e todos querem abandonar Génova o mais rapidamente possível. De súbito, uma nuvem de gás, vinda não se sabe de onde, atinge em cheio os portugueses, que se precipitam para dentro do autocarro. “Fechem as portas! Fechem as portas!”, grita-se. Os olhos avermelhados choram abundantemente, e são precisos uns bons minutos para que a visão se restabeleça.
O autocarro arranca, e Génova começa a ficar para trás. Instala-se então o sentimento do dever cumprido. “Ficou demonstrada a amplitude do movimento, e o ónus da violência coube, mais uma vez, à repressão policial”, afirma, em jeito de balanço, Hugo Albuquerque, de 24 anos, um dos organizadores da excursão.
Artigo publicado no suplemento Vidas do “Expresso”, a 28 de julho de 2001










