A luta antiglobalização carece de regras. A violência em Génova foi uma evidência. Reportagem em Génova

Salvatore ia sensivelmente a meio do caminho, quando se enganou no percurso. “Não consigo conduzir e conversar ao mesmo tempo”, afirmou, esboçando um sorriso de resignação.
Desembaraçou-se a corrigir a trajectória e retomou o caminho para Roma, mas não se conseguiu calar: “Em Génova, estiveram entre 200 e 300 mil pessoas, hoje estão 10 mil a protestar em Milão e amanhã vai haver outra manifestação em Roma”, afirmava, na segunda-feira, este italiano. Estava visivelmente entusiasmado com as jornadas de protesto contra a actuação policial, que se seguiram às manifestações de Génova.
Tinha sido num cenário de guerrilha urbana que a manifestação pacífica — organizada por sindicatos, associações e organizações não-governamentais — desfilara no sábado. Na véspera, a “desobediência civil”, convocada pelos “casseurs” (as alas radicais do movimento antiglobalização) tinha transformado a cidade mediterrânica de Génova num cenário de guerra balcânica, com vidros estilhaçados, carros calcinados e lixo em abundância.
No sábado, a presença constante de helicópteros da polícia e o previsível desejo de vingança de Carlo Giuliani (o italiano de 23 anos, membro de um grupo anarquista, mortalmente atingido na véspera) realça uma calma precária. À semelhança da desobediência civil, também a marcha da “não-violência activa” viria, ironicamente, a terminar em confrontos.
Os excessos cometidos pela polícia italiana durante uma rusga nocturna, no domingo, à sede do Fórum Social de Génova — a contracimeira com 700 organizações, paralelamente à reunião do G8 (os sete países mais ricos e a Rússia) —, foram amplamente denunciados. Mas nem globalização nem antiglobalização podem cantar vitória. São muitas as contradições que os dois campos encerram, tornando este fenómeno uma autêntica guerra de surdos.
Cada um por si
Após a morte de Carlo Giuliani, foram várias as organizações que desmobilizaram, não marcando presença na manifestação pacífica — entre as quais a famosa “Drop the Debt” (“Anulem a Dívida”) e alguns movimentos católicos. Ao mesmo tempo, os encontros dos cantores Bono Vox (U2) e Bob Geldof com alguns líderes do G8 — fazendo “lobby” pelo cancelamento da dívida dos países do Terceiro Mundo — foram duramente criticados pelo principal “site” coordenador da luta antiglobalização (Indymedia.org ).
“O espectáculo de Geldof e Bono, abraçando os líderes do G8, foi revoltante. Tratou-se de uma irreflectida associação com os ‘senhores do mundo’ e de uma dissociação das dezenas de milhares de pessoas que se juntaram para protestar contra as injustiças e desigualdades da nova ordem mundial”, lia-se nas páginas do Indymedia.
As contradições também se reflectiram nas ruas. “Esta é a nossa manifestação, a vossa, a dos anarquistas, foi ontem”, gritava um homem para outro, que usava uma máscara de gás, durante a manifestação pacífica.
G8 a várias vozes
Também os “senhores do mundo” não escapam às contradições. Um dos pontos do comunicado final da cimeira apela para o estabelecimento de uma “larga parceria com a sociedade civil e o sector privado”.
Paralelamente, o G8 — refugiado, em Génova, a bordo de um luxuoso paquete, protegido por um apertado esquema de segurança — anunciou que a cimeira de 2002, inicialmente prevista para a capital canadiana (Otava), se realizará em Kananaskis, uma estação de desportos de Inverno isolada, no coração das Montanhas Rochosas…
Em relação à violência nas manifestações, os presidentes dos EUA e da França, por exemplo, desafinaram publicamente. Para George W. Bush, “estes manifestantes, que tentam impedir as nossas discussões sobre o comércio e a ajuda aos países pobres, não representam os pobres”.
Já para Jacques Chirac, o fenómeno “merece uma reflexão. As dezenas e dezenas de milhares de compatriotas, vindos sobretudo da Europa para manifestar o desejo de mudança, merecem consideração por parte dos dirigentes do mundo”.
Parece evidente que este braço -de-ferro entre os “senhores do mundo” e o movimento antiglobalização não tem ainda regras definidas. No sábado, enquanto observava o pandemónio em que se transformara a sua cidade, um habitante de Génova dizia: “Tenho 82 anos, conheci a guerra, mas isto… isto é uma vergonha”.
PORTO ALEGRE JÁ EM MARCHA
Está já em preparação o II Fórum Social Mundial (FSM), que decorrerá de 31 de Janeiro a 5 de Fevereiro de 2002 na cidade brasileira de Porto Alegre — à semelhança do primeiro —, onde são esperados entre 80 e 100 mil participantes. Ainda em fase de discussão, os dois eixos centrais desta segunda edição deverão ser o cancelamento da dívida externa dos países do Terceiro Mundo e o futuro da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Mas é ao nível dos resultados práticos que o II FSM se propõe dar um passo de gigante: “Estamos a trabalhar na organização e na estrutura deste II FSM para que ele seja muito mais positivo, com resoluções que possam ser assumidas por movimentos sociais, por governos e pela sociedade civil em geral”, afirmou, em declarações ao “Expresso”, André Mombach, um brasileiro de 23 anos directamente envolvido na organização desta segunda edição do FSM através do Comité da Juventude.

Para Mombach, é importante que o Fórum de Porto Alegre caminhe no sentido da elaboração de propostas alternativas para os problemas que o FSM denuncia, até para dar crédito ao próprio movimento antiglobalização: “Nesse aspecto, o I Fórum foi muito deficitário e ficou muito no plano da resistência”, refere o jovem. A reincidência do Brasil — e da cidade de Porto Alegre — como anfitrião da segunda edição não é casual: “É um país onde os dois planos do FSM existem e estão muito bem constituídos: o plano da resistência (através do movimento sindical, do Movimento dos Sem-Terra) e o da discussão de uma alternativa (através da democracia participativa, que tem já 13 anos de experiência na Prefeitura de Porto Alegre)”, diz André Mombach.
Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de julho de 2001
