Uma história de insubmissão

Os afegãos sempre têm oposto ao longo dos tempos uma feroz resistência a qualquer tentativa de dominação estrangeira

Soldados afegãos, vestidos com o traje de inverno, à entrada do Vale de Urgundeh. Litografia do Tenente James Rattray, que serviu no Afeganistão THE BRITISH LIBRARY / WIKIMEDIA COMMONS

A veemência com que todos os actores do conflito afegão rejeitam a presença de uma força multinacional no seu país só vem confirmar o que a história há muito demonstrara: os afegãos não toleram a ocupação estrangeira nem pactuam com lideranças impostas do exterior.

Por isso, os impérios que se aventuraram à conquista do Afeganistão fracassaram categoricamente. Durante o século XIX, por exemplo, a confrontação diplomática entre os impérios russo e britânico pela conquista de zonas de influência na Ásia Central disputa que foi baptizada pelo Nobel britânico Rudyard Kipling de Grande Jogo (Great Game) , esbarrava, invariavelmente, no território afegão. E se a Rússia dos czares nunca se estendeu sobre o Afeganistão na busca de uma estratégica saída para o mar, já os britânicos tiveram que se empenhar em três campanhas militares com os afegãos (1839-1842, 1878-1880 e 1919) para defenderem os seus interesses na Índia —  a jóia da coroa.

A primeira das guerras constituiu o pior desastre de sempre do Exército britânico, ao ponto de se ter transformado num mito. Aquando da retirada dos 17 mil combatentes de Cabul, em 1842, apenas uma pessoa o cirurgião do Exército, William Brydon sobreviveu à feroz perseguição dos afegãos.

Uma ferocidade que, mais recentemente, durante a ocupação soviética, levaria a rotular o Afeganistão como o Vietname soviético. Apesar da superioridade técnica do Exército Vermelho, a organização e tácticas militares dos mudjahedin (guerreiros sagrados), bem como o seu profundo conhecimento das irregularidades do terreno e das surpresas do clima, levaram a melhor. Desta forma, os mudjahedin, apoiados pelos Estados Unidos, obrigaram a União Soviética a destacar para o terreno um número inicialmente impensável de soldados chegaram a estar 118 mil soviéticos no Afeganistão. Os pesados custos económicos e o elevado número de baixas (15 mil mortos e 37 mil feridos) viriam a precipitar a retirada do Exército Vermelho, em 1989, dez anos após a invasão, acelerando o fim da URSS.

A história voltava a confirmar que os afegãos são ferozmente individualistas e têm um espírito indomável, fazendo jus a um conhecido provérbio popular: Eu e o meu país contra o mundo; eu e a minha família contra a minha tribo; eu e o meu irmão contra a minha família; eu contra o meu irmão.

Mas a história parece indicar também que os afegãos convivem bem com a instituição monárquica que vigorou no país de 1747 a 1973 ao ponto de Mohammad Zahir Shah, o último monarca a reinar em Cabul, ser uma das possíveis soluções políticas para o actual impasse.

Zahir Shah nasceu em Cabul, em 1914, foi educado em França e subiu ao trono com apenas 19 anos. Durante os primeiros 30 anos do seu longo reinado, aceitou a tutela dos familiares, que acabaram por ser os efectivos governantes do país. Em 1963 tomou as rédeas do poder e, no ano seguinte, foi aprovada uma nova Constituição que impedia qualquer membro da família real, além do monarca, de exercer cargos políticos ou no governo.

Formalmente, o Afeganistão passa a ser uma democracia moderna, com um Parlamento bicamaral e eleições multipartidárias. Os direitos individuais passam a prevalecer sobre os direitos tribais e a lei secular sobre a sharia (lei islâmica) apesar de o Islão ser a religião sagrada do Afeganistão.

Porém, Zahir Shah viria a abordar as suas novas responsabilidades constitucionais com indecisão e delonga, recusando, por exemplo, sancionar legislação permitindo a formação de partidos políticos.

Talvez por isso, os golpes palacianos da família real continuaram a desempenhar papel crucial na vida política afegã. Em 1973, aproveitando uma deslocação do Rei a Itália para tratamento médico, o seu primo Mohammad Daud feroz opositor da abertura do país ao Ocidente e defensor de relações privilegiadas com a URSS orquestrou um golpe que levou à instauração da república e condenou o Rei ao exílio. Como a nova democracia prometida por Zahir Shah não passara praticamente do papel, o golpe de Daud não deparou com episódios de resistência popular.

Em 1978, um novo golpe instaura um regime marxista, consolidado no ano seguinte pela invasão soviética, que transporta o Afeganistão que sempre procurara manter-se neutral , para o palco da Guerra Fria.

Após a retirada do Exército Vermelho, em 1989, o tadjique Burhanuddin Rabbani, que liderara a resistência mudjahedin contra os soviéticos ascende à presidência do Afeganistão, em 1992, sucedendo ao pró soviético Mohammed Najibullah.

Em 1994, a milícia talibã (islamitas de etnia patshun), composta maioritariamente por estudantes de Teologia, passa a controlar a metade sul do país, implantando uma interpretação fundamentalista do Islão.

Dois anos depois os talibã entram em Cabul e impõem a “sharia, sendo o novo regime reconhecido apenas pelo Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Os mujahedin derrotados são empurrados para o vale do Panshir (norte), dando lugar à Aliança do Norte, chefiada pelo comandante Massud.

Agora, com a derrota dos talibã, abre-se a porta para o regresso de Zahir Shah, embora o monarca dificilmente possa representar algo mais do que a opção tradicionalista pela instituição monárquica, que proporcionou ao Afeganistão o período de maior estabilidade política do século XX. Isto, apesar do gosto pela guerra ser, segundo Friedrich Engels co-autor, com Karl Marx, do Manifesto do Partido Comunista , um dos pilares do mito afegão: A posição geográfica do Afeganistão e o carácter particular do seu povo conferem ao país uma importância política que não se deve subestimar nos assuntos da Ásia Central. (…) Os afegãos são um povo corajoso, resistente e independente. (…) Para eles, a guerra é excitante e alivia-os das suas ocupações monótonas e laboriosas, escreveu ele em 1858.

SOBRE O AFEGANISTÃO, DISSERAM:

“Os afegãos estão divididos em clãs, sobre os quais os chefes exercem uma espécie de supremacia feudal. O seu ódio indomável a quaisquer regulamentos e o seu amor à independência individual são os únicos obstáculos a que o seu país se torne uma nação poderosa.” (Friedrich Engels)

“Para o afegão, a vida, a propriedade, a lei ou os laços de sangue não são sagrados quando os seus apetites o impelem a rebelar-se. É ladrão por instinto, assassino por herança e aprendizagem, e aberta e brutalmente imoral pelas três coisas. No entanto, tem as suas próprias e tortuosas noções da honra e o seu carácter é fascinante de estudar. De vez em quando lutará sem razão aparente até que o façam em pedaços, outras negar-se-á a ir para a batalha até que consigam encurralá-lo. É por isso que é tão imprevisível como o lobo cinzento, que é seu irmão de sangue. E estes são os homens que sua alteza governa, com a única arma que eles entendem: o medo à morte, que entre alguns orientais é o começo da sabedoria.” (Rudyard Kipling)

Artigo publicado na Revista do Expresso, a 24 de novembro de 2001

“Do Qatar? Nada de bom”

De passagem por Lisboa, Bernard Cassen, presidente da ATTAC, realça a actualidade do movimento antiglobalização. Entrevista

Para a ATTAC (Associação pela Tributação das Transações financeiras para Ajuda aos Cidadãos), “um outro mundo é possível” WIKIMEDIA COMMONS

Os trágicos acontecimentos de 11 de Setembro nos Estados Unidos só vieram reforçar as reivindicações do movimento antiglobalização. Quem o diz é o francês Bernard Cassen, presidente da ATTAC (Associação para a Tributação das Transacções financeiras para Ajuda aos Cidadãos), para quem a pobreza não cria monstros como Bin Laden — antes, os torna populares.

EXPRESSO — Quais as consequências do 11 de Setembro para o movimento antiglobalização?
BERNARD CASSEN — A primeira foi uma mudança na agenda mediática. A prioridade passou da luta contra a mundialização liberal para as próprias consequências do 11 de Setembro. Em segundo lugar, houve uma tentativa de criminalização do movimento: quem é contra a globalização é antiamericano, logo cúmplice de Bin Laden. Há uma manipulação enorme. Em Seattle não eram nem Bin Laden nem os “mullah”, eram americanos. Esses americanos eram antiamericanos? E eu, quando critico o meu Governo, sou antifrancês? Se antes tínhamos razão, hoje temos mais. Aliás, a maior parte dos temas que nós desenvolvemos estão a ser retomados pelo próprio Presidente George W. Bush.

EXP. — Tais como?
B.C. — Os paraísos fiscais, por exemplo. Lutámos sempre contra os paraísos fiscais, enquanto Bush fingia lutar, adoptando medidas extremamente limitadas. Acreditamos que os paraísos fiscais são os bairros dourados” da criminalidade e as fontes de financiamento do terrorismo. Outro exemplo é a anulação da dívida pública do Terceiro Mundo. Dizem-nos que não é possível, mas reduziram a dívida ao Paquistão…

EXP. — Os cidadãos não estão menos tolerantes com um movimento que, por vezes, se torna violento?
B.C. — Não somos nós que organizamos a confrontação, não somos nós que fazemos os planos de ajustamento estrutural, é o Banco Mundial e o FMI. Há violência quando a Polícia o decide. Em Génova, quando o Black Bloc” destruiu ruas inteiras, a Polícia nada fez para lhes imputar as culpas.

EXP. — O Fórum Mundial de Beirute foi muito menos mediático que o Fórum Social de Génova e a maioria das organizações eram árabes. O Fórum não é uma vítima do 11 de Setembro?
B.C. — De forma alguma. O movimento antiglobalização parte sobretudo dos EUA e da Europa. No Fórum Social de Porto Alegre, por razões geográficas, incorporamos a América Latina. Há dois pontos fracos do movimento: o mundo árabe e a Ásia. Organizámos o Fórum de Beirute unicamente para incorporar organizações e movimentos árabes, da mesma forma que vamos fazer um próximo Fórum na Ásia. Em Beirute, não tínhamos a ambição de fazer um Fórum Social.

EXP. — Os participantes do Fórum de Beirute visitaram os campos de Shabra e Chatila. Isso não indicia uma certa politização do movimento que lhe pode ser fatal?
B.C. — Mas o movimento é político. Quando se é contra a globalizacão ou se luta pela anulação da dívida do Terceiro Mundo está-se a fazer política. Quando se está no Líbano, é impensável não se falar no conflito israelo-palestino. Sem resolver o problema jamais haverá paz.

EXP. — Estas questões particulares não enfraquecem o movimento?
B.C. — De forma alguma. Neste caso, há um consenso mundial. A solução deste problema é a condição da luta contra o terrorismo.

EXP. — O que espera da cimeira da Organização Mundial do Comércio no Qatar?
B.C. — Nada de bom. Vai iniciar um novo ciclo de liberalização comercial, sem que se tenha feito o balanço de seis anos de liberalização desde a criação da OMC. E porquê? O resultado seria mau. Somos contrários a que sectores como a educação, saúde, cultura e mesmo a agricultura sejam transformados em mercados. Há um lugar legítimo para o mercado, mas tudo o que acentua a liberalização é mau. É preciso combater a ideia de que o crescimento depende do comércio.

EXP. — A França apoiou a proposta belga de solicitar à Comissão Europeia um estudo sobre a exequibilidade da Taxa Tobin…
B.C. — O Governo francês aderiu à proposta após uma enorme pressão da nossa parte. O estudo está em curso e deverá sair em meados de Dezembro, mas vamos ver como é feito esse estudo e se eles ouvem os nossos peritos. Também trabalhamos junto dos deputados e a maioria é favorável à Taxa Tobin, tal como 75% dos franceses.

EXP. — Está pessimista em relação à atitude da União Europeia…
B.C. — É evidente, não confio nem na Comissão, que é ultraliberal, nem na espontaneidade dos Governos, que são os porta-voz dos financeiros. Sobretudo os ministros das Finanças que não prestam contas aos eleitores, mas aos economistas e ao Fundo Monetário. A Taxa Tobin nem sequer é uma medida de esquerda. O professor Tobin propôs essa medida para estabilizar o mercado financeiro. A liberdade de circulação total de capitais pode beneficiar o Sul. Mas eles não querem criar um precedente político, porque têm medo que nós exijamos mais. E têm razão, vamos exigir muito mais.

EXP. — A ATTAC está contra os bombardeamentos ao Afeganistão. Quais são as alternativas?
B.C. — Nós não temos uma proposta precisa. Não contestamos a legitimidade internacional da acção norte-americana, porque o Conselho de Segurança das Nações Unidas deu o seu acordo. Mas constatamos o quê? Primeiro, que o regime talibã permanece no poder; que as únicas vítimas são civis; e que a operação não tem sucesso. Constatamos ainda o grande risco de desestabilização do Paquistão. A resposta ao terrorismo não é dada por via das armas, é uma resposta política. É necessário destruir a aceitação do terrorismo junto de muitas pessoas que, verbalmente, condenam o terrorismo e depois acrescentam: Mas foi muito bem feito para eles”.

EXP. — E que solução política?
B.C. — Começar pela questão prévia, o conflito israelo-palestino. Enquanto não houver uma solução justa para o problema palestino, as massas dos países árabes serão antiamericanas. Depois, é necessário uma outra ordem mundial, mais justa e equitativa em relação aos pobres, ao Sul. Não posso dizer que haja uma causalidade directa entre a pobreza e Bin Laden. O que é inquietante é a sua popularidade junto de muitos sectores de países árabes e, mais discretamente, de países do Terceiro Mundo.

DE SEATTLE A DOHA

Quem, na quinta-feira, foi assistir à conferência de Bernard Cassen, na expectativa de o ouvir enunciar as dificuldades por que passa o movimento antiglobalização, terá ficado desiludido. Perante o auditório do Instituto Franco-Português, em Lisboa, este destacado dirigente do movimento reafirmou os propósitos dos protestos antiglobalização perante os acontecimentos de 11 de Setembro nos EUA, afastando a necessidade de uma reinvenção do movimento. Não deixa de ser curiosa a perspectiva de Bernard Cassen em vésperas de uma importante reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio), que ontem se iniciou, em Doha (Qatar).

Além da formalização da adesão da China à organização, a cimeira ficará marcada pelo início de um novo ciclo de liberalização comercial. Da última vez que a OMC tentou lançar uma nova ronda de conversações (Seattle, 1999), os distúrbios explodiram nas ruas, inviabilizando o acordo e instituindo o movimento antiglobalização como o conhecemos. Mas as semelhanças entre Seattle e Doha resumem-se aos destacamentos policiais nas ruas, numa cópia a papel-químico dos cânones praticados em Génova, quando da última grande manifestação antiglobalização, contra uma reunião do G8. Na quinta feira, a capital do Qatar assemelhava-se a uma cidade-fantasma com as ruas a serem percorridas por polícias armados, cães-polícias e camiões militares. A segurança é apertada, sobretudo para os jornalistas que, após serem revistados por oficiais qataris, têm de passar pela segurança norte-americana…

E se, em circunstâncias normais, seriam os protestos de rua a justificar o aparato policial, no Qatar é a ameaça de novos ataques terroristas que está na ordem do dia. Na quarta-feira, o alarme disparou quando um qatari, alegadamente com perturbações mentais, disparou contra uma base militar norte-americana.

No Qatar, apenas a organização ambientalista Greenpeace parece estar a preparar protestos, tendo o famoso navio Rainbow Warrior, na quinta-feira, atracado em águas do Qatar, com 15 activistas a bordo. Desta vez, a tribo antiglobalização — dados os custos da deslocação e as dificuldades em obter o visto — não sai de casa: em pelo menos 29 países vão decorrer sessões de trabalho, marchas e festas de rua. Quanto à tradicional contra-cimeira, não se realizou nos moldes habituais, resumindo-se a um modesto encontro de algumas dezenas de organizações não-governamentais (na maioria árabes), na sede da UNESCO em Beirute (Líbano).

Para Bernard Cassen, porém, o importante é lutar, através da informação e da acção dos cidadãos, contra as múltiplas facetas da dominação da esfera financeira sobre todos os domínios da actividade humana, escreveu no seu livro “Contra a Ditadura dos Mercados”.

Artigo publicado no Expresso, a 10 de novembro de 2001