Uri Avnery é a voz da paz em Israel. Não poupa Telavive

Se o movimento pacifista israelita tivesse um rosto simbólico, seria certamente o de Uri Avnery, fundador da organização “Gush Shalom” (“O Bloco da Paz”), em 1993. Aos 80 anos, Uri continua a acreditar num futuro pacífico entre israelitas e palestinianos e a entusiasmar-se perante notícias como as que, recentemente, puseram a nu uma crescente contestação à estratégia bélica de Telavive, por parte de destacadas figuras da hierarquia militar.
“O Exército, que tem sido o elemento mais extremista e que está intimamente relacionado com os colonatos, chegou à conclusão de que não há uma solução militar”, afirmou o pacifista, na quinta-feira, em entrevista ao “Expresso”, momentos antes de intervir na Conferência Internacional de Lisboa, organizada pelo Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais.
Para Uri, outro sintoma de mudança nestas sociedades desavindas é o Acordo de Genebra, elaborado por personalidades israelitas e palestinianas: “Demonstra que o diálogo é possível. O aspecto negativo é que foi elaborado por antigos políticos, com pouca influência, e não por políticos no activo”.
Apesar de considerar que o processo de paz só tem a ganhar com lideranças renovadas (“novas visões”), o pacifista aprecia Yasser Arafat e Ariel Sharon de forma radicalmente oposta. Em relação ao líder palestiniano, realça que “Arafat tem sido a favor da paz desde 1974”.
“Começam a perceber que o preço da paz é menor que o da guerra”
O próprio Uri, entre 1938 e 1942, integrou o Irgun, uma organização “terrorista” judaica que combatia a presença colonial britânica na Palestina. Talvez por isso parece reconhecer a Arafat a legitimidade de ter estado dos dois lados da barricada: do terrorismo e da paz.
Quanto ao primeiro-ministro israelita, não o poupa. “O que Sharon diz não tem importância, o que faz é muito importante.” Sharon sonha com o Grande Israel? “Certamente. Quer transformar toda a Palestina no Estado de Israel, expulsar os palestinianos ou colocá-los em pequenos enclaves, que é o que está a acontecer agora. O muro é um meio para implementar esta visão.”
A longevidade da disputa — “de cada lado, cinco gerações nasceram dentro do conflito” — habituou israelitas e palestinianos à desconfiança mútua. Uri recorre a um exemplo curioso para o justificar: “Por que é que as sondagens em Israel revelam conclusões contrárias? A maioria é favorável à paz e está disposta a concessões, mas sente que a paz é impossível, que os palestinianos não a querem. Então, se estão condenados à guerra, por que não apoiar Sharon, o maior líder da guerra? Do lado palestiniano, a maioria quer a paz e satisfaz-se com 22% da Palestina, mas pensa que sem violência nunca o conseguirá. Logo, defende também os ataques suicidas”.
Para o pacifista israelita, “a violência da ocupação e a violência da resistência são coisas diferentes. Os ‘media’ dão-nos a imagem de que os palestinianos cometem actos terroristas e Israel retalia. É uma imagem completamente falsa. Tudo começou com a ocupação”.
Apesar disso, Uri Avnery transpira optimismo: “A situação está cada vez pior e os dois povos estão a perceber que o preço da paz é menor do que o da guerra — mas não acreditam que a paz seja possível. A longa guerra e as lideranças políticas convenceram-nos de que não têm parceiro para a paz (é um ‘slogan’ dos dois lados) e que estão condenados a viver em guerra para sempre”.
Por isso, a batalha de Uri Avnery pela paz, além de interminável, é traiçoeira: “É muito mais perigoso ser pela paz do que pela guerra. Durante um conflito, nunca é popular falar de paz. Parece que se gosta mais do inimigo do que do próprio povo. Na verdade, para se ser pacifista (‘peaceful’) há que ser louco pela paz (‘peace fool’)”.
CRÍTICAS AOS EUROPEUS
À chegada ao Centro de Congressos de Lisboa, na quinta-feira, Miguel Moratinos, ex-enviado da União Europeia para o Médio Oriente, não escondia a satisfação. Na véspera, o Conselho de Segurança da ONU aprovara o Roteiro: Palestina e Israel independentes em 2005. Mal sabia ele que no painel em que interviria (“Construção do Estado e esforços de paz no Médio Oriente”) teria de erguer a voz para salvar a face de Bruxelas. Ahmad Khalidi, antigo negociador palestiniano, qualificou o Roteiro como “ratoeira punitiva”; o israelita Uri Avnery afirmou que o défice de participação da UE era “escandaloso”, denunciou a subserviência à Casa Branca e vaticinou uma maior influência da UE na região após “uma mudança de regime… nos EUA”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de novembro de 2003
