Uma voz incómoda

Aos 73 anos, Nawal El Saadawi é uma activista incansável na defesa dos direitos das mulheres

Nawal El Saadawi JAMES MURUA’S AFRICAN LITERATURE BLOG

Ouviu alguém a bater à porta. Estava sentada à secretária do quarto, absorvida pela escrita de um novo livro. Era tarde de domingo, 6 de Setembro de 1981. Ignorou. Talvez fosse o porteiro, possivelmente o leiteiro. Não paravam de bater. Foi à porta. Vislumbrou um vulto negro por detrás do vidro opaco. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, estava sozinha em casa.

Abriu a janela da porta. Assustou-se. Homens armados esperavam lá fora. Uma voz grossa fez-se ouvir: Abre a porta. Queremos fazer-te uma ou duas perguntas. Depois regressas a casa. Foi levada e fechada numa prisão.

A arma da escrita

Vinte e três anos volvidos, à conversa com o “Expresso, a egípcia Nawal El Saadawi — que, na segunda-feira, recebeu, em Lisboa, o X Prémio Norte-Sul do Conselho da Europa — não disfarça uma expressão irónica quando lhe é perguntado que crime cometera: “Escrever e apenas escrever. Não sei carregar outra arma a não ser uma caneta. Critiquei a política de Anwar Sadate. Era impossível libertar as mulheres num país que não era livre, política, económica e socialmente”.

Um mês depois de ter sido presa, o Presidente egípcio foi assassinado e as portas da prisão abriram-se. “O que não nos mata, torna-nos mais fortes”, foi o lema que então nasceu e a guiaria vida fora. Aos 73 anos, Nawal El Saadawi é hoje uma das activistas dos direitos das mulheres mais respeitadas em todo o mundo.

Tinha apenas 10 anos quando exibiu, pela primeira vez, toda a sua natureza, despejando chá quente em cima de um homem de 32 anos que lhe tinham destinado. Acabaria por casar três vezes, com homens da sua livre escolha.

Em 1955, concluiu os estudos de Psiquiatria na Universidade do Cairo e, em 1966, o mestrado em Saúde Pública na Universidade Columbia, em Nova Iorque.

Aos 10 anos, despejou chá quente em cima de um homem de 32 anos, que lhe tinham destinado

O pai formara-se na Universidade islâmica de Al-Azhar (Cairo), mas ela admite nunca se ter sentido socialmente amordaçada: “Fui para a escola médica, falava com homens, viajei por todo o mundo. Conhecia raparigas cristãs coptas que não tinham a minha liberdade. Depende da mentalidade dos pais”.

A experiência médica em zonas rurais e o contacto com a pobreza apurou-lhe a consciência política. Nos anos 70, começa a abordar temas tabus e causa incómodo. Fala abertamente da excisão — uma experiência que viveu aos seis anos — e associa-a a problemas de ordem económica e política.

Em 1972, é exonerada de um cargo de chefia no Ministério da Saúde e vê a revista que fundara (“Saúde”) ser interditada. Em 1977, publica “A Face Oculta de Eva” — a sua única obra traduzida para português —, sobre as mulheres e o mundo árabe.

Após a publicação do livro “A Queda do Imã”, em 1987, começa a receber ameaças de morte. Em 1992, o seu nome passa a figurar na lista de alvos a abater por um grupo fundamentalista islâmico.

A intimação força-a a um período de exílio, mas não a cala. Em 2001, afirma que o acto de beijar a Pedra Negra, em Meca, não é islâmico. É acusada de apostasia, mas vence, em tribunal, um processo que visava sentenciá-la a um divórcio forçado do marido, muçulmano.

Nawal El Saadawi é uma acérrima defensora da separação de poderes: “A lei tem de ser secular, a religião fica em casa”. Mas, enquanto em muitos países árabes isso não acontece, ela recusa-se a culpar o Islão pela diminuição do estatuto das mulheres. “Islamismo, judaismo, cristianismo, todas as religiões oprimem muito as mulheres. São inferiores em todas as religiões. É ler a Bíblia…”

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 30 de outubro de 2004