Quando era miúdo, Ramzi Aburedwan participou na revolta das pedras contra os israelitas. Agora a sua luta passa por mudar as mentes levando a música aos campos de refugiados
Passava pouco da uma da madrugada quando o grupo se lançou mar adentro, ao encontro das ondas quentes e densamente salgadas do mar Morto. Na escuridão da noite, era impossível descortinar quem boiava ao lado de quem, mas aos poucos tal deixou de ser importante. Ao fim de 15 minutos imperava um silêncio relaxante, que apenas o bater das ondas no areal pedregoso — e as gargalhadas de Uday — quebravam. «Uday precisa disto e de muito mais», comenta Kamal, o motorista palestiniano que conduziu o grupo até àquela aventura nocturna.
Uday nasceu há 13 anos no campo de refugiados de Fawwar, perto de Hebron. O campo não fica longe do mar Morto, mas o pequeno nunca lá estivera. Não fosse, há dois anos, ter-se cruzado com um músico palestiniano, Ramzi Aburedwan, e continuaria talhado a um futuro tão incerto quanto a vida num campo de refugiados reserva a quem lá nasce. «Tinha acabado de fazer um ‘workshop’ no campo de Fawwar quando um grupo de miúdos veio ter comigo», recorda Ramzi. «Uday era um deles. Muito timidamente, disse que queria cantar. Eu disse-lhe que sim», acrescenta.
Uday começa a cantar e Ramzi fica encantado com aquela voz madura num corpo tão franzino. Uday diz que Deus é a fonte do seu talento. Quando for grande quer ser cantor, obviamente. Precisará de sorte para que o seu futuro seja tão generoso quanto o seu presente é promissor. Para já, conta com o apoio incondicional de Ramzi, que o orientará nos estudos musicais e lhe vai dando visibilidade levando-o a cantar em concertos.

Foi pela mão de Ramzi que, este Verão, Uday foi a estrela de um programa de «workshops» e concertos para crianças de campos de refugiados palestinianos, organizados pela associação Al Kamandjati («o violinista», em árabe). Fundada por Ramzi em 2002, em França, onde o palestiniano concluiu este ano o curso de viola no Conservatório de Angers, a organização é o início da materialização de um sonho pessoal — abrir escolas de música nos territórios palestinianos — e Uday a prova de que há talentos em quem apostar.
A acompanhar Ramzi e Uday, de instrumentos às costas, havia nove músicos franceses e dois palestinianos, os companheiros de Uday no banho nocturno no mar Morto. Desde há três anos que Ramzi vem desafiando músicos amigos a acompanharem-no pelos campos de refugiados.

Para Ramzi, os fins justificam o investimento — ou não fosse ele próprio um vivo exemplo de como nascer num campo de refugiados não determina necessariamente um futuro sem perspectivas. Nascido em 1979 no campo de refugiados de Al Amari, em Ramallah, Ramzi despertou para a música após ter conhecido o violinista Mohammed Fadel, em casa de uma amiga. Tinha 17 anos e acedeu a participar numa acção de demonstração de instrumentos. Apaixonou-se pelo som da viola e começou a ter aulas num edifício não muito longe do colonato de Bisgot. «Às vezes, abandonava as aulas durante uns minutos, descia à rua, atirava meia dúzia de pedras aos carros dos colonos e voltava a subir», recorda.
Tinha 17 anos quando iniciou as aulas de viola. Às vezes interrompia-as para ir atirar pedra aos israelitas
Ramzi ganhara o hábito de arremessar pedras aos israelitas quando tinha 8 anos. Um dia, quando regressava da escola com o seu melhor amigo, este caiu desamparado no chão, atingido por um tiro. A reacção de Ramzi foi instintiva e de imediato começou a atirar pedras aos soldados israelitas posicionados à entrada do campo Al Amari. Um fotógrafo registou o momento e a foto correu mundo, transformando Ramzi num símbolo da primeira Intifada palestiniana.

Com o tempo, Ramzi aperceber-se-ia que a música pode contribuir para resgatar as crianças palestinianas, ainda que por breves instantes, do seu quotidiano complicado. «Em 2002, quando os israelitas invadiram territórios palestinianos, visitei um centro infantil onde as crianças só faziam desenhos de tanques, armas, sangue… Dois dias depois, voltei com o meu busuk (instrumento oriental) e toquei para eles. Alguns miúdos começaram a desenhar instrumentos. Apercebi-me de como em apenas 30 minutos se pode alterar a imaginação deles. As crianças pintam aquilo que vêem e aquilo com que sonham».
Em Al Amari, Ramzi passou a partilhar alguns momentos de estudo com a vizinhança. «Às vezes tocava em frente à minha casa. As crianças aproximavam-se e pediam-me determinada música. Então eu dizia-lhes que, para tocá-la, tinha de mexer os dedos de determinada maneira. E eles ficavam a pensar que eu era um mágico…»
Os «workshops» são uma ocasião para muitos miúdos verem, pela primeira vez, um violino ou uma flauta
Hoje, os miúdos que frequentam os «workshops» Al Kamandjati não revelam tanta inocência. No entanto, para muitos é uma oportunidade para, pela primeira vez, verem e tocarem num violino, numa flauta ou numa trompa. No «Kids Club» de Jericó, por exemplo, os níveis de concentração, a disciplina e o interesse são elevados. O espaço é acolhedor, há um jardim e uma piscina, sobra espaço para correr e saltar e não faltam jogos nem brinquedos. Pelos corredores, as crianças cruzam-se com o Pinóquio, a Bela Adormecida, Fred Flintstone ou o Nemo, em coloridos murais pintados nas paredes.
Pelo contrário, no campo de Balata — o maior da Cisjordânia, com 21.903 refugiados registados pelas Nações Unidas — os músicos defrontam-se com alguma hostilidade. Balata é um campo difícil. Há ruas tão estreitas que os prédios dos dois lados quase se tocam. Nas escolas, em vez de desenhos e colagens nas paredes, há fotografias coloridas… de mártires. E quando se lhes tenta tirar uma fotografia, os miúdos fazem pose simulando o disparo de uma arma.

No Centro para a Juventude de Balata, o pequeno Saif revela-se um craque do audiovisual, fotografando e gravando as actividades. A dada altura aproxima-se de uma janela e faz um comentário, curto mas imperceptível. Saif quer fazer-se entender e corre a buscar uma máquina digital: aponta-a à janela, faz um grande «zoom», dispara e, por fim, mostra o motivo do seu comentário: «Judeus!» O campo cresceu morro acima e, lá no alto, há postos de vigia israelitas, omnipresentes na vida do campo.

Ramzi salienta que é importante que as crianças palestinianas contactem com povos para além do israelita e percebam que os estrangeiros podem ser sorridentes e gentis — e não necessariamente pessoas dentro de tanques ou com armas na mão. É este, aliás, um dos grandes objectivos das missões Al Kamandjati. Porém, o violetista não partilha os sonhos de Daniel Barenboim, o maestro judeu que fundou uma orquestra israelo-árabe.
É importante as crianças perceberem que há estrangeiros sem tanques nem armas
O logótipo Al Kamandjati — um «keffieh» em forma de clave de sol — traduz, sem equívocos, a natureza palestiniana do seu projecto, ainda que, por vezes, esse cartão de visita lhe dificulte a vida num território onde o conflito está ao dobrar de cada esquina. O clarinetista Thierry, com 23 anos mas um veterano nestas andanças, recorda como, no ano passado, foram proibidos de tocar junto ao simbólico «checkpoint» de Khalandia, entre Ramallah e Jerusalém.
Romain, de 22 anos, recorda outro episódio, num «checkpoint» de Jericó. Quando os soldados dificultavam a passagem a um dos músicos palestinianos, Romain saca do violino e, ali mesmo, acompanha o músico em apuros num concerto improvisado. Acabariam por seguir viagem.
Este ano, o ponto culminante da missão Al Kamandjati foi a inauguração da sua primeira escola, na cidade velha de Ramallah. Na véspera, chegou um contentor com duas toneladas de instrumentos, angariados um pouco por todo o mundo — novos e usados, uns inteiros, outros a precisarem de ser reconstruídos.
(FOTO PRINCIPAL Campo de Al Amari: Ramzi bate ritmos com as mãos e uma menina reproduz. Nunca se sabe quando se revela um talento MARGARIDA MOTA)
Artigo publicado na Única do “Expresso”, a 22 de outubro de 2005














