A luta de Ramzi

Quando era miúdo, Ramzi Aburedwan participou na revolta das pedras contra os israelitas. Agora a sua luta passa por mudar as mentes levando a música aos campos de refugiados

Passava pouco da uma da madrugada quando o grupo se lançou mar adentro, ao encontro das ondas quentes e densamente salgadas do mar Morto. Na escuridão da noite, era impossível descortinar quem boiava ao lado de quem, mas aos poucos tal deixou de ser importante. Ao fim de 15 minutos imperava um silêncio relaxante, que apenas o bater das ondas no areal pedregoso — e as gargalhadas de Uday — quebravam. «Uday precisa disto e de muito mais», comenta Kamal, o motorista palestiniano que conduziu o grupo até àquela aventura nocturna.

Uday nasceu há 13 anos no campo de refugiados de Fawwar, perto de Hebron. O campo não fica longe do mar Morto, mas o pequeno nunca lá estivera. Não fosse, há dois anos, ter-se cruzado com um músico palestiniano, Ramzi Aburedwan, e continuaria talhado a um futuro tão incerto quanto a vida num campo de refugiados reserva a quem lá nasce. «Tinha acabado de fazer um ‘workshop’ no campo de Fawwar quando um grupo de miúdos veio ter comigo», recorda Ramzi. «Uday era um deles. Muito timidamente, disse que queria cantar. Eu disse-lhe que sim», acrescenta.

Uday começa a cantar e Ramzi fica encantado com aquela voz madura num corpo tão franzino. Uday diz que Deus é a fonte do seu talento. Quando for grande quer ser cantor, obviamente. Precisará de sorte para que o seu futuro seja tão generoso quanto o seu presente é promissor. Para já, conta com o apoio incondicional de Ramzi, que o orientará nos estudos musicais e lhe vai dando visibilidade levando-o a cantar em concertos.

Uday faz o que mais gosta: canta MARGARIDA MOTA

Foi pela mão de Ramzi que, este Verão, Uday foi a estrela de um programa de «workshops» e concertos para crianças de campos de refugiados palestinianos, organizados pela associação Al Kamandjati («o violinista», em árabe). Fundada por Ramzi em 2002, em França, onde o palestiniano concluiu este ano o curso de viola no Conservatório de Angers, a organização é o início da materialização de um sonho pessoal — abrir escolas de música nos territórios palestinianos — e Uday a prova de que há talentos em quem apostar.

A acompanhar Ramzi e Uday, de instrumentos às costas, havia nove músicos franceses e dois palestinianos, os companheiros de Uday no banho nocturno no mar Morto. Desde há três anos que Ramzi vem desafiando músicos amigos a acompanharem-no pelos campos de refugiados.

As crianças experimentam a harpa MARGARIDA MOTA

Para Ramzi, os fins justificam o investimento — ou não fosse ele próprio um vivo exemplo de como nascer num campo de refugiados não determina necessariamente um futuro sem perspectivas. Nascido em 1979 no campo de refugiados de Al Amari, em Ramallah, Ramzi despertou para a música após ter conhecido o violinista Mohammed Fadel, em casa de uma amiga. Tinha 17 anos e acedeu a participar numa acção de demonstração de instrumentos. Apaixonou-se pelo som da viola e começou a ter aulas num edifício não muito longe do colonato de Bisgot. «Às vezes, abandonava as aulas durante uns minutos, descia à rua, atirava meia dúzia de pedras aos carros dos colonos e voltava a subir», recorda.

Tinha 17 anos quando iniciou as aulas de viola. Às vezes interrompia-as para ir atirar pedra aos israelitas

Ramzi ganhara o hábito de arremessar pedras aos israelitas quando tinha 8 anos. Um dia, quando regressava da escola com o seu melhor amigo, este caiu desamparado no chão, atingido por um tiro. A reacção de Ramzi foi instintiva e de imediato começou a atirar pedras aos soldados israelitas posicionados à entrada do campo Al Amari. Um fotógrafo registou o momento e a foto correu mundo, transformando Ramzi num símbolo da primeira Intifada palestiniana.

Aos 8 anos, Ramzi foi fotografado a apedrejar soldados israelitas, tornando-se um símbolo da Intifada

Com o tempo, Ramzi aperceber-se-ia que a música pode contribuir para resgatar as crianças palestinianas, ainda que por breves instantes, do seu quotidiano complicado. «Em 2002, quando os israelitas invadiram territórios palestinianos, visitei um centro infantil onde as crianças só faziam desenhos de tanques, armas, sangue… Dois dias depois, voltei com o meu busuk (instrumento oriental) e toquei para eles. Alguns miúdos começaram a desenhar instrumentos. Apercebi-me de como em apenas 30 minutos se pode alterar a imaginação deles. As crianças pintam aquilo que vêem e aquilo com que sonham».

Em Al Amari, Ramzi passou a partilhar alguns momentos de estudo com a vizinhança. «Às vezes tocava em frente à minha casa. As crianças aproximavam-se e pediam-me determinada música. Então eu dizia-lhes que, para tocá-la, tinha de mexer os dedos de determinada maneira. E eles ficavam a pensar que eu era um mágico…»

Os «workshops» são uma ocasião para muitos miúdos verem, pela primeira vez, um violino ou uma flauta

Hoje, os miúdos que frequentam os «workshops» Al Kamandjati não revelam tanta inocência. No entanto, para muitos é uma oportunidade para, pela primeira vez, verem e tocarem num violino, numa flauta ou numa trompa. No «Kids Club» de Jericó, por exemplo, os níveis de concentração, a disciplina e o interesse são elevados. O espaço é acolhedor, há um jardim e uma piscina, sobra espaço para correr e saltar e não faltam jogos nem brinquedos. Pelos corredores, as crianças cruzam-se com o Pinóquio, a Bela Adormecida, Fred Flintstone ou o Nemo, em coloridos murais pintados nas paredes.

Pelo contrário, no campo de Balata — o maior da Cisjordânia, com 21.903 refugiados registados pelas Nações Unidas — os músicos defrontam-se com alguma hostilidade. Balata é um campo difícil. Há ruas tão estreitas que os prédios dos dois lados quase se tocam. Nas escolas, em vez de desenhos e colagens nas paredes, há fotografias coloridas… de mártires. E quando se lhes tenta tirar uma fotografia, os miúdos fazem pose simulando o disparo de uma arma.

Ruas estreitas, no campo de refugiados de Balata MARGARIDA MOTA

No Centro para a Juventude de Balata, o pequeno Saif revela-se um craque do audiovisual, fotografando e gravando as actividades. A dada altura aproxima-se de uma janela e faz um comentário, curto mas imperceptível. Saif quer fazer-se entender e corre a buscar uma máquina digital: aponta-a à janela, faz um grande «zoom», dispara e, por fim, mostra o motivo do seu comentário: «Judeus!» O campo cresceu morro acima e, lá no alto, há postos de vigia israelitas, omnipresentes na vida do campo.

Campo de refugiados de Balata: miúdos agressivos MARGARIDA MOTA

Ramzi salienta que é importante que as crianças palestinianas contactem com povos para além do israelita e percebam que os estrangeiros podem ser sorridentes e gentis — e não necessariamente pessoas dentro de tanques ou com armas na mão. É este, aliás, um dos grandes objectivos das missões Al Kamandjati. Porém, o violetista não partilha os sonhos de Daniel Barenboim, o maestro judeu que fundou uma orquestra israelo-árabe.

É importante as crianças perceberem que há estrangeiros sem tanques nem armas

O logótipo Al Kamandjati — um «keffieh» em forma de clave de sol — traduz, sem equívocos, a natureza palestiniana do seu projecto, ainda que, por vezes, esse cartão de visita lhe dificulte a vida num território onde o conflito está ao dobrar de cada esquina. O clarinetista Thierry, com 23 anos mas um veterano nestas andanças, recorda como, no ano passado, foram proibidos de tocar junto ao simbólico «checkpoint» de Khalandia, entre Ramallah e Jerusalém.

Romain, de 22 anos, recorda outro episódio, num «checkpoint» de Jericó. Quando os soldados dificultavam a passagem a um dos músicos palestinianos, Romain saca do violino e, ali mesmo, acompanha o músico em apuros num concerto improvisado. Acabariam por seguir viagem.

Este ano, o ponto culminante da missão Al Kamandjati foi a inauguração da sua primeira escola, na cidade velha de Ramallah. Na véspera, chegou um contentor com duas toneladas de instrumentos, angariados um pouco por todo o mundo — novos e usados, uns inteiros, outros a precisarem de ser reconstruídos.

(FOTO PRINCIPAL Campo de Al Amari: Ramzi bate ritmos com as mãos e uma menina reproduz. Nunca se sabe quando se revela um talento MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado na Única do “Expresso”, a 22 de outubro de 2005

Campo de Al Amari: Ramzi bate ritmos com as mãos e uma menina reproduz. Nunca se sabe quando se revela um talento

“Expresso” acompanha o único fugitivo

Makan, exausto, momentos após ter saltado a vedação de Melilla ANA BAIÃO

Makan nasceu no Mali. Na quinta-feira, depois de ter percorrido milhares de quilómetros, iludiu as autoridades espanholas e entrou clandestinamente em Melilla. Do seu grupo, de cerca de 500 indivíduos, apenas ele escapou. Desorientado, cruzou-se com a equipa do “Expresso”, que o acompanhou às urgências do hospital. Coberto de chagas, provocadas pelo arame farpado da vedação que trepara, Makan confessou estar só no mundo. 

Drama de um refugiado em Melilla

Cerca de 500 clandestinos tentaram, na madrugada de ontem, passar a fronteira entre Marrocos e Melilla, mas apenas Makan conseguiu. O “Expresso” encontrou-o, minutos depois de entrar na cidade, nas imediações do bairro chinês. Coxeava e esboçava, frequentemente, esgares de dor.

As luvas de metalúrgico que trazia nas mãos, e que todos os clandestinos usam para se desembaraçarem do arame farpado no cimo da vedação, estavam rasgadas. Nos pés, já sem sapatos, os dedos escapavam através das meias rotas. Vestia dois pares de calças e uma “T-shirt” por baixo de uma camisa estampada com fotografias de David Beckham.

As jornalistas do “Expresso” solicitaram ao seu taxista que transportasse o homem até ao hospital local. Mas Jossein não quis arriscar. Se as autoridades o apanhassem com um ilegal dentro do veículo teria problemas pela certa.

Enquanto se espera por um carro que o transporte, o clandestino senta-se, com dificuldade, numa pedra na berma da estrada. Em silêncio fixa o asfalto. Entregue aos seus pensamentos, o seu olhar está cada vez mais assustado.

Não se furta à conversa, mas a comunicação é difícil. Fica-se a saber que saltou a vedação sozinho e não encontrou polícias espanhóis. Do lado marroquino, sim, havia espancamentos.

Um autocarro pára e o motorista estende uma garrafa de água. O clandestino tem alguma dificuldade em pegar nela, mas lá consegue molhar os lábios. Queixa-se muito da mão direita e não pára de tremer. Aceita tudo o que lhe é sugerido. Entra nas urgências do Hospital Comarcal pelo próprio pé e desaparece por uma porta. Na recepção, fica um curto registo: “Makan, do Mali”.

Reportagem em Melilla realizada com a fotógrafa Ana Baião. Artigo publicado no Expresso, a 7 de outubro de 2005

Em busca do sonho

Os candidatos a imigrantes continuam a saltar todas as barreiras para chegar à Europa, que em Melilla fica um bocadinho mais próxima. Fazem milhares de quilómetros a pé e sujeitam-se a tudo. Reportagem em Melilla, com fotos de Ana Baião

Na sequência das vagas de imigração clandestina que irrompem diariamente em Ceuta e Melilla, o Governo espanhol pediu à União Europeia para acelerar as medidas de controlo previstas em relação a Marrocos. Em causa, um acordo de readmissão de clandestinos e o desbloqueamento de uma verba já decidida de 40 milhões de euros. Nos próximos dias, uma missão da Comissão deslocar-se-á aos dois enclaves, para examinar “in loco” a situação.

O presidente do Governo da cidade autónoma de Melilla pediu entretanto autorização para poder expulsar os clandestinos sem necessidade de tramitação, contrariando a lei dos estrangeiros, que obriga a que os imigrantes sejam identificados e recebam uma ordem de expulsão que deve passar pela delegação do Governo. Na ausência de acordos de repatriação com os países de origem, os clandestinos recebem um salvo-conduto para serem transferidos para a península, que deverão abandonar em 40 dias.

De visita aos dois territórios, a vice-presidente do Governo Teresa de la Vega garantiu que vão começar de imediato as repatriações para Marrocos, em conformidade com um convénio subscrito em 1992, no âmbito do qual Rabat se compromete a readmitir todos os que entrem ilegalmente em Espanha a partir do seu território. Em Ceuta, uma manifestação de naturais reivindicou a hispanidade” da cidade, conquistada pelos portugueses em 1415 e cedida aos espanhóis na sequência do domínio dos Filipes, em 1640.

O despertar dos clandestinos no campo da Cruz Vermelha é estremunhado e silencioso. De seu, têm apenas a roupa do corpo e os cobertores que lhes cederam para dormir ANA BAIÃO

VIDA NOVA NA GRANDE ESPANHA

Eram seis, perdidos no centro de Melilla, passava pouco das seis da manhã de quarta-feira. Davam nas vistas porque caminhavam depressa e em grupo. No corpo, as roupas rotas denunciavam uma jornada complicada. Dois deles tinham as pernas ensanguentadas, um outro seguia descalço. Sem abrandar o passo, quebraram o silêncio para dizer que tinham saído do Mali “há muito tempo” e que estavam “muito cansados”. Em mente, um único objectivo: chegar o mais rápido possível ao posto da Polícia de Melilla.

É para aí que correm todos os clandestinos que conseguem saltar a dupla vedação metálica que funciona como fronteira entre Marrocos e aquela cidade autónoma espanhola. É aí que obtêm o tão desejado documento que atesta a sua entrada ilegal em Espanha e requer o seu repatriamento. Como não trazem documentos de identificação, as autoridades não conseguem provar a sua origem, logo, não os conseguem repatriar. São então mandados para o Centro de Estadia Temporária de Imigrantes (CETI), onde passam a usufruir de um mínimo de assistência médica e alimentar e de um sítio para dormir.

O truque é chegar sem documentação para não ser repatriado

Na madrugada de quarta-feira, foram 65 os ilegais que conseguiram saltar a fronteira, na zona de Pinares de Rostrogordo. Cerca de 500 tentaram-no, recorrendo a escadas feitas de paus amarrados com pedaços de roupa, que já se tornaram a imagem de marca das investidas clandestinas sobre Melilla.

O assalto de quarta-feira ocorreu numa zona onde a vedação só tem três metros de altura. A maioria dos seus 10,2 quilómetros tem seis metros. Na terça, um dia após a investida mais violenta em Melilla (350 ilegais entraram e quatro guardas civis e três soldados ficaram feridos), as autoridades espanholas anunciaram a construção de uma terceira vedação à volta da cidade. “Não vai adiantar nada”, comenta Alberti, um fotógrafo de Melilla. “Eles saltam uma, saltam duas e saltarão a terceira”.

Com a roupa do corpo

À hora a que os seis malianos chegavam ao posto da Polícia, onde cerca de 40 outros ilegais esperavam no exterior do edifício e já tinham colado no peito o respectivo número de atendimento, cerca de 1600 imigrantes acolhidos no CETI acordavam para um novo dia. O CETI há muito que atingiu o ponto de saturação: há 1200 subsarianos num espaço pensado para 450, e tendas militares e da Cruz Vermelha espanhola dão guarida a mais uns 500. Ainda assim, cerca de 100 dormiram ao relento, nos terrenos adjacentes à entrada do centro.

O despertar desses clandestinos é estremunhado e silencioso. Vagarosamente, sacodem e dobram os cobertores em que se envolveram. São os únicos trapos de que dispõem para além da roupa no corpo. Pegam em garrafas de água, lavam a cara, esfregam os dentes. Pode observar-se tudo da berma da estrada.

Em frente ao centro, do outro lado da rua, a dupla rede metálica recorda-lhes as privações que, acreditam, já ficaram para trás. Sentado junto ao gradeamento que delimita o CETI, Famori, de 29 anos, concentra-se na leitura de uma folha de papel. Alguém lhe escreveu umas quantas palavras e expressões em castelhano, e Famori empenha-se em memorizá-las. No Mali, ele “era pintor… artista”, mas a vida não lhe sorria. Um dia decidiu-se e fez-se à estrada. Passou sete dias a andar de carro, entre o Mali e a Argélia, e outros sete a andar a pé, entre a Argélia e Marrocos. “É difícil, corre-se muito”, diz.

Ronaldo é o maior!

Seguiram-se dois anos na floresta de Maliuari, “à espera, à espera… a tentar a sorte, a tentar a sorte…” Lá, aprendeu a construir as escadas de paus e, por dez vezes, lançou-se rede acima. No dia 27, caiu finalmente em Melilla. Agora, quer começar uma vida nova na “grande Espanha”, como ele diz, como “pintor… artista”.

Brulle, de 20 anos, e Hausseman, de 25, seguiram um percurso semelhante ao de Famori. Tal como ele, nasceram no Mali — a maioria dos clandestinos acreditados no CETI são oriundos da África francófona (Camarões, Mali, Gana, Benim, Togo e Costa do Marfim). Tal como ele, lançaram-se na aventura clandestina. Passaram para Melilla dois dias depois de Famori. Agora, no CETI, até parecem jovens despreocupados quando, confrontados com a camisola da selecção nacional portuguesa de futebol que Brulle tem vestida, comentam: “Cristiano Ronaldo! É o maior!”

A PÉ, DESDE OS CAMARÕES

“Mãe, estou num campo chamado Melilla. Acredita, não te estou a enganar. Uma jornalista portuguesa emprestou-me o telefone. Não, mamã, não te estou a enganar”. A mãe de Jules mal conseguia acreditar que o filho tinha entrado em Espanha. O rapaz saíra de casa, nos Camarões, há dois anos, tinha então 18 anos. Partiu com um amigo da mesma idade, Romiald, fiel companheiro das horas difíceis. Juntos lançaram a escada à vedação, treparam-na como gatos discretos, desenvencilharam-se das hélices de arame farpado, saltaram para a “terra de ninguém” (a zona neutra no meio das duas vedações) e repetiram o procedimento para saltar a segunda vedação. Jules e Romiald estão em Melilla fez na quarta-feira uma semana.

A viagem desde os Camarões foi atribulada. Começou por seguir em direcção à Nigéria, Benin, Togo, Burkina Faso, Mali e Mauritânia. Daí voltou ao Mali e corrigiu a rota na direcção da Argélia. Por fim, abrigou-se na noite para atravessar a pé a fronteira argelo-marroquina, que está encerrada em virtude dos dois países não terem relações diplomáticas. Depois, foram mais 300 quilómetros a pé.

Sobrevivia como podia, arranjando trabalho nos sítios por onde passava ou pedindo à berma da estrada. Mas de todos os países por onde passou, Jules não consegue eleger um particularmente complicado. Verdadeiramente dramático foram alguns momentos: “…quando não tinha comida, nem roupa…”

Jules (ao telefone) e Romiald, amigos inseparáveis ANA BAIÃO

Em Marrocos, Jules e Romiald passaram oito meses na floresta, com a fronteira no horizonte. De vez em quando, a polícia marroquina aparecia para dispersar quem lá estava abrigado. Lembra-se de uma madrugada, eram três da manhã, em que começaram a fugir dos marroquinos e só pararam 15 quilómetros adiante.

Jules fez a “escola” da floresta. Aprendeu a fazer escadas e, todos os dias, tirava as medidas à vedação, estudando a melhor forma de a superar. Para quem atravessa um terço do continente africano, não há medo nem receio que impeçam o salto final, pelo que um dia, juntamente com Romiald, lançou-se à rede. Havia polícia por perto, mas seria um erro olhar para trás: “Corremos, caímos, levantámo-nos, voltámos a correr…”

Agora que se sente na Europa, permite-se sonhar alto. Jules quer ir para Barcelona… porque adora futebol e gostava de tentar uma carreira no desporto. Romiald vai com ele, claro.

A VOLUNTÁRIA ESPANHOLA

No pátio de gravilha onde se erguem as tendas de campanha do Exército e da Cruz Vermelha, várias reuniões de clandestinos, à volta de umas pequenas mesas metálicas, geram curiosidade. Numa delas, uma jovem capta a atenção de 12 deles. Todos a fixam e escutam atentamente, e só por breves segundos se distraem com o que se passa à volta.

A rapariga chama-se Mari Paz, tem 32 anos, é natural de Madrid, mas trabalha como assistente social em Melilla. Na terça-feira, começou a trabalhar como voluntária no CETI. Vou procurar desenvolver um trabalho de sensibilização e de tranquilização. Eles estão nervosos, perdidos e desorientados. Não sabem o que os espera, diz.

Mari Paz (de amarelo) ensina os rudimentos de espanhol aos candidatos à imigração ANA BAIÃO

Kimosani, um guineense de 23 anos, é um desses casos. Partiu de Bissau em 1998 e chegou ao CETI na terça-feira. Não sabe para onde quer ir; em contrapartida, enumera, sem gaguejar, todas as etapas da sua longa caminhada: Gâmbia, Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos.

A pedido dos subsarianos, Mari Paz começou a ensinar-lhes palavras em castelhano, que eles repetem em coro, sílaba por sílaba. “Perguntam-me qual é a melhor região de Espanha para trabalhar na agricultura. Querem saber o que se faz em cada região do país”. Numa mesa ao lado, outra rapariga distribui fotocópias com o mapa da Europa. Os africanos que se lançam na aventura da clandestinidade sonham em chegar à Europa, mas poucos estarão conscientes de que, ali chegados, não pisaram ainda solo europeu. “Temos de lhes explicar que Melilla é ainda África e não Europa”, diz Mari Paz.

Artigo publicado no Expresso, a 7 de outubro de 2005

Vaga de investidas de ‘ilegais’ às portas de Ceuta e Melilla

Vedação metálica que serve de fronteira entre Marrocos e Espanha, no território espanhol de Melilla ONGAYO / WIKIMEDIA COMMONS

O exército espanhol está desde quinta-feira a apoiar a Guarda Civil em acções de vigilância nas fronteiras de Ceuta e Melilla — duas cidades espanholas autónomas encravadas na costa mediterrânica de Marrocos. A ordem de destacamento de 480 soldados foi dada na sequência de várias tentativas de infiltração ilegal, esta semana, por parte de cidadãos africanos.

Na terça-feira, 500 pessoas tentaram escalar a vedação metálica que funciona como fronteira entre Marrocos e Melilla — com a ajuda de escadas feitas de paus que eles próprios improvisam — e assim vencer a distância entre a vida de miséria que têm e o mundo da abundância com que sonham. Na madrugada de quarta para quinta-feira, outras 600 arriscaram a vida para entrar ilegalmente em Ceuta.

Cinco pessoas morreram — duas caíram em solo espanhol e três para o lado marroquino — e várias dezenas ficaram feridas. De imediato, Espanha e Marrocos anunciaram a abertura de uma investigação conjunta”, designadamente para averiguar a origem dos tiros disparados.

Na manhã de quinta-feira, as autoridades marroquinas abortavam nova tentativa de assalto por parte de cerca de 300 pessoas, desta feita em Melilla. Estava dado o sinal de que a fonte de pessoas desejosas por tentar a sua sorte — muro acima — parece inesgotável.

Tradicionalmente, Melilla tem sido o território mais problemático no que ao tráfico ilegal de imigrantes diz respeito. Mas o facto do cenário dos trágicos acontecimentos desta semana ter sido Ceuta revela a crescente adaptação das máfias às novas realidades e a sua sobrevivência ao cerco cada vez mais apertado às “pateras” — os barcos carregados de gente que atravessam Gibraltar e tentam desembarcar clandestinamente na costa espanhola.

Qualquer pessoa em situação ilegal não pode ser expulsa de Espanha sem que seja atestada a sua identidade e origem

Em Espanha, há quem denuncie que estas avalanchas de “ilegais” são consentidas pelas autoridades de Rabat, ao serviço de uma estratégia política de recuperação de Ceuta e Melilla, que Marrocos reivindica como parte integrante do território.

Para a vice-presidente do Governo espanhol, María Teresa Fernández de la Vega, estes assaltos não resultam de qualquer “efeito sedutor” exercido pela legislação espanhola sobre os candidatos a imigrantes. Porém, qualquer pessoa em situação ilegal não pode ser expulsa de Espanha sem que seja atestada a sua identidade e origem.

A “vantagem” de não ter BI

Assim sendo, quando um “indocumentado” é detido ao tentar entrar em território espanhol, é internado durante 40 dias num centro “ad hoc” e só depois apresentado a um juiz, que, dada a impossibilidade de provar a identidade e origem, não tem outro remédio senão deixá-lo em liberdade.

Com os acontecimentos de Ceuta a quente, o presidente daquela cidade, Juan Jesús Vivas, apelou a alterações legislativas no sentido de tornar possível que “os imigrantes que violem a fronteira possam ser repatriados imediatamente para Marrocos”.

No mesmo dia em que Ceuta era notícia, os chefes de Governo de Espanha e de Marrocos, José Luis Rodriguez Zapatero e Driss Jettu, reuniam-se em Sevilha para uma cimeira bilateral. Tal como acontece em relação à questão do Sara Ocidental, a imigração ilegal é um tema recorrente na agenda de trabalhos entre os dois países.

Os marroquinos dizem que não são suficientemente ajudados por Espanha e pela União Europeia e apelam à conclusão de acordos de repatriamento directo com os países de origem dos “ilegais”.

Por seu turno, os espanhóis querem rever um acordo bilateral sobre os menores marroquinos que entram clandestinamente em Espanha, datado de 2003 e que se tem revelado um verdadeiro filão para as máfias: se não for localizada a família dos menores, o seu repatriamento é interdito.

Enquanto Espanha e Marrocos não afinam a legislação, o combate ao flagelo vai-se fazendo através de medidas cirúrgicas de consequências a curto prazo. Rabat anunciou o envio de mais mil agentes para Melilla e outros 600 para Ceuta para tentar conter novas investidas, enquanto Madrid, para além dos militares já enviados, anunciou melhorias nos centros temporários de internamento dos imigrantes e medidas de carácter social.

Artigo escrito com o contributo de Ángel Luis de la Calle, correspondente do “Expresso” em Madrid e publicado no Expresso, a 1 de outubro de 2015