Os candidatos a imigrantes continuam a saltar todas as barreiras para chegar à Europa, que em Melilla fica um bocadinho mais próxima. Fazem milhares de quilómetros a pé e sujeitam-se a tudo. Reportagem em Melilla, com fotos de Ana Baião
Na sequência das vagas de imigração clandestina que irrompem diariamente em Ceuta e Melilla, o Governo espanhol pediu à União Europeia para acelerar as medidas de controlo previstas em relação a Marrocos. Em causa, um acordo de readmissão de clandestinos e o desbloqueamento de uma verba já decidida de 40 milhões de euros. Nos próximos dias, uma missão da Comissão deslocar-se-á aos dois enclaves, para examinar “in loco” a situação.
O presidente do Governo da cidade autónoma de Melilla pediu entretanto autorização para poder expulsar os clandestinos sem necessidade de tramitação, contrariando a lei dos estrangeiros, que obriga a que os imigrantes sejam identificados e recebam uma ordem de expulsão que deve passar pela delegação do Governo. Na ausência de acordos de repatriação com os países de origem, os clandestinos recebem um salvo-conduto para serem transferidos para a península, que deverão abandonar em 40 dias.
De visita aos dois territórios, a vice-presidente do Governo Teresa de la Vega garantiu que vão começar de imediato as repatriações para Marrocos, em conformidade com um convénio subscrito em 1992, no âmbito do qual Rabat se compromete a readmitir todos os que entrem ilegalmente em Espanha a partir do seu território. Em Ceuta, uma manifestação de naturais reivindicou a “hispanidade” da cidade, conquistada pelos portugueses em 1415 e cedida aos espanhóis na sequência do domínio dos Filipes, em 1640.

VIDA NOVA NA GRANDE ESPANHA
Eram seis, perdidos no centro de Melilla, passava pouco das seis da manhã de quarta-feira. Davam nas vistas porque caminhavam depressa e em grupo. No corpo, as roupas rotas denunciavam uma jornada complicada. Dois deles tinham as pernas ensanguentadas, um outro seguia descalço. Sem abrandar o passo, quebraram o silêncio para dizer que tinham saído do Mali “há muito tempo” e que estavam “muito cansados”. Em mente, um único objectivo: chegar o mais rápido possível ao posto da Polícia de Melilla.
É para aí que correm todos os clandestinos que conseguem saltar a dupla vedação metálica que funciona como fronteira entre Marrocos e aquela cidade autónoma espanhola. É aí que obtêm o tão desejado documento que atesta a sua entrada ilegal em Espanha e requer o seu repatriamento. Como não trazem documentos de identificação, as autoridades não conseguem provar a sua origem, logo, não os conseguem repatriar. São então mandados para o Centro de Estadia Temporária de Imigrantes (CETI), onde passam a usufruir de um mínimo de assistência médica e alimentar e de um sítio para dormir.
O truque é chegar sem documentação para não ser repatriado
Na madrugada de quarta-feira, foram 65 os ilegais que conseguiram saltar a fronteira, na zona de Pinares de Rostrogordo. Cerca de 500 tentaram-no, recorrendo a escadas feitas de paus amarrados com pedaços de roupa, que já se tornaram a imagem de marca das investidas clandestinas sobre Melilla.
O assalto de quarta-feira ocorreu numa zona onde a vedação só tem três metros de altura. A maioria dos seus 10,2 quilómetros tem seis metros. Na terça, um dia após a investida mais violenta em Melilla (350 ilegais entraram e quatro guardas civis e três soldados ficaram feridos), as autoridades espanholas anunciaram a construção de uma terceira vedação à volta da cidade. “Não vai adiantar nada”, comenta Alberti, um fotógrafo de Melilla. “Eles saltam uma, saltam duas e saltarão a terceira”.
Com a roupa do corpo
À hora a que os seis malianos chegavam ao posto da Polícia, onde cerca de 40 outros ilegais esperavam no exterior do edifício e já tinham colado no peito o respectivo número de atendimento, cerca de 1600 imigrantes acolhidos no CETI acordavam para um novo dia. O CETI há muito que atingiu o ponto de saturação: há 1200 subsarianos num espaço pensado para 450, e tendas militares e da Cruz Vermelha espanhola dão guarida a mais uns 500. Ainda assim, cerca de 100 dormiram ao relento, nos terrenos adjacentes à entrada do centro.
O despertar desses clandestinos é estremunhado e silencioso. Vagarosamente, sacodem e dobram os cobertores em que se envolveram. São os únicos trapos de que dispõem para além da roupa no corpo. Pegam em garrafas de água, lavam a cara, esfregam os dentes. Pode observar-se tudo da berma da estrada.
Em frente ao centro, do outro lado da rua, a dupla rede metálica recorda-lhes as privações que, acreditam, já ficaram para trás. Sentado junto ao gradeamento que delimita o CETI, Famori, de 29 anos, concentra-se na leitura de uma folha de papel. Alguém lhe escreveu umas quantas palavras e expressões em castelhano, e Famori empenha-se em memorizá-las. No Mali, ele “era pintor… artista”, mas a vida não lhe sorria. Um dia decidiu-se e fez-se à estrada. Passou sete dias a andar de carro, entre o Mali e a Argélia, e outros sete a andar a pé, entre a Argélia e Marrocos. “É difícil, corre-se muito”, diz.
Ronaldo é o maior!
Seguiram-se dois anos na floresta de Maliuari, “à espera, à espera… a tentar a sorte, a tentar a sorte…” Lá, aprendeu a construir as escadas de paus e, por dez vezes, lançou-se rede acima. No dia 27, caiu finalmente em Melilla. Agora, quer começar uma vida nova na “grande Espanha”, como ele diz, como “pintor… artista”.
Brulle, de 20 anos, e Hausseman, de 25, seguiram um percurso semelhante ao de Famori. Tal como ele, nasceram no Mali — a maioria dos clandestinos acreditados no CETI são oriundos da África francófona (Camarões, Mali, Gana, Benim, Togo e Costa do Marfim). Tal como ele, lançaram-se na aventura clandestina. Passaram para Melilla dois dias depois de Famori. Agora, no CETI, até parecem jovens despreocupados quando, confrontados com a camisola da selecção nacional portuguesa de futebol que Brulle tem vestida, comentam: “Cristiano Ronaldo! É o maior!”
A PÉ, DESDE OS CAMARÕES
“Mãe, estou num campo chamado Melilla. Acredita, não te estou a enganar. Uma jornalista portuguesa emprestou-me o telefone. Não, mamã, não te estou a enganar”. A mãe de Jules mal conseguia acreditar que o filho tinha entrado em Espanha. O rapaz saíra de casa, nos Camarões, há dois anos, tinha então 18 anos. Partiu com um amigo da mesma idade, Romiald, fiel companheiro das horas difíceis. Juntos lançaram a escada à vedação, treparam-na como gatos discretos, desenvencilharam-se das hélices de arame farpado, saltaram para a “terra de ninguém” (a zona neutra no meio das duas vedações) e repetiram o procedimento para saltar a segunda vedação. Jules e Romiald estão em Melilla fez na quarta-feira uma semana.
A viagem desde os Camarões foi atribulada. Começou por seguir em direcção à Nigéria, Benin, Togo, Burkina Faso, Mali e Mauritânia. Daí voltou ao Mali e corrigiu a rota na direcção da Argélia. Por fim, abrigou-se na noite para atravessar a pé a fronteira argelo-marroquina, que está encerrada em virtude dos dois países não terem relações diplomáticas. Depois, foram mais 300 quilómetros a pé.
Sobrevivia como podia, arranjando trabalho nos sítios por onde passava ou pedindo à berma da estrada. Mas de todos os países por onde passou, Jules não consegue eleger um particularmente complicado. Verdadeiramente dramático foram alguns momentos: “…quando não tinha comida, nem roupa…”

Em Marrocos, Jules e Romiald passaram oito meses na floresta, com a fronteira no horizonte. De vez em quando, a polícia marroquina aparecia para dispersar quem lá estava abrigado. Lembra-se de uma madrugada, eram três da manhã, em que começaram a fugir dos marroquinos e só pararam 15 quilómetros adiante.
Jules fez a “escola” da floresta. Aprendeu a fazer escadas e, todos os dias, tirava as medidas à vedação, estudando a melhor forma de a superar. Para quem atravessa um terço do continente africano, não há medo nem receio que impeçam o salto final, pelo que um dia, juntamente com Romiald, lançou-se à rede. Havia polícia por perto, mas seria um erro olhar para trás: “Corremos, caímos, levantámo-nos, voltámos a correr…”
Agora que se sente na Europa, permite-se sonhar alto. Jules quer ir para Barcelona… porque adora futebol e gostava de tentar uma carreira no desporto. Romiald vai com ele, claro.
A VOLUNTÁRIA ESPANHOLA
No pátio de gravilha onde se erguem as tendas de campanha do Exército e da Cruz Vermelha, várias reuniões de clandestinos, à volta de umas pequenas mesas metálicas, geram curiosidade. Numa delas, uma jovem capta a atenção de 12 deles. Todos a fixam e escutam atentamente, e só por breves segundos se distraem com o que se passa à volta.
A rapariga chama-se Mari Paz, tem 32 anos, é natural de Madrid, mas trabalha como assistente social em Melilla. Na terça-feira, começou a trabalhar como voluntária no CETI. “Vou procurar desenvolver um trabalho de sensibilização e de tranquilização. Eles estão nervosos, perdidos e desorientados. Não sabem o que os espera”, diz.

Kimosani, um guineense de 23 anos, é um desses casos. Partiu de Bissau em 1998 e chegou ao CETI na terça-feira. Não sabe para onde quer ir; em contrapartida, enumera, sem gaguejar, todas as etapas da sua longa caminhada: Gâmbia, Senegal, Mauritânia, Mali, Burkina Faso, Níger, Líbia, Tunísia, Argélia e Marrocos.
A pedido dos subsarianos, Mari Paz começou a ensinar-lhes palavras em castelhano, que eles repetem em coro, sílaba por sílaba. “Perguntam-me qual é a melhor região de Espanha para trabalhar na agricultura. Querem saber o que se faz em cada região do país”. Numa mesa ao lado, outra rapariga distribui fotocópias com o mapa da Europa. Os africanos que se lançam na aventura da clandestinidade sonham em chegar à Europa, mas poucos estarão conscientes de que, ali chegados, não pisaram ainda solo europeu. “Temos de lhes explicar que Melilla é ainda África e não Europa”, diz Mari Paz.
Artigo publicado no “Expresso”, a 7 de outubro de 2005

