Nasceu na Palestina e deu a vida por Israel

Ariel Sharon, de cabeça enfaixada, em 1973, durante a Guerra do Yom Kippur, ao lado de Moshe Dayan, o mítico comandante israelita inconfundível com o seu tapa-olho THE ISRAEL DEFENSE FORCES ARCHIVE / WIKIMEDIA COMMONS

Aos 77 anos, Ariel Sharon sai de cena no auge da sua popularidade. Era ele que os israelitas pareciam dispostos a reconduzir no cargo de primeiro-ministro, nas eleições de 28 de Março, sancionando uma relação de confiança iniciada há cinco anos quando Sharon elegeu a segurança de Israel como missão.

Em nome desse desígnio, mandou erguer um “muro” à volta da Cisjordânia para conter os ataques suicidas — evidenciando assim uma faceta de “falcão”, hostil ao diálogo com os palestinianos.

Mas o poder provocaria em Sharon uma metamorfose política. Ele reconhece que a ocupação dos territórios palestinianos não podia durar eternamente e elabora um Plano de retirada unilateral da Faixa de Gaza — expondo uma faceta inédita de “pomba”, favorável a um entendimento com os palestinianos.

A três meses das eleições, era este Sharon bicéfalo que conquistava os israelitas — um líder aberto ao diálogo, mas irredutível em matéria de segurança.

Palestina natal

Ariel Sharon — aliás, Ariel Scheinermann, nascido a 27 de Fevereiro de 1928, em Kfar Malal, na Palestina sob mandato britânico — desenvolveu uma carreira militar notável. Fez a Guerra da Independência (1948) à frente de um batalhão de infantaria e na crise do Suez (1956) comandou a 202.ª brigada pára-quedista.

Durante a Guerra dos Seis Dias (1067), liderou a divisão mais poderosa na frente do Sinai, e na campanha do Yom Kippur (1973), desobedeceu a ordens superiores levando a sua divisão a atravessar o Canal do Suez para isolar um batalhão egípcio.

A folha de serviço em todas as guerras israelo-árabes tornou Sharon um herói em Israel. Mas foi também no campo de batalha que ele escreveria uma das páginas mais negras da sua história. Em 1982, durante a invasão do Líbano, cerca de 800 palestinianos foram chacinados nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, às mãos das milícia falangistas. Sharon seria demitido da pasta da Defesa após uma comissão governamental o ter considerado indirectamente responsável pelo massacre.

Para qualquer político, seria o fim da carreira. Não para Ariel Sharon, que continuaria a ser um activo nos sucessivos Governos. Entre 1990 e 1992, por exemplo, como ministro da Habitação, impulsionou como nunca a construção de colonatos.

Em Setembro de 1999, é eleito para a liderança do Likud. Rodeado por 1500 polícias, desloca-se, a 28 de Setembro de 2000, ao Monte do Templo — Esplanada das Mesquitas para os muçulmanos —, onde reafirma a soberania israelita sobre o lugar mais sagrado do Judaismo. A visita demora apenas 34 minutos, mas foi sentida pelos palestinianos como uma provocação. Seria o início da Intifada Al-Aqsa.

Para enfrentar a revolta nas ruas palestinianas, os israelitas convocam o “bulldozer” — a alcunha que resulta da combinação entre o seu porte robusto e a sua atitude determinada — elegendo-o, em 2001, primeiro-ministro.

Sharon fez todas as guerras israelo-árabes e tornou-se um herói

Na cadeira do poder, Sharon ajusta contas com o seu arqui-inimigo dos últimos 20 anos: isola Yasser Arafat na Muqata de Ramallah, asfixiando-o politicamente. De lá, o líder palestiniano só sairia para morrer numa clínica de Paris, no final de 2004.

Experiente na arte da guerra, Sharon iniciou na quarta-feira, o combate mais desigual de toda a vida. Não eram quatro da tarde quando abandonou o gabinete rumo ao seu rancho no Negev. Lá tencionava repousar até à hora de uma operação ao coração agendada para o dia seguinte. Oito horas depois, dava entrada nas urgências do hospital Hadassah com uma hemorragia cerebral. À mesma hora, iniciavam-se consultas para escolher o seu sucessor no Governo. Ariel Sharon morria politicamente.

CRONOLOGIA

1942 — Com 14 anos, Ariel Sharon adere à Haganah, uma organização militar clandestina.

1948 — Na Guerra da Independência, fica gravemente ferido durante a batalha de Latrun.

1967 — Chefia uma poderosa divisão blindada no Sinai, durante a Guerra dos Seis Dias.

1973 — Na Guerra do Yom Kippur, desobedece aos superiores e leva a sua divisão a atravessar o Canal do Suez para cercar o Exército egípcio. A manobra inverte o curso da guerra.

1977 — É nomeado ministro da Agricultura. O projecto de colonização dos territórios ocupados cai-lhe nas mãos. “Os colonatos judeus não são um obstáculo à paz, mas uma barreira à guerra.”

1982 — Ministro da Defesa, dirige a invasão do Líbano, que visa exterminar a guerrilha palestiniana liderada por Yasser Arafat. É indirectamente responsabilizado pela chacina de 800 palestinianos nos campos de refugiados de Sabra e Shatila. “Ainda tenho vontade de me voluntariar para fazer o trabalho sujo por Israel. Matar os árabes necessários, deportá-los, expulsá-los e queimá-los. Pôr o mundo a odiar-nos, puxar o tapete à diáspora judaica para que venha até nós a chorar. Mesmo que seja necessário explodir uma ou duas sinagogas.”

1998 — É nomeado ministro dos Negócios Estrangeiros. “Cada israelita deve avançar, correr, apoderar-se das terras, expandir o território. Tudo o que for conquistado ficará nas nossas mãos. O que não for, ficará nas mãos deles.”

28 Setembro 2000 — Como líder do Likud, visita a Esplanada das Mesquitas, terceiro lugar santo do Islão, e afirma a soberania israelita sobre o local. Os palestinianos desencadeiam a intifada Al-Aqsa.

6 Fevereiro 2001 — É eleito primeiro-ministro. “Se quisermos uma paz verdadeira e duradoura, temos de fazer concessões dolorosas.”

18 Dezembro 2003 — Apresenta o Plano de Retirada Unilateral da Faixa de Gaza, concluída a 12 Setembro de 2005.

21 Novembro 2005 — Abandona o Likud e funda o Kadima. “Não me arrependo de nada. Mesmo que tivesse antecipado o grau de oposição ao meu plano, tê-lo-ia mantido.”

O QUE ESTÁ EM JOGO*

O desaparecimento de Ariel Sharon marca o fim de uma era?
Seguramente. Ariel Sharon era o político israelita mais popular do momento e aquele em quem os israelitas pareciam mais confiar. Era também, a par com Shimon Peres, o último representante da geração dos pais fundadores do Estado de Israel. Sharon liderava as sondagens às eleições legislativas de 28 de Março. A sua ausência será duramente sentida e alguns analistas utilizam mesmo o termo “catástrofe” para descrever a situação que se vive em Israel.

Quem sucede a Sharon no Governo?
Mal Sharon foi internado, na quarta-feira, o vice-primeiro-ministro Ehud Olmert, de 60 anos, foi nomeado chefe de Governo interino, por um período de 100 dias. Na quinta-feira, Olmert afirmou que pretende continuar com a linha de actuação de Ariel Sharon. Antigo presidente da Câmara de Jerusalém, Olmert tem sido uma espécie de “braço-direito” de Sharon.

O Kadima sobreviverá sem Sharon?
Até agora predominava a noção de que Kadima era Sharon e Sharon era Kadima. Por força das circunstâncias, Ehud Olmert surge como um possível sucessor de Sharon à frente do partido recém-criado pelo líder israelita e que arrastou vários dirigentes do Likud. Mas dois outros nomes perfilam-se para lhe disputar a liderança: a “pomba” Tzipi Livni, ministra da Justiça de 47 anos, e o “falcão” Shaul Mofaz, ministro da Defesa de 57 anos — ambos ex-membros do Likud. O histórico ex-trabalhista Shimon Peres, de 82 anos, é também um nome falado, mas, por ter perdido todas as eleições a que se candidatou em Israel, não parece ser uma hipótese credível. O Kadima adiou a realização das suas primárias.

As eleições israelitas serão adiadas?
Não. O procurador-geral de Israel já confirmou que as eleições legislativas terão lugar na data agendada: 28 de Março.

Que consequências para a disputa eleitoral?
Uma sondagem divulgada após o internamento de Ariel Sharon continua a dar o favoritismo ao Kadima — com 40 deputados eleitos num total de 120. A próxima sondagem mostrará se este resultado resulta apenas da onda emocional à volta da doença de Sharon, ou se o Kadima veio para ficar. Porém, a ausência da personalidade forte de Sharon pode motivar algumas mexidas no reordenamento do xadrez político e fazer Israel regressar à tradicional bipolaridade política — entre o Partido Likud (direita), que com Benjamin Netanyahu ao leme recupera da hemorragia política causada pela saída de Sharon e muitos outros dirigentes, e o Partido Trabalhista, animado pela nova liderança do sindicalista Amir Peretz. À parte os imponderáveis, é certo que uma nova geração de jovens líderes acaba de chegar à linha da frente da política israelita.

Como encaram os palestinianos a ausência de Sharon?
A reacção palestiniana à doença do primeiro-ministro israelita não foi unânime. Para o porta-voz do movimento islâmico Hamas, Mushir al-Masri, “se Sharon morrer, não há dúvida de que esse novo desenvolvimento mudará o mapa político mundial, e para melhor, porque um ditador e um assassino estará de partida”. Já o Presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmud Abbas (Abu Mazen), referiu-se ao estado de saúde de Sharon “com grande preocupação”, antevendo consequências directas na campanha eleitoral em curso nos territórios palestinianos, com vista às legislativas do próximo dia 25. A braços com uma situação de caos e anarquia na Faixa de Gaza e dúvidas em relação ao direito de voto dos palestinianos residentes em Jerusalém Oriental — que Israel não quer permitir —, a realização das legislativas palestinianas é ainda uma incerteza.

Que efeitos para o diálogo israelo-palestiniano?
O futuro das relações entre israelitas e palestinianos depende muito da direcção que Israel tomar após as eleições que se avizinham. Ariel Sharon, cuja prioridade era a segurança, tencionava recuar de parte da Cisjordânia. Seguramente, não de todo o território, mas pelo menos de 40% da Cisjordânia. Ao mesmo tempo, parecia convencido de que o traçado da fronteira de Israel deveria avançar entre dez e 12 quilómetros na direcção da Cisjordânia. À semelhança do processo que concluiu na retirada israelita da Faixa de Gaza, Sharon queria fazê-lo unilateralmente, à revelia das autoridades palestinianas. Só as eleições de 28 de Março ditarão com que tipo de interlocutor poderão os palestinianos contar: Ehud Olmert e a linha moderada mas realista de Ariel Sharon? Benjamin Netanyahu e a rejeição do diálogo? Ou a abertura negocial de Amir Peretz?

* Texto escrito em colaboração com Victor Cygielman, em Telavive

Artigos publicados no Expresso, a 7 de janeiro de 2006