“Há uma efervescência no mundo árabe”

Mongi Bousnina, director geral da Organização Árabe para a Educação, a Cultura e as Ciências (ALECSO), uma agência especializada da Liga Árabe, semelhante à UNESCO, sediada em Tunis, esteve recentemente em Lisboa para assinar um acordo de cooperação com o Instituto Luso-Árabe para a Cooperação e estabelecer contactos. Em entrevista ao “Expresso” afirmou que a Europa e o mundo árabe estão “condenados” ao diálogo: A Europa necessita da paz a Sul e os países árabes necessitam da Europa para se desenvolverem.

EXPRESSO O que é a ALECSO?

MONGI BOUSNINA  É a UNESCO do mundo árabe. Tem 22 países membros, foi criada em 1970 e, tal como a UNESCO, trabalha nos domínios da cultura, da educação e das ciências. Em relação à educação. o seu objectivo é a melhoria do ensino no mundo árabe: as reformas, a modernização do ensino, particularmente do ensino superior. Na última reunião dos ministros do ensino superior, na semana passada, no lémene, discutiram-se conceitos como a qualidade, a inovação e a investigação científica. Em meados do próximo mês, faremos uma reunião dos ministros da educação sobre a primeira infância, a educação pré-escolar. Ao nível da melhoria da educação, e tal como faz a UNESCO, queremos pôr em prática estratégias de desenvolvimento: da educação, da cultura, da educação científica, da educação informática, sobre o ensino à distância, sobre a internet, etc. Ao todo, a ALECSO tem doze estratégias de desenvolvimento para o mundo árabe. Ao nível da cultura, trabalhamos muito no domínio do diálogo de culturas, entre intelectuais, artistas, académicos para pôr em prática valores comuns e universais como os direitos do homem, a democracia e a cidadania.

EXP. — Essa estratégia cultural é prioritária em relação a qualquer estratégia política?

M.B. — Sim, porque ela prepara a estratégia política. Quando se quer fazer política, deve-se começar por lançar ideias. E quem tem ideias são geralmente os pensadores, os intelectuais, os professores, os investigadores que, ao criarem movimentos de pensamento e reflexão, podem influenciar e orientar os decisores políticos. Hoje. o mundo árabe tem relações privilegiadas com a Europa, como um todo e país a país. Mas ao nível dos princípios de Barcelona. que cumpriram dez anos este ano, ainda não se registaram sucessos no plano cultural. O que se faz não é suficiente. Por isso, há que desenvolver mais as relações com o Conselho da Europa, com a União Europeia e com cada país bilateralmente, No próximo ano, vamos organizar um colóquio sobre Islamismo, em Sarajevo, o que é simbólico no plano da reconciliação entre religiões. Pugnamos pela criação de condições favoráveis para que haja contactos estreitos e tentamos melhorar a imagem do mundo árabe, evitar os mal-entendidos e as más-interpretações.

EXP. — Quais deverão ser as próximas prioridades do Processo de Barcelona?

M.B. — É preciso continuar a apoiar as economias dos países do sul. O problema de África, e agora ao nível da imigração, é sobretudo subsariana, que também constitui um problema para os países do Magrebe. Há que ajudar os países do Mediterrâneo a encontrar empregos e recursos para fixarem as suas populações. O sul do Mediterrâneo constitui uma profundidade estratégica para a Europa. Da mesma forma que houve uma abertura da Europa em direcção ao Leste, a abertura ao sul deverá ser, nos próximos anos, a prioridade de Barcelona II.

EXP. — Na Europa, os árabes são frequentemente associados aos problemas com imigrantes e à organização de atentados…

M.B. — Essa visão dos árabes pode ser alterada através de uma acção junto dos media. Há que contactar os media, porque são eles que passam as imagens e formam a opinião pública. Há igualmente os intelectuais, os pensadores, os professores, que escrevem nos jornais. Eles são próximos dos políticos e podem influenciá-los para mudar a imagem e tentar encontrar uma linguagem nova. Os países árabes devem igualmente fazer esforços para explicar e reunir com pessoas no sentido de apagar essa imagem de uma pequena minoria que encobre centenas de milhões de pessoas que nada têm a ver com isso. Há também que encorajar o diálogo inter-religioso. Nós temos com o Conselho da Europa um programa ambicioso de avaliação dos manuais escolares, isto é, como se dá a imagem do “outro” nos manuais escolares. Se a imagem é má de um lado, será má do outro.

EXP. — O que mais o preocupa, presentemente, no mundo árabe?

M.B. — A forma como o mundo árabe deve acompanhar o progresso do mundo e, por conseguinte, alterar e modernizar os seus sistemas educativo, político e cultural para seguirem esse movimento de evolução da tecnologia e das ideias políticas. Cada país deve conservar a sua originalidade mas não deve perder o contacto com o mundo exterior. Penso que este é o desafio mais importante em todos os domínios. Actualmente, há uma efervescência no mundo árabe, muitas vezes violenta e incompreensível para o exterior, mas penso que toda essa agitação é o sinal de uma mudança que está em vias de acontecer, à custa de alguma dor porque há mudanças que não são fáceis. Pessoalmente, estou optimista. Aliás, muitas coisas começaram já a mudar.

EXP. — Pode dar um exemplo?

M.B. — Actualmente, fala-se muito da participação das mulheres nos Parlamentos, do voto das mulheres, dos direitos das mulheres e há associações de mulheres a organizarem-se para defenderem esses direitos. Ao nível dos sistemas de educação, há também muitos países em vias de promoverem reformas importantes ao nível da liberdade académica no interior das universidades, da modernização do sistema educativo, do lugar das mulheres no sistema de educação e na política. Em vários países do Golfo, as coisas estão a mudar muito. A modernidade segue forte e rápida, ainda que com oposições e desacordos, o que é normal, mas as coisas estão a avançar. Também ao nível religioso, hoje todos defendem o discurso da moderação e do respeito e contacto com as outras religiões. Muitos países árabes estão a tornar-se cada vez mais responsáveis e conscientes de que há que fazer qualquer coisa.

EXP. — Há algum país árabe modelo nesse âmbito?

M.B. — Cada país tem as suas particularidades e evolui à sua maneira, isto é, da forma que considera mais adequada para evoluir. Há países que evoluem mais rapidamente do que outros. Cada país tem as suas particularidades, a sua história, o seu passado, não mudam todos da mesma forma e ao mesmo tempo. Há que segui-los a todos.

EXP. — Os partidos islâmicos são actores incontornáveis nos processos de democratização?
M.B. — Somos todos contra quem possa conduzirá violência ou apelar a uma guerra religiosa ou a uma guerra civil. Nenhum país pode aceitá-lo. Defendemos a aceitação das regras do diálogo, da troca, e do respeito do “outro”.

EXP. — A população dos países árabes é maioritariamente jovem. Os países têm condições para corresponderem às suas expectativas e ambições?

M.B. — O mundo árabe é muito heterogéneo. Há países relativamente prósperos e outros que se apoiam muito na cooperação e no contacto com a Europa ou com os Estados Unidos. Penso que há uma consciência sobre a necessidade de desenvolvimento. Porém, há que resolver igualmente alguns problemas internacionais, nomeadamente os problemas das matérias-primas, das subvenções á agricultura, da liberalização dos serviços, que também afectam o mundo árabe. Há também que conduzir políticas de desenvolvimento que façam da juventude a prioridade e sobretudo que apostem na qualidade da formação dos jovens para que possam ir trabalhar para onde quiserem. O futuro está no capital intelectual.

Artigo publicado no Expresso Online, a 6 de junho de 2006