A nova ameaça nuclear

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Ocupada com o dossiê nuclear iraniano, a comunidade internacional foi surpreendida pelo anúncio, na segunda-feira, do primeiro teste nuclear na Coreia do Norte. O mundo ficou nervoso e o Conselho de Segurança da ONU tornou-se o palco de negociações com vista à adopção de sanções ao regime norte-coreano, o último reduto marxista-leninista à face da Terra.

O Japão deu o pontapé de saída nas retaliações: na quarta-feira, decretou um embargo total às importações provenientes da Coreia do Norte e encerrou os seus portos a todos os navios norte-coreanos. Insensível às ameaças internacionais, Pyongyang reagiu dizendo que interpretará eventuais sanções como uma declaração de guerra, ameaçando com mais testes.

Com 23 milhões de habitantes, um regime totalitário que ignora os mais básicos direitos humanos e uma economia fortemente centralizada, a Coreia do Norte é um país fustigado por desastres naturais e uma escassez alimentar crónica. Há mais de uma década, o país mantém-se vivo graças a uma ajuda internacional maciça. Essa ajuda está agora ameaçada.

PERGUNTAS & RESPOSTAS

1. O que aconteceu a 9 de Outubro?

A Coreia do Norte anunciou ter efectuado o seu primeiro teste nuclear subterrâneo. Institutos do mundo inteiro registaram actividade sísmica artificial. Mas subsiste a dúvida: ter-se-á tratado de um ensaio nuclear ou da detonação de uma grande quantidade de explosivos convencionais?

2. O que justifica a crise que se seguiu?

Os receios perante a iminência de uma Coreia do Norte com poder nuclear e a vulnerabilidade do Japão, China, Rússia e Estados Unidos perante o arsenal norte-coreano.

3. Quais as consequências para a região?

Pyongyang não tem uma estratégia de expansão regional, pelo que não está em causa a alteração do equilíbrio de forças entre as potências do Pacífico. Mas esta ameaça nuclear pode originar um efeito de contágio. O Japão, por exemplo, que se prepara para rever a política de defesa, pode encarar como prioritária a opção nuclear.

4. O que move o regime norte-coreano?

Uma aparente obsessão em forçar os Estados Unidos ao diálogo directo. “A questão à volta de futuros ensaios nucleares está ligada à política americana para o nosso país”, reagiu Kim Yong-nam, o número 2 do regime comunista. Ao recorrer ao trunfo nuclear, a Coreia do Norte, que vive na mais completa autarcia, parece lutar pela sua própria sobrevivência política.

TESTEMUNHO

PROTEGIDOS DO BURACO NEGRO

Visto a partir de Pyongyang, o mundo está contaminado. Com más ideias, maus sistemas e más pessoas. Em Agosto, entrei na última viagem de jornalistas antes do teste nuclear. Embora o enriquecimento de plutónio seja conversa natural no país de Kim Jong-Il — onde o jornal é dobrado de forma a não danificar a sua fotografia —, as palavras têm de ser estudadas. Kim, a universitária que me acompanhou como menina modelo da nação, nada dizia que não fosse preparado. Viajar? Para onde, num mundo tão ameaçador? Ouvir música estrangeira? Mas o quê? A televisão repete filmes da luta contra o Japão. “Sim, conheço a Europa e a montanha muito alta de lá, o Evereste…”, disse Kim. Ao resto da nação de camponeses, explica-se o mundo como um buraco negro do qual estão protegidos por três fronteiras militarizadas (Rússia, China e Coreia do Sul). Numa noite, Kim deu a um austríaco o cartão da empresa de vinho da mãe, enquanto ele explicava o que é publicidade. Kim ficou nervosa: “Como escrevo para um e-mail austríaco se só falo inglês?”

Maria João Belchior, jornalista

OS NÚMEROS NEGROS DO REGIME

2,5 milhões de norte-coreanos terão morrido desde 1994 na sequência de vagas de fome e doenças decorrentes da escassez alimentar

300 mil norte-coreanos terão fugido desde 2004 para a China, onde se escondem das autoridades que não os reconhecem como refugiados e ameaçam deportá-los

200 mil norte-coreanos serão prisioneiros políticos

DATAS-CHAVE DA CRISE

29/01/2002: George W. Bush diz que a Coreia do Norte integra o “eixo do mal”

10/01/2003: Pyongyang anuncia a sua retirada do Tratado de Não-Proliferação Nuclear

27/08/2003: Começa, em Pequim, o diálogo a seis sobre o nuclear coreano

PROTAGONISTAS

Kim Jong-Il, Líder da Coreia do Norte

“Querido Líder” para os coreanos, é um ilustre desconhecido na comunidade internacional que o vê como uma figura caricata e paranóica. Escolheu a dedo o dia para anunciar o ensaio nuclear coreano: comemorava o nono aniversário da sua chegada ao poder, o novo primeiro-ministro japonês andava em digressão pela região e o sul-coreano Ban Ki-Moon era confirmado no cargo de secretário-geral da ONU. Ki-Moon elegera o dossiê nuclear norte-coreano como uma das prioridades do seu mandato.

Hu Jintao, Presidente da China

Aliada ideológica e principal parceira comercial da Coreia do Norte — fornecendo mais de 90% do petróleo e 80% dos bens de consumo —, a China saiu humilhada desta crise. Com esta demonstração de independência, Pyongyang desautorizou Pequim e pôs em causa a sua mediação nas negociações a seis (Coreia do Norte, Coreia do Sul, China, Japão, EUA e Rússia) sobre o nuclear coreano. A China reagiu ao anúncio do ensaio defendendo “acções punitivas” contra a Coreia.

Artigo publicado no Expresso, a 14 de outubro de 2006