Venenos contra vozes incómodas

Envolta em mistério e entraves à investigação, a intoxicação do ex-agente do KGB traz à liça uma prática de poder que vem de longe

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Saiu a lotaria ao polaco Boguslaw Sidorowicz. Desde que o caso Litvinenko rebentou no Reino Unido que o seu restaurante, em Sheffield, aumentou significativamente o número de reservas. O estabelecimento chama-se Polonium, pelo que não é difícil adivinhar a origem da moda: sob efeito de polónio 210, o ex-espião do KGB Alexander Litvinenko definhou até à morte num hospital londrino.

Trata-se de uma substância “altamente radioactiva” e “muito tóxica”, esclareceu ao Expresso Fátima Rato, responsável pelo Centro de Informação Antivenenos. “Os seus efeitos adversos podem decorrer da inalação, ingestão ou exposição cutânea”. As consequências clínicas dependem da “radiação que é absorvida, da intensidade da radiação, da susceptibilidade individual e do tempo de exposição”, acrescentou. Sem cheiro, cor e sabor, o polónio 210 é a última expressão de uma prática tão antiga quanto a intriga política — o envenenamento como arma de poder.

Uma das vítimas mais famosas foi Georgi Markov, um dissidente búlgaro de língua afiada contra o regime comunista de Sófia. A 7 de Setembro de 1978, sobre a ponte Waterloo, em Londres, Markov sofreu um encontrão de um homem que segurava um guarda-chuva. Acabou o dia no hospital, com febres altas e morreu três dias depois. A autópsia descobriu uma esfera metálica com 1,52 milímetros de diâmetro na barriga da perna, com vestígios de ricina, uma toxina inserida pela espetadela do guarda-chuva. O ataque é atribuído aos serviços secretos búlgaros e ao KGB.

Envenenar é ainda uma arma política

Com a morte de Litvinenko, a Rússia volta a ser acusada de recorrer às tácticas da Guerra Fria para calar os opositores. “A opinião dentro da nossa agência (KGB) é de que o veneno é só uma arma, como uma pistola. Não é visto como no Ocidente, é um instrumento vulgar” — são palavras do próprio Litvinenko quando comentou no ‘New York Times’ o envenenamento de Victor Iuschenko, hoje Presidente da Ucrânia. Durante a campanha para as presidenciais, em 2004, Iuschenko, líder da oposição, adoeceu após uma refeição com o chefe da secreta ucraniana. Do dia para a noite ficou desfigurado.

De Saddam à Mossad

A lenta agonia de pessoas intoxicadas era uma das vinganças favoritas de Saddam Hussein. A 1 de Janeiro de 1988, Abdullah Ali, um homem de negócios iraquiano residente em Londres, jantou com três amigos num restaurante de Notting Hill. Morreria 15 dias depois com broncopneumonia após ser envenenado com tálio. Ali preparava-se para desertar dos serviços secretos iraquianos. Também Fidel Castro e Nelson Mandela foram alvo de planos de envenenamento com tálio, por parte da CIA e da secreta sul-africana, respectivamente.

Nos últimos dez anos, um dos casos mais surpreendentes ocorreu no Médio-Oriente. A 25 de Setembro de 1997, dez agentes da Mossad entraram na Jordânia com passaportes canadianos, para matar Khaled Meshal, um líder do Hamas. Injectaram-lhe uma substância tóxica, mas foram descobertos pelas autoridades jordanas que detiveram dois deles. Amã exigiu o fornecimento do antídoto, mas Telavive só cedeu por pressão dos EUA. Meshal foi salvo e, em troca da libertação dos dois agentes, Israel libertou Ahmad Yassin, o líder espiritual do Hamas. A forma precipitada como Yasser Arafat foi levado da Muqata de Ramallah para um hospital de Paris, onde morreu a 11 de Novembro de 2004, levanta suspeitas de envenenamento.

Tão clássica quanto a Antiguidade, a técnica continua eficaz. E nem os filmes de espionagem dispensam uma cena de envenenamento. Na sua última aventura (‘Casino Royal’), rodada em ambiente de grande sofisticação, James Bond escapa por um triz a uma tentativa de intoxicação durante uma partida de póquer.

Artigo publicado no Expresso, a 8 de dezembro de 2006