Os novos trilhos de Kadhafi

A Líbia diz que os EUA vão cooperar no seu plano nuclear. Os dois são amigos desde 2006

Muammar Kadhafi durante a 12ª Cimeira da União Africana, em Addis Abeba, Etiópia, a 2 de fevereiro de 2009, onde foi eleito presidente da organização JESSE B. AWALT / MARINHA DOS EUA / WIKIMEDIA COMMONS

A Líbia pôs-se em bicos de pés ao anunciar, esta semana, que os Estados Unidos vão ajudá-la a construir uma central nuclear no seu território. Washington diz que a história não é bem assim…

“O que dissemos aos líbios, depois de eles abandonarem o programa nuclear, é que estaríamos abertos a conversações sobre alguns aspectos do poder nuclear para fins civis”, disse em entrevista à Reuters e a coberto do anonimato um funcionário da Administração norte-americana perito em matéria de não-proliferação. “Falamos de um centro de medicina nuclear ao qual nos comprometemos a dar assistência”, acrescentou.

Com o dossiê nuclear do Irão ao rubro, muito irónico seria que o nuclear se tornasse um dos principais eixos de cooperação entre os Estados Unidos e a Líbia. Recorde-se que os dois países só normalizaram as suas relações diplomáticas no ano passado.

Acresce ainda que o nervosismo provocado pela ‘crise’ iraniana incitou vários países árabes, como o Egipto e os Estados do Golfo, a tirarem da gaveta planos nucleares antigos, para fins civis… segundo palavras dos próprios.

A longo prazo, o espectro da proliferação de centrais nucleares nas já de si conturbadas regiões do Médio Oriente e do Norte de África — ainda que algumas sejam construídas em parceria com os Estados Unidos — representa um potencial de insegurança assinalável.

Os cheques da redenção

Em 2003, a renúncia da Líbia ao seu programa de armas de destruição maciça e o mea culpa no caso Lockerbie — a explosão de um avião da Pan Am sobre a Escócia, em 1988 —, sob a forma de um cheque de dez milhões de dólares entregue a cada família das 270 vítimas, resgataram o país do ostracismo.

Na comunidade internacional, a Líbia deixava de ser um Estado pária e Muammar Kadhafi ascendia ao estatuto de estadista. Na semana passada, o chefe de Estado líbio afirmou que essa metamorfose não foi devidamente reconhecida. “A Líbia não recebeu as compensações adequadas, pelo que outros países, como o Irão e a Coreia do Norte, não seguirão o nosso exemplo”, advertiu.

Levantado o embargo decretado pelas Nações Unidas, os investimentos norte-americanos e europeus não fluíram à Líbia com a velocidade desejada. Hoje, esse precedente pode ser perigoso.

Selo comemorativo do Seminário Internacional do Livro Verde de 1979, na cidade líbia de Bengazi

Há duas semanas, por ocasião do 30.º aniversário da declaração da ‘jamahiriya’ — um neologismo inventado por Kadhafi que significa Estado das massas” e onde o povo é quem mais ordena através de uma rede de comités populares —, o Presidente da Líbia esclareceu quem ainda não acredita nos novos trilhos da revolução líbia. “Não há dúvidas, a Líbia pertence a um mundo no qual a globalização predomina. Não pode remar contra a maré”, disse.

Muammar Kadhafi participava num debate em Sabha e por si só inédito. Moderado pelo famoso jornalista britânico David Frost, tinha como interlocutores o analista político norte-americano Benjamin Barber e o sociólogo britânico Anthony Giddens.

O Presidente líbio nunca largou das mãos um exemplar do seu ‘Livro Verde’, ainda que o seu discurso seja cada vez menos revolucionário e mais politicamente correcto. “A Líbia não dará um passo atrás”, disse. “Creio que a época da hostilidade e da confrontação ficou para trás”.

AS MULHERES QUE ACODEM AO CORONEL

No poder desde 1969, o coronel Kadhafi sonha com o Estado israelo-palestiniano e convida chefes de Estado a visitarem-no na sua tenda

Excêntrico, megalómano, autocrata — alguns dos adjectivos usados para caracterizar Muammar Kadhafi são, no mínimo, excessivos. Para tal, muito contribuem as mediáticas aparições do Presidente da Líbia, trajando túnicas coloridas e rodeado de vistosas guerreiras: as ‘amazonas’, da sua guarda pessoal, que o protegem dia e noite.

Treinadas para matar, estas mulheres arriscam a vida para salvar a de Muammar Kadhafi. Esta tarefa granjeia prestígio entre as jovens líbias, pelo que não há falta de voluntárias. Numa escola especial, as recrutas são submetidas a um rigoroso programa de formação. As que não desistem tornam-se peritas no manejamento de armas de fogo e em artes marciais. No final, Kadhafi faz a sua selecção. Conta a lenda que as ‘amazonas’ permanecem virgens.

No poder desde 1 de Setembro de 1969 — quando liderou um golpe militar que depôs o rei Idris, criando a República Árabe Líbia — o coronel Kadhafi explanou a sua filosofia política no ‘Livro Verde’: “Os Parlamentos são a falsificação da democracia” e “o sistema de partidos faz abortar a democracia”, escreve.

Fora de portas, sonha com os Estados Unidos de África e invoca a criação de um Estado único israelo-palestiniano, denominado “Isratina”, como a solução para o conflito no Médio Oriente.

Nascido no seio de uma família de beduínos, recebe os visitantes ilustres numa tenda forrada com tapeçarias luxuosas instalada no deserto, a sul de Sirte, onde nasceu em 1942. Por lá passou o ex-ministro português dos Negócios Estrangeiros, António Martins da Cruz, depois de andar mais de uma hora nas areias do deserto para lhe entregar uma missiva de Durão Barroso.

O mesmo percurso terá efectuado o famoso jornalista britânico John Simpson (BBC) que, no livro ‘A mad world, my masters’, conta como durante uma entrevista no acampamento, o líder líbio reagiu impávido e sereno a um ataque de flatulência: “Kadhafi levantava-se ligeiramente do assento, a trovoada durava entre quinze e vinte segundos de cada vez e depois voltava a encostar-se na cadeira com uma expressão de alívio”.

LISBOA MAIS PERTO DE TRIPOLI

Com a nova missão em Tripoli, Portugal faz o pleno no Magrebe, uma região que Sócrates diz ser de “interesse estratégico”

Há 26 anos que a Líbia tem uma embaixada em Lisboa. Apesar disso, Portugal só pensa abrir a sua missão diplomática em Tripoli, no próximo mês de Maio. Rui Lopes Aleixo é o diplomata indigitado para o posto, que servirá para abrir portas aos empresários portugueses.

Rui Esteves trabalha há um ano na Líbia como director-geral de uma empresa norueguesa de exploração petrolífera. Observador privilegiado do potencial económico do país de Kadhafi, diz: “Falando com o pessoal que está aqui há mais tempo, dizem que houve uma mudança drástica, em todos os sentidos, de há quatro anos para cá”, afirmou ao Expresso este português de 44 anos.

Findo o embargo da ONU, a economia líbia começa a mexer. “Fala-se numa abertura ao turismo e em grandes investimentos nessa área. Há milhares de quilómetros de costa mediterrânica praticamente inexplorados”, diz Rui Esteves.

A grande oportunidade

Paralelamente, o país vive um “boom” na construção. “É incrível! De mês a mês, por onde passo, vejo novas construções a serem feitas, algumas colossais. Habitação social, estradas, fábricas, armazéns. Se os portugueses entrarem têm uma vantagem comparativa grande”, comenta Rui Esteves.

Segundo o ICEP, a balança comercial é altamente deficitária ao lado português. Em 2006, a Líbia foi o 95.º principal cliente e o 20.º fornecedor, com quotas de 0,02% e 0,87% nas nossas exportações e importações, respectivamente. Entre Janeiro e Novembro desse ano, as nossas exportações não foram além dos 5.415 milhões de euros e as importações da Líbia ascenderam a 461.134 milhões de euros.

No plano político, Portugal e a Líbia partilham várias plataformas multilaterais, designadamente a Parceria de Barcelona e o Diálogo 5+5, vocacionados para a aproximação das duas margens do Mediterrâneo.

Artigos publicados no Expresso, a 17 de março de 2007