Monges abalam ditadura com 45 anos

A revolta na Birmânia pode terminar num banho de sangue. É a convicção de um perito da ONU que em conversa com o Expresso analisou a situação

Marcha dos monges contra a Junta Militar, em setembro de 2007 KILLING THE BUDA

Como começou esta crise?

A revolta estalou em meados de Agosto, depois de o Governo da Birmânia ter cortado nos subsídios aos combustíveis; o preço do gasóleo aumentou 100% e o gás natural cinco vezes. Milhares de pessoas responderam com manifestações pacíficas convocadas pela Liga Nacional para a Democracia e pela Geração de Estudantes de 88. Posteriormente, o envolvimento dos monges trouxe sangue novo à contestação — e originou o “slogan” ‘revolta de açafrão’. “Antevejo o pior desfecho possível para esta crise”, disse ao Expresso o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, relator especial das Nações Unidas para a Birmânia. “Há muito tempo que o regime militar não tolera manifestações, muito menos de monges”.

O regime birmanês está em causa?

“Absolutamente”, continua este professor na Universidade de Brown (EUA). “A manifestação dos monges não é política. Politizou-se pela repressão e pela participação de movimentos de desagrado contra décadas de ditadura e de ausência de direitos económicos e sociais. Espero estar errado, mas não vejo nada no horizonte que indique que o regime vá mudar”, diz Pinheiro, que aos 63 anos é “persona non grata” na Birmânia. Mas é inegável que se os primeiros protestos usaram cânticos e orações, a contestação rapidamente adoptou “slogans” políticos exigindo a deposição do regime e a libertação de Aung San Suu Kyi.

O que simboliza Aung San Suu Kyi?

É a líder do movimento pró-democracia no país. Em 1990, o seu partido, a Liga Nacional para a Democracia (LND), venceu as eleições gerais com 59% dos votos. Os militares não só não abdicaram do poder como a colocaram em prisão domiciliária. É nessa condição que recebe o Prémio Nobel da Paz 1991. No passado fim-de-semana, as autoridades permitiram que ela acenasse aos manifestantes no portão da sua casa, em Rangum, o que não acontecia desde 2003. Suu Kyi não tem margem de manobra. “Até hoje, a comunidade internacional não conseguiu aliviar a condição dela. Ela não comunica nem com o próprio partido. Tem apenas um papel simbólico”.

Porque reprime a Junta Militar?

Não é a primeira vez que o regime militar, no poder desde 1962, dá estas instruções às forças da ordem. A insurreição, iniciada a 8 de Agosto de 1988 — a Revolta 8888 —, foi violentamente reprimida e terá provocado 3000 mortos.

Como reagiu a comunidade internacional?

O enviado da ONU para a Birmânia, Ibrahim Gambari, deve chegar hoje à Birmânia com o acordo das autoridades locais. Na quarta-feira, o Conselho de Segurança da ONU instou a junta a conter o uso da violência, mas China e Rússia impediram uma condenação do regime. “Se a comunidade internacional não se acertar para uma acção coordenada de abertura do diálogo com as autoridades locais, a minha bola de cristal não mostra cenários positivos”, alerta Paulo Pinheiro. “Ao abrigo da guerra global contra o terrorismo, várias democracias fazem alianças com autocracias e regimes militares. Não vejo porque não se pode fazer o mesmo com o regime birmanês. A linguagem da ameaça não funcionou, não funciona e não vai funcionar. Estamos condenados ao diálogo”, conclui.

Artigo publicado no Expresso, a 29 de setembro de 2007

Al-QaIda treina às portas da Europa

A possibilidade de um ‘novo’ 11/9 é muito forte, isto porque o nível de ameaça terrorista é o mais elevado de sempre

Infografia publicada no relatório “Terrorism in North Africa and the Sahel in 2016”, Yonah Alexander, Inter-University Center for Terrorism Studies, Março de 2017

Seis anos depois, o mundo está mais inseguro, a Al-Qaida mais forte, a guerra no Iraque ajuda à proliferação da ameaça terrorista e o Norte de África transformou-se num campo de treino onde a organização de Osama bin Laden prepara o ataque à Europa. São estas as ideias fortes dos comentários solicitados pelo “Expresso” a um conjunto de personalidades internacionais sobre o mundo pós-11 de Setembro.

“O grau de ameaça de um ataque devastador como os de Nova Iorque ou Madrid é muito alto porque a liderança e a infra-estrutura da Al-Qaida estão vivas e activas no Sul da Ásia. A sua base junto à fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão está a crescer ao mesmo tempo que a NATO se estende nos dois países em crescente crise interna”, disse ao “Expresso” Bruce Riedel, que operou naquela região até o ano passado, como agente da CIA. Há cerca de três meses escreveu um artigo intitulado a “Al-Qaida ataca de novo”, na revista “Foreign Affairs”.

Para este investigador do Brookings Institute, a guerra no Iraque, onde o número de soldados norte-americanos mortos superou esta semana os 3750, é largamente responsável pelo malogro na contenção dos terroristas. “Os recursos necessários no Afeganistão foram transferidos para o Iraque e esbanjados. Pior, a ocupação do Iraque foi um instrumento poderoso para a Al-Qaida recrutar novos seguidores entre muçulmanos irritados. Agora, está a construir uma base de operações no Norte de África para atacar na Europa”.

Apoiando-se em estatísticas oficiais norte-americanas e em relatórios de especialistas independentes, Noam Chomsky referiu ao “Expresso” que, após a invasão iraquiana, o número de acções terroristas multiplicou-se por sete. “Sinto-me hoje menos seguro, porque as decisões da Administração Bush aumentaram significativamente a ameaça terrorista”, uma acusação que faz dele uma das vozes mais apreciadas pelo chamado movimento alterglobalização. “Não digo que a Administração deseje o terror, certamente que não. Mas proteger os norte-americanos do terrorismo não é uma grande prioridade”, diz.

Chomsky confessa não se sentir fortemente afectado nos seus direitos, mas defende que, após o 11 de Setembro, ficou mais evidente uma dualidade de tratamento. Recorda Jose Padilla, um americano torturado durante quase quatro anos que aguarda sentença, acusado de ligações terroristas: “Os tribunais recusaram considerar a questão da tortura e não decorre qualquer investigação”, denuncia. “Há uma lei para os ricos e privilegiados e outra para os pobres e excluídos”, conclui Chomsky.

Ely Karmon, do Instituto Contra-Terrorismo de Herzliya, Israel, lembra que “a comunidade internacional permitiu, entretanto, que o Irão esteja à beira de adquirir capacidade nuclear”.

Especialista em matéria de imigração, o sueco Jan O. Karlsson diz que a ameaça terrorista não refreou os fluxos migratórios, que envolvem 200 milhões de pessoas, 3% da população mundial. Mas não deixa de constatar que Europa e EUA reagiram de forma diferente ao 11 de Setembro. “A Europa viveu durante décadas com a ETA, o IRA e a RAF sem achar necessário impor grandes restrições aos direitos civis. Os EUA tiveram poucas experiências de terrorismo o que pode explicar as duras medidas da Administração Bush: o campo de Guantánamo, as prisões secretas da CIA, a espionagem telefónica aos cidadãos americanos e o uso de tortura”, disse ao “Expresso” o presidente da Comissão Mundial sobre as Migrações.

John Pike, director do sítio de estudos estratégicos GlobalSecurity.org, adaptou-se às circunstâncias e adoptou um “modus operandi” particular: “Deixei de voar, porque acho muito incómodo estar ali de pé e em fila, a ser revistado e a tirar os sapatos e o cinto. Pago quase tudo em dinheiro. Ganho com isso um prémio de privacidade”.

FRASES

“As decisões da Administração Bush aumentaram a ameaça terrorista”
NOAM CHOMSKY, Massachusetts Institute of Technology

“A Al-Qaida está a construir uma base de operações no Norte de África para atacar na Europa”
BRUCE RIEDEL, Brookings Institute, Washington

“A actual ameaça terrorista é-o mais à paz de espírito do que à segurança física”
JOHN PIKE, Director da GlobalSecurity.org

“Após o 11 de Setembro, não houve qualquer ataque com armas de destruição maciça”
ELY KARMON, Institute for Counter-Terrorism de Herzliya, Israel

“Os acidentes de viação põem em risco a vida de muitas mais pessoas do que o terrorismo”
ALAN KRUEGER, Universidade de Princeton, New Jersey

Artigo escrito em colaboração com Cristina Peres e publicado no Expresso, a 8 de setembro de 2007

À conquista do país de Kadhafi

Portugal vai abrir uma embaixada em Tripoli. Com olho nos negócios. Entrevista ao futuro embaixador português na Líbia, Rui Lopes Aleixo

Mapa da Líbia coberto pela bandeira do país DARWINEK / WIKIMEDIA COMMONS

Portugal vai finalmente abrir uma embaixada na Líbia — o país que hoje assinala o 38.º aniversário da revolução de Kadhafi e onde vivem… três portugueses. A liderar a missão — a 91.ª a abrir portas em Tripoli e a 21ª da União Europeia (UE) — estará o embaixador Rui Lopes Aleixo, que parte com uma certeza na bagagem: “Nos próximos dois anos, a Líbia será um país de oportunidades”.

Quais as prioridades desta embaixada?
Há três. Por um lado, era necessário completar a nossa cobertura dos países do Norte de África, que são a fronteira sul da Europa. Durante o processo de alargamento, a UE olhou muito mais para a fronteira leste e, infelizmente, só olhou para sul quando começou a haver problemas de terrorismo e de imigração ilegal.

E as outras duas?
Em segundo lugar, a Líbia representa um mercado potencial muito importante em termos de investimentos, de exportações e de fornecimento de gás e petróleo. Além disso, a Líbia tem um papel em África que não se pode ignorar. A influência do Presidente Kadhafi é muitíssimo importante e decisiva na União Africana que, no seu modelo actual, é uma concepção do próprio Kadhafi.

Os Estados Unidos de África…
Ainda não estamos lá, mas a Líbia é incontornável no diálogo mediterrânico. A curto prazo, a prioridade passa pela realização da cimeira Europa-África [Lisboa, 8 e 9 de Dezembro] em que Tripoli terá um papel muito importante como interlocutor da parte africana.

Qual a mais-valia do mercado líbio para os empresários lusos?
O Governo líbio tem um plano de investimentos em infra-estruturas rodoviárias e ferroviárias, hospitais e universidades que quer ver concluído a tempo de comemorar o 40.º aniversário da revolução, a 1 de Setembro de 2009, e que oferece aos nossos empresários enormes oportunidades. Amanhã partem daqui seis empresários para desenvolver contactos. Ao nível da indústria do petróleo, temos empresas com grande capacidade tecnológica para fornecer materiais e equipamentos.

Agora, as partes interessadas têm de se encontrar…
A embaixada vai criar um site” para anunciar os grandes concursos. E se a AICEP abrir uma delegação em Tripoli será a oportunidade para divulgar as oportunidades de negócio na Líbia e de apresentarmos as nossas potencialidades.

A cultura costuma ser um bom ponto de partida…
Tenho esperança que seja possível estabelecer uma cooperação cultural com a Líbia e ao nível da conservação dos sítios arqueológicos. Temos este grande elo do passado greco-romano…

A presidência portuguesa da UE tem iniciativas para impulsionar a cooperação com a Líbia?
Vamos pedir à Comissão um mandato para a negociação de um acordo de cooperação com a Líbia. Nesse mandato vai assentar o desenvolvimento de cooperação em áreas como a energia, o combate à imigração ilegal e o apoio à reestruturação económica e financeira e à exploração arqueológica.

ALVO: MAGREBE

Coma abertura da embaixada na Líbia, Portugal reforça a presença no Magrebe. O Expresso ouviu parceiros essenciais para o sucesso da cooperação. Basílio Horta, presidente da AICEP, diz que “não está prevista a abertura de uma delegação na Líbia”, mas revela que no futuro, “se o volume de oportunidades de negócios para as empresas portuguesas o justificar”. De mangas arregaçadas está o Instituto Camões, que vai iniciar actividades na Argélia e no Egipto. “Estamos a trabalhar na abertura de um leitorado na Líbia”, diz a presidente Simonetta Luz Afonso. Com delegações nos cinco países do Magrebe, o Instituto Luso-Árabe para a Cooperação orgulha-se de estar na Líbia desde 2004. Porém, o presidente Manuel Pechirra alerta para “a escassez de meios humanos e materiais que limita a actividade dos diplomatas e dificulta melhores resultados”.

Artigo publicado no Expresso, a 1 de setembro de 2007