A revolta na Birmânia pode terminar num banho de sangue. É a convicção de um perito da ONU que em conversa com o Expresso analisou a situação

Como começou esta crise?
A revolta estalou em meados de Agosto, depois de o Governo da Birmânia ter cortado nos subsídios aos combustíveis; o preço do gasóleo aumentou 100% e o gás natural cinco vezes. Milhares de pessoas responderam com manifestações pacíficas convocadas pela Liga Nacional para a Democracia e pela Geração de Estudantes de 88. Posteriormente, o envolvimento dos monges trouxe sangue novo à contestação — e originou o “slogan” ‘revolta de açafrão’. “Antevejo o pior desfecho possível para esta crise”, disse ao Expresso o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, relator especial das Nações Unidas para a Birmânia. “Há muito tempo que o regime militar não tolera manifestações, muito menos de monges”.
O regime birmanês está em causa?
“Absolutamente”, continua este professor na Universidade de Brown (EUA). “A manifestação dos monges não é política. Politizou-se pela repressão e pela participação de movimentos de desagrado contra décadas de ditadura e de ausência de direitos económicos e sociais. Espero estar errado, mas não vejo nada no horizonte que indique que o regime vá mudar”, diz Pinheiro, que aos 63 anos é “persona non grata” na Birmânia. Mas é inegável que se os primeiros protestos usaram cânticos e orações, a contestação rapidamente adoptou “slogans” políticos exigindo a deposição do regime e a libertação de Aung San Suu Kyi.
O que simboliza Aung San Suu Kyi?
É a líder do movimento pró-democracia no país. Em 1990, o seu partido, a Liga Nacional para a Democracia (LND), venceu as eleições gerais com 59% dos votos. Os militares não só não abdicaram do poder como a colocaram em prisão domiciliária. É nessa condição que recebe o Prémio Nobel da Paz 1991. No passado fim-de-semana, as autoridades permitiram que ela acenasse aos manifestantes no portão da sua casa, em Rangum, o que não acontecia desde 2003. Suu Kyi não tem margem de manobra. “Até hoje, a comunidade internacional não conseguiu aliviar a condição dela. Ela não comunica nem com o próprio partido. Tem apenas um papel simbólico”.
Porque reprime a Junta Militar?
Não é a primeira vez que o regime militar, no poder desde 1962, dá estas instruções às forças da ordem. A insurreição, iniciada a 8 de Agosto de 1988 — a Revolta 8888 —, foi violentamente reprimida e terá provocado 3000 mortos.
Como reagiu a comunidade internacional?
O enviado da ONU para a Birmânia, Ibrahim Gambari, deve chegar hoje à Birmânia com o acordo das autoridades locais. Na quarta-feira, o Conselho de Segurança da ONU instou a junta a conter o uso da violência, mas China e Rússia impediram uma condenação do regime. “Se a comunidade internacional não se acertar para uma acção coordenada de abertura do diálogo com as autoridades locais, a minha bola de cristal não mostra cenários positivos”, alerta Paulo Pinheiro. “Ao abrigo da guerra global contra o terrorismo, várias democracias fazem alianças com autocracias e regimes militares. Não vejo porque não se pode fazer o mesmo com o regime birmanês. A linguagem da ameaça não funcionou, não funciona e não vai funcionar. Estamos condenados ao diálogo”, conclui.
Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de setembro de 2007




