Uma associação portuguesa quer reconstruir um centro de saúde e um jardim de infância peruanos destruídos pelo sismo de Agosto. Mas o dinheiro angariado não chega para arrancar com as obras
Destruição provocada pelo sismo de magnitude 8, vista a partir da estrada Pan-Americana, entre Ica e Lima MARTIN ST-AMANT / WIKIMEDIA COMMONS
600 euros… foi tudo quanto os portugueses desembolsaram para corresponder ao apelo de solidariedade lançado pela Associação Nacional dos Alistados das Formações Sanitárias (ANAFS) para com as vítimas do sismo que atingiu o Peru, a 15 de Agosto último — uma tragédia que matou mais de 500 pessoas e atingiu mais de 35 mil famílias.
“Lamentavelmente, não tivemos um grande sucesso. Estas campanhas só têm sucesso se tiverem muito apoio da comunicação social e, nessa altura, os media estavam preocupados com a Maddie, com o BCP, com o tufão que ameaçava os portugueses em férias nas Caraíbas e com a falta de sol no Verão. Pouca gente estava preocupada com o Peru”, afirmou ao “Expresso” Manuel Velloso, dirigente da ANAFS.
“As pessoas não dão 1000 euros porque não podem, mas também não dão 1 euro porque têm vergonha. Cria-se aqui uma situação de impasse que é preciso alterar. Daí o relançamento desta campanha: Dêem 1 euro que no Peru dá para comprar dois tijolos ou um saco de cimento”, continua.
A estrela assinala o epicentro do sismo. O retângulo marca as áreas mais atingidas pelo sismo WIKIMEDIA COMMONS
Dois meses após o sismo, e ultrapassada a fase de maior urgência, a campanha ‘Operação Peru 2007’ continua a apelar à generosidade dos portugueses. As prioridades centram-se agora na reconstrução e reabilitação das zonas devastadas e todo o dinheiro depositado na conta de solidariedade aberta no Montepio (NIB 003603179910000989136) será canalizado, especificamente, para a reabilitação e reconstrução do Centro de Saúde de Córdova e do “Club des Madres” de Huachos. No terreno, a ANAFS conta com o apoio da organização não-governamental internacional OXFAM que vai orientar a reconstrução desses locais. A evolução da campanha da ANAFS pode ser acompanhada em www.anafs.com.
Em declarações ao “Expresso”, a embaixadora do Peru em Portugal afirmou que “a rede de estradas entre Lima e as zonas afectadas já foi recuperada. A fase que se segue prende-se com a reconstrução de 50 mil vivendas e com a recuperação de 40 mil hectares de áreas de cultivo”, diz Luzmila Zanabria. A diplomata esclarece ainda que, até ao momento, a ajuda internacional às vítimas desta catástrofe ascende a 15 mil toneladas de bens e 97 milhões de dólares. Portugal contribuiu com cerca de 4000 euros, depositados numa conta aberta pela própria embaixada logo a seguir ao sismo.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de outubro de 2007. Pode ser consultado aqui
A duas semanas das eleições no país das pampas, o Expresso entrevistou Andrés Malamud, investigador auxiliar do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. Para este argentino de 39 anos, Cristina Kirchner sucederá facilmente ao marido
Como caracteriza os Kirchner? É difícil entender este casal sem entender o peronismo. Este casal não funcionaria noutro partido. O peronismo é um fenómeno que nasce na Argentina em 1945 e tem uma identificação social mais do que política. As pessoas definem-se como peronistas assim como na Tunísia definem-se como muçulmanas e em Portugal como católicas. Nascem assim e permanecem assim. Mas o casal Cristina-Kirchner funciona de uma forma diferente do casal Evita-Péron. Evita era a mulher do Péron, enquanto Cristina tem autonomia política. Ela é um quadro político, tem mais formação política do que o marido. O que ela não tem é experiência de gestão. Ele foi governador e agora é Presidente, ela foi sempre deputada e senadora. A sua experiência política é legislativa. Tem mais experiência em debater e negociar do que em decidir e executar. Mas a personalidade de Cristina é claramente executiva.
Néstor Kirchner tinha as sondagens a seu favor. Porque é que ele abdicou de se apresentar à reeleição? Na Argentina, o Presidente governa durante quatro anos, apresenta-se à reeleição e se ganhar governa só durante mais quatro anos. Depois só pode voltar a candidatar-se mais tarde. (Nos Estados Unidos, é Presidente durante oito anos e depois vai para casa). A partir do sexto ano, como se sabe que ele não pode recandidatar-se, os políticos da oposição começam a agir já a pensar no próximo Presidente. O Presidente Kirchner quis evitar esse efeito. Ele sabe que depois dele, será Presidente a sua mulher e depois dela poderá vir ele novamente.
Essa sucessão dinástica foi pacífica entre os argentinos? Foi pacífica dentro do peronismo, onde vigora o chamado “princípio do líder” segundo o qual quem governa o país manda no partido. Kirchner diz: ‘Eu sou o Presidente, sou o chefe, digo quem me sucede’. Isto não é necessariamente pacífico, mas dentro do peronismo ninguém protesta em voz alta, com a excepção de dois governadores que estão mais ou menos marginalizados.
Que percentagem da sociedade argentina é peronista? Há uma frase de Péron elucidativa. Uma vez perguntaram-lhe como é que os argentinos se dividiam politicamente. Ele respondeu: “Há 20% de conservadores, 30% de socialistas e 50% de radicais”. E quantos são os peronistas? “Ah, peronistas são todos”, disse Péron. Hoje não é bem assim, mas há um limiar de 40%. Desde 1983 (fim da ditadura de Jorge Videla e eleição do Presidente Raúl Alfonsin), só por uma vez o peronismo obteve menos de 40% dos votos.
Os argentinos conheciam Cristina Kirchner? Quando Kirchner governava Santa Cruz (1991-2003) — a segunda província argentina mais pequena, com 200 mil habitantes — já Cristina era uma senadora com muito peso, não por conseguir que as votações no Senado fossem no sentido que ela queria, mas porque era a única que, por vezes, se opunha ao Presidente Carlos Menem. Ela fazia muito barulho, tinha muito mais autoridade do que o marido. Cristina sempre foi conhecida por mérito próprio.
Cristina evoca frequentemente a figura de Eva Péron. Há semelhanças? Há, desde logo o facto de ser esposa do Presidente, embora ela já fosse conhecida antes do marido tornar-se Presidente, o que não aconteceu com Eva. Cristina tem formação intelectual e política, mais do que Eva e do que o próprio marido. Ela identifica-se com a ‘Eva do punho erguido’. A diferença é que Eva ia, com peles e jóias, distribuir bens pelos pobres e a Cristina não é essa Eva que presta assistência, mas antes a Eva lutadora. Ela gosta dessa imagem.
Mas Cristina é genuína nessa colagem à figura e ao discurso de Eva Péron? Há muita coisa artificial nela: as extensões no cabelo, o botox… Mas politicamente, ela é genuína, acredita naquilo que diz e tem uma formação ideológica superior à média dos políticos argentinos. Não é tonta nem fanática.
Há quem atribua ao casal Kirchner tendências autocráticas. Concorda? É o peronismo que é autocrático e não o casal, que é simplesmente peronista. Eles agem como agiria qualquer peronista no seu lugar. O poder não é para partilhar, é para exercer.
Acha que eles estão próximos de Hugo Chávez? Estão próximos de Hugo Chávez financeiramente, mas não ideologicamente. A Argentina ainda tem dificuldades financeiras. Há um quarto da dívida externa que ainda não foi renegociado e o país não tem condições para aceder ao mercado internacional de crédito. Então, pede a Chávez, que tem uma disponibilidade financeira imensa. Kirchner não concorda muito com Chávez, mas Cristina concorda ainda menos, mas dão-se bem pessoalmente e sobretudo necessitam do dinheiro da Venezuela.
Há algum candidato que pode derrotar Cristina Kirchner nas eleições de 28 de Outubro? Ninguém a pode derrotar. O sistema eleitoral argentino indica que quem atingir 45% ganha à primeira volta; se tiver 40% e o segundo candidato não atingir 30% ganha igualmente à primeira volta. É pouco provável que a Cristina não atinja os 40%. Tinha de acontecer uma catástrofe.
Não há um candidato forte que a ameace? Não. Roberto Lavagna, um antigo ministro da Economia de Kirchner e de Duhalde, é um candidato muito bom mas não tem carisma e provavelmente não terá mais de 20%. Há também Elisa Carrió, uma candidata mais de esquerda, mais messiânica e diligente, mas pouco pragmática e que dificilmente terá 30%.
Quais deverão ser as prioridades do próximo Presidente? O combate à inflação. Neste momento, a inflação está entre 10 e 15% e a história indica que quando a inflação supera os 20% vai para a hiper-inflação, ou seja, para três dígitos. Economicamente, é catastrófico. É possível que este governo ou o próximo consigam impedir os três dígitos de inflação, mas para isso têm que tomar muitas medidas impopulares. Se a Cristina ganhar, será o governo do marido a tomar essas medidas. Kirchner pagará esse custo político e Cristina começará a governar fresca.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de outubro de 2007. Pode ser consultado aqui. Uma versão curta da entrevista foi publicada no “Expresso”, a 13 de outubro de 2007
1960 — A República de Chipre declara a independência do Reino Unido. É liderada por um Presidente grego, o arcebispo Makarios, e por um Vice-Presidente turco, Fazil Kucuk. Segundo o Tratado de Garantia, Reino Unido, Grécia e Turquia são os fiadores da independência do novo país e dispõem do direito de intervir.
1963 — Uma proposta em 13 pontos de revisão constitucional do Presidente Makarios é recebida pelos cipriotas turcos como uma tentativa de alteração da distribuição de poder entre as duas comunidades. A violência explode e, nos anos seguintes, morrem 1000 cipriotas turcos e 200 cipriotas gregos.
1964 — A Resolução 186 da ONU cria a UNFICYP, com a missão de garantir a inviolabilidade da linha de cessar-fogo e da zona-tampão.
1974 — A Junta militar no poder na Grécia desde 1967 apoia um golpe contra Makarios, que foge, só regressando no final do ano. O Governo da Turquia aprova uma intervenção militar. A ilha é dividida.
1975 — Os cipriotas turcos estabelecem uma administração independente, com Rauf Denktash como Presidente. Denktash e Glafcos Clerides, o sucessor temporário de Makarios, acordam uma troca de populações.
1983 — É declarada unilateralmente a República Turca de Chipre do Norte. Apenas a Turquia reconhece o novo país.
2002 — O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, apresenta um plano ao Conselho de Segurança propondo a reunificação da ilha sob uma federação de Estados iguais.
2003 — Pela primeira vez desde 1974, cipriotas gregos e turcos são autorizados a atravessar a fronteira. Até ao final do ano, cerca de 2 milhões de pessoas cruzam a Linha Verde sem incidentes.
2004 — A 24 de Abril, realiza-se nos dois lados da ilha um referendo ao Plano Annan: a Norte, os turcos aprovam-no com 65% de “sim”; a Sul, os gregos rejeitam-no com 70% de “não”. Uma semana depois, a 1 de Maio, a República de Chipre (Sul) adere à União Europeia.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de outubro de 2007. Pode ser consultado aqui
Na ilha dividida de Chipre, duas comunidades tardam em reunificar-se. Para os cipriotas turcos (no Norte), a adesão dos cipriotas gregos à União Europeia tornou esse diálogo ainda mais difícil. Entrevista a Mehmet Ali Talat, Presidente dos cipriotas turcos. Reportagem na República Turca de Chipre do Norte
O senhor é Presidente de um país que declarou a independência em 1983. Mas quão autónomo é o seu país, designadamente em relação à Turquia? Quando, em 1974, a Grécia organizou um golpe de estado e tentou anexar o Chipre, a Turquia interveio e a ilha dividiu-se em dois. Os cipriotas turcos continuaram a governar-se até 1983, quando foi declarada a República Turca do Norte de Chipre. Durante esse período, tivemos um apoio incondicional da Turquia, que foi essencial à sobrevivência do país, mas que, por ser incondicional, criou laços diferentes do normal.
Que reflexos tem hoje esse apoio incondicional? Muito claramente, a segurança dos cipriotas turcos é garantida pela Turquia. Financeiramente, recebemos apoio contínuo da Turquia. Perante isto, não é expectável que tenhamos uma independência total da Turquia. Isso não quer dizer que a Turquia decida tudo o que tem a ver com a vida quotidiana dos cipriotas turcos. Mas alguns dos assuntos mais importantes têm de ser objecto de consultas.
Pode dar um exemplo? Ao nível da segurança, se quisermos tomar algumas medidas que possam ser encaradas como medidas de criação de confiança entre as duas forças militares da ilha temos de consultar a Turquia. E fazemo-lo.
E na maioria das vezes, os turcos estão de acordo? Geralmente concordam, mas nem sempre…
Não se sente então Presidente de um país ocupado… A ajuda turca ascende a cerca de 300 milhões de dólares por ano, o que cobre 35% do nosso orçamento, e ainda recebemos mais uma quantia para infra-estruturas. Um país que ajuda à emancipação do nosso povo não pode ser tratado como ocupante. Para os cipriotas turcos, a Turquia é o seu defensor.
Face ao resultado do referendo ao Plano Annan, em 2004, ainda acredita na reunificação da ilha? O nosso desejo e a nossa luta são pela unificação da ilha. Acreditamos e desejámo-la. Mas infelizmente o governo cipriota grego não partilha desta linha. Como disse o Presidente Tassos Papadopoulos na Assembleia-Geral da ONU em 2005, o objectivo deles é a unificação do país através da assimilação. Para nós, isso é inaceitável.
Assim sendo, a solução de dois Estados não seria preferível? A única solução é a unificação, por várias razões. Desde logo, por ser a única opção que foi equacionada pelas Nações Unidas. Até ao momento, a solução de dois Estados não tem sido uma opção para resolver o problema cipriota. Mas se continuarmos assim, a divisão pode tornar-se permanente.
A unificação poderia ser feita ao abrigo de um Estado federal? Sem dúvida. Defendo uma entidade composta por dois Estados, com igualdade política e sob a protecção de uma federação.
Tragédia grega
Os cipriotas turcos sentiram-se traídos com o resultado do referendo? Sentiram-se ressentidos.
A entrada da República de Chipre (Sul) na União Europeia (UE), em 2004, facilitou este processo ou dificultou-o? O processo tornou-se mais difícil, porque os cipriotas gregos estão a utilizar a sua adesão à UE de uma forma muito negativa. Eles não querer partilhar poder, não querem cooperar connosco e querem impor a sua superioridade, o que torna difícil a obtenção de um Estado em parceria.
Como resolveria o problema da propriedade? Através de compensações, da restituição ou da permuta, como estava previsto no Plano Annan.
Mas essa solução pode trazer problemas. Há cipriotas turcos e gregos que podem querer regressar às suas antigas terras e com isso formar zonas minoritárias nos dois lados… É verdade, isso pode acontecer. Mas na minha opinião, isso não deverá abalar o princípio da bizonalidade.
Num cenário de reunificação, qual será o papel da Turquia? A Turquia deixaria a ilha.
Porque é que os cipriotas gregos têm medo da reunificação? Eles não têm medo da reunificação. Acreditam que sendo membros da UE conseguirão mais e conseguirão impor a sua superioridade sobre os cipriotas turcos. Antes do referendo, o Presidente Papadopoulous dirigiu-se ao povo e disse: ‘Vamos ser membros da UE uma semana após o referendo. Porque deveríamos votar pela abolição do Estado e pela formação de outro Estado?’
A adesão da Turquia à UE ajudaria a resolver o problema? Esse processo é essencial para chegarmos a uma solução. Sem isso, não creio que o problema cipriota seja resolvido.
É Presidente de um país que não existe. Faz visitas oficiais para além para a Turquia? A título oficial, viajo para a Turquia, Paquistão e Azerbaijão. Mas também recebo convites com outros títulos. Recebi convites na qualidade de líder da comunidade cipriota turca de vários países, incluindo Suécia, Finlândia, Reino Unido, Estados Unidos e outros.
E de Portugal? Ainda não. O Expresso é a primeira entidade portuguesa com quem estou a falar sobre este assunto.
Um conflito sem guerra
Ao visitar o seu país tem-se a sensação que este problema é puramente político… É verdade.
Vê-se cipriotas gregos no Norte, vocês podem visitar o Sul. As duas comunidades não estão em guerra. Porque é que a solução é tão difícil? Eles não reconhecem o nosso direito de nos governarmos a nós próprios.
É uma questão de arrogância? Nós temos um Estado próprio, poderes autónomos, tribunais, polícia, exército… e eles não querem isso, mas antes estender a sua soberania a toda a ilha. Eles não aceitam a presença de polícias turcos. No caso de um assassinato, no Norte ou no Sul, com implicações na outra comunidade, eles não cooperam. Se um traficante de droga cipriota turco for apanhado no Sul, eles não tentam obter apoio da nossa polícia, ou vice-versa. Eles dizem: ‘Vocês não existem’.
Portugal preside à União Europeia neste momento. Quer mandar alguma mensagem? Apelo é que ouçam os cipriotas turcos. Após o referendo ao Plano Annan, o Conselho Europeu decidiu levantar o isolamento aos cipriotas turcos. E porquê? Tínhamos chocado a comunidade internacional, que esperava que os cipriotas turcos votassem contra a unificação e os cipriotas gregos votassem a favor. Aconteceu o contrário. Nós ficamos muito animados quando ouvimos a decisão da UE. Pensamos que depois os cipriotas gregos sentir-se-iam obrigados a encontrar uma solução para o problema. Mas infelizmente, a UE não cumpriu a promessa e nada fez para levantar o isolamento ao nosso país. Esperamos que a presidência portuguesa nos ajude.
Versão integral da entrevista publicada na edição do Expresso de 5 de Outubro de 2007, 1.º Caderno, página 38.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de outubro de 2007. Pode ser consultado aqui
A ilha mediterrânica de Chipre acolhe dois países e um conflito que começou há 33 anos. Reportagem na República Turca de Chipre do Norte
Para José Carreras não terá passado de apenas mais um espectáculo. Mas, para os cipriotas turcos, o concerto que o tenor espanhol deu nas ruínas de Salamis foi a vários níveis histórico. Não é todos os dias que um artista de calibre fura o isolamento internacional a que está votada a parte norte da terceira maior ilha do Mediterrâneo. “Ele já podia ter vindo há dois anos, mas foi impedido por eles”, diz Fatma, uma cipriota turca de 34 anos. “Eles” são os cipriotas gregos, que vivem na parte sul da ilha, reconhecida internacionalmente como República de Chipre e membro da União Europeia desde 1 de Maio de 2004.
Declarada independente em 1983, a República Turca de Chipre do Norte e os seus 265 mil habitantes têm uma única porta para o mundo — a Turquia, o único país que a reconhece. Como herança da invasão turca de 1974, há 23 mil militares turcos estacionados no norte, e a ajuda económica de Ancara ascende a 220 milhões de euros por ano. Fala-se turco, paga-se em liras turcas (1€ = 1,75lt), as operadoras telefónicas são turcas e nos restaurantes come-se “kebbab” turco e bebe-se vinho turco. Kemal Ataturk, o pai da Turquia moderna, está por todo o lado, a CNN turca em todas as televisões e os turistas turcos desembarcam aos magotes.
Nas noites de domingo, as esplanadas da marina de Kerynia, na costa norte, transbordam de gente. Nas fachadas dos bares e restaurantes há vários plasmas sintonizados num jogo da liga turca. A cada golo do Galatasaray, a marina transforma-se numa imensa claque do clube de Istambul.
No Chipre do Norte, não se lamenta esta dependência em relação à ‘terra-mãe’, como chamam à Turquia. O salário mínimo ronda as 900 liras turcas (515 euros), 60% da população tem um curso universitário e o território é o maior importador de BMW “per capita” do mundo. Quanto à presença de militares turcos, representam segurança para os habitantes deste lado da ilha.
O insólito da parte norte — um dos poucos sítios do mundo onde não existe um McDonald’s — prende-se com a ausência de relações comerciais directas com o estrangeiro: se um empresário quiser importar vinho português, só poderá fazê-lo através de um intermediário turco. Também as ligações directas para o aeroporto de Ercan não abundam: do estrangeiro, só se voa para Chipre do Norte através de Istambul.
Governada no passado pelos britânicos, a ilha de Chipre — onde se conduz pela esquerda — é um popular destino de férias no Reino Unido, incluindo o norte. Em Kerynia, o sotaque britânico soa a cada esquina, e na montra da imobiliária Remax o preçário das “villas” está em libras. “Quando os ingleses se queixam que eu tenho um nome difícil de pronunciar, digo-lhes: Não se preocupem, eu tenho uma versão inglesa, podem chamar-me Alex”, brinca Dursun, um empregado de mesa do Café Harbour que nasceu em Ancara há 31 anos: “Na Turquia, a fazer o mesmo, ganharia menos de metade do que aqui”.
Norte e Sul não vivem propriamente de costas voltadas. As duas comunidades visitam-se com naturalidade desde que, em 2003, foram abertos cinco pontos de passagem ao longo dos 185 quilómetros de fronteira. O Expresso constatou que é possível atravessar a pé e quase despercebido o “checkpoint” de Ledra Gate, em Nicósia — a última capital dividida desde a Guerra Fria —, sem que os guardas cipriotas turcos e gregos perguntem ao que vamos.
Facilmente reconhecidos pela matrícula dos carros, muitos cipriotas do Sul atravessam a ‘linha verde’ para jogar nos casinos do Norte, onde o jogo é legal para cidadãos estrangeiros. “Temos clientes que vêm da parte grega”, confirma a responsável pela sala de jogo do Casino Dome. “E também da Turquia. Apanham um voo pela manhã e passam aqui o dia. São turistas-jogadores, como os de Las Vegas”.
Nas ruas, não é perceptível a mínima animosidade. Mas para os cipriotas turcos, a adesão dos cipriotas gregos à União Europeia tornou o diálogo mais difícil. “Eles estão mais arrogantes, ficaram com o bolo e nós sem nada”, diz Meral, uma cipriota turca de 29 anos. Os melhores amigos dos pais de Meral são cipriotas gregos. “Gostam imenso de conviver e de fazer férias juntos, no norte e no sul. Mas quando se sentam à mesa e começam a falar de política, está o caldo entornado…”, diz.
O menu é farto em pastas italianas e tapas espanholas, mas comida portuguesa, nem vê-la. “Não é fácil obter os ingredientes. Onde é que eu arranjo bacalhau?”, interroga Paulo Aguiar, proprietário dos Sabor, dois restaurantes portugueses em Nicósia. “Há clientes que perguntam se não tenho sardinhas…”, confessa este madeirense de 34 anos, a viver em Nicósia há cinco anos.
O negócio corre-lhe bem e Paulo já sonha já com a abertura de uma terceira casa, em Kerynia, um investimento a rondar as 100 mil libras. “Vêm cá cantores e futebolistas turcos, o Presidente Talat, o pessoal das Nações Unidas…”, diz com vaidade. 80% dos clientes são turcos bem como 30 dos seus 32 empregados. “Os de cá não gostam de trabalhar em restaurantes, querem é trabalhar para o Governo, por causa do estatuto”, diz o português.
Paulo saiu da Madeira aos 18 anos rumo a Londres, onde trabalhou em restaurantes e conheceu Fatma, uma cipriota turca. Aos 29 anos, optou por ir viver para a terra da mulher, um sítio mais tranquilo para criar os filhos. Fala ao Expresso sentado na esplanada do Sabor situado junto à grande mesquita da capital. A noite já vai longa e a pequenita Inês, de 5 anos, dorme ferrada nos braços do pai. Já Kadir, três anos mais velho, não dá mostras de cansaço: “Em Portugal, o meu clube é o Porto, na Turquia é o Fenerbaçe e na Inglaterra é o Manchester United. Joga lá o Cristiano Ronaldo e o Nani”.
SABOR PORTUGUÊS
A ementa é farta em pastas italianas e tapas espanholas, mas comida portuguesa nem vê-la. “Onde é que arranjo bacalhau?”, interroga Paulo Aguiar, 34 anos, dono dos Sabor, dois restaurantes portugueses em Nicósia. “Há clientes que perguntam se não tenho sardinhas”, confessa. Natural da Madeira, Paulo emigrou aos 18 anos para Londres, onde conheceu a mulher, Fatma, cipriota turca. Há cinco anos, mudaram-se para Nicósia e apostaram na restauração. O negócio corre-lhes bem e Paulo já sonha com a abertura de outra casa: “Vêm cá cantores e futebolistas turcos, o Presidente Talat e o pessoal das Nações Unidas”, diz Paulo. 80% dos clientes dos Sabor são turcos, bem como 30 dos seus 32 empregados. “Os de cá querem é trabalhar para o Governo, por causa do estatuto”.
CINCO PERGUNTAS A Mehmet Ali Talat, Presidente da República Turca de Chipre do Norte
É Presidente de um país que é independente desde 1983. Mas quão autónomo é o seu país em relação à Turquia? Entre 1974 — quando a Grécia tentou anexar o Chipre e a Turquia interveio — e 1983, tivemos um apoio incondicional por parte dos turcos. Esse apoio foi essencial à sobrevivência do país, mas, por ser incondicional, criou laços diferentes do normal entre a Turquia e os cipriotas turcos. A segurança dos cipriotas turcos é garantida pela Turquia. Financeiramente, recebemos apoio contínuo da Turquia: 300 milhões de dólares por ano, o que cobre 35% do nosso orçamento e ainda mais uma quantia para infra-estruturas. Perante isto, não é expectável que tenhamos uma independência total da Turquia. Para os cipriotas turcos, a Turquia é o seu defensor.
A entrada da República de Chipre na União Europeia, em 2004, facilitou ou dificultou este processo? O processo tornou-se mais difícil. Os cipriotas gregos estão a utilizar a sua admissão à UE de forma muito negativa. Não querem partilhar poder e tentam impor a sua superioridade, o que torna difícil a instituição de um Estado em parceria.
A adesão da Turquia à União Europeia ajudaria a resolver o problema? Esse processo é essencial para chegarmos a uma solução para o problema cipriota. Sem isso, não creio que o problema cipriota seja resolvido.
Para a maioria dos países, o seu país não existe. Faz visitas oficiais? A título oficial, viajo para a Turquia, Paquistão e Azerbaijão. Também recebi convites na qualidade de líder da comunidade cipriota turca da Suécia, Finlândia, Reino Unido, Estados Unidos e outros.
E de Portugal? Ainda não. O Expresso é a primeira entidade portuguesa com quem estou a falar sobre este assunto.
O Expresso viajou a convite da Presidência da República Turca de Chipre do Norte
Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de outubro de 2007 e, parcialmente, no “Expresso Online”, a 4 de outubro. Pode ser consultado aqui e a entrevista integral aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.