Khadafi abriu o Livro (Verde) e deu lições na Universidade (Clássica)

O governo da Líbia abriu os cordões à bolsa e desbloqueou uma verba avultada para investimentos, sobretudo em construções e turismo. A bola está agora do lado dos empresários portugueses

A prova de que quase ninguém fica indiferente a Muammar Khadafi aconteceu na sexta-feira de manhã quando o Presidente líbio se predispôs a participar no seminário “Problemas da Sociedade Contemporânea”, na reitoria da Universidade Clássica de Lisboa. A curiosidade era imensa, a segurança aparatosa e os notáveis abundavam na plateia, de militares a embaixadores. Mas Khadafi foi tudo menos diplomático: “A esperança que depositamos nas Nações Unidas está a desaparecer. Actualmente, a lei da força foi imposta no sentido de ser a lei da concordância e os abusos continuam. É o mais forte quem redige as leis”, disse. Khadafi considerou mesmo que “nas Nações Unidas assistimos a uma ditadura”.

Os ecos da intervenção do Presidente líbio chegariam ao Pavilhão Atlântico onde decorre a Cimeira UE-África. Após Khadafi ter defendido que “os colonizadores devem indemnizar os povos que colonizaram”, o comissário europeu para o Desenvolvimento, Louis Michel, não se poupou ao bate-boca e reagiu dizendo que os “colonizadores já pagaram” e “não têm lições a receber”.

Sem nunca se referir a um país em particular, o Presidente líbio defendeu ainda a proibição total de armas nucleares: “A arma nuclear é permitida para uns e proibida para outros. Se essa arma ameaça a vida, deve ser proibida para todos”. E concluiu com um apelo às massas: “Gostava de me dirigir à opinião pública: se deixarmos esta situação difícil que se vive no mundo nas mãos dos políticos, eles nunca a vão resolver. Não podemos contar com eles. Os políticos necessitam de ser pressionados”.

Artigo publicado no Expresso Online, a 8 de dezembro de 2007. Pode ser consultado aqui

Na tenda com Kadhafi

O Presidente da Líbia correu as cortinas da sua tenda no Forte S. Julião da Barra às mulheres portuguesas, para falar de direitos e deveres. Corresponderam ao convite sobretudo africanas

Selo comemorativo do 13º aniversário da revolução de 1 de setembro de 1969, liderada por Muammar Kadhafi, que depôs o rei Idris WIKIMEDIA COMMONS

Muammar Kadhafi tinha pedido um encontro com 600 mulheres portuguesas, mas metade das cadeiras colocadas no interior da tenda destinada para o efeito, no Forte de S. Julião da Barra (Oeiras), ficaram por ocupar.

Maioritariamente, corresponderam ao convite do Presidente da Líbia africanas. Num dos lugares com melhor visibilidade para o palco, a guineense Ivone, de 35 anos, está particularmente animada, não se cansando de exibir um poster do coronel.

“Estou muito entusiasmada. Ele é um Presidente que apoia sempre as mulheres”, diz. Ao seu lado, Leónia, guineense da mesma idade, fala das expectativas em relação ao que Kadhafi terá para dizer: “Espero ouvir algo que seja interessante para nós, imigrantes em Portugal. Estamos a passar por dificuldades, temos problemas económicos e espero que o Presidente Kadhafi possa indicar-nos uma solução que seja boa para a nossa vida”.

Vestidas discretamente ou com vistosos e coloridos trajes africanos, todas as mulheres passaram, à entrada da tenda, pela inspecção minuciosa das amazonas, a guarda pretoriana feminina que é a sombra de Kadhafi onde quer que ele vá. “Ao escolher mulheres para serem seguranças, ele mostra o papel que as mulheres podem ter”, continua Leónia. “As mulheres não são para estar só na cozinha ou a fazer trabalho doméstico. Eu não me importava nada de ser uma das seguranças dele”, diz, provocando risos.

Ivone e Leónia souberam deste encontro através de uma associação guineense e deslocaram-se até ao Forte num autocarro fretado para o efeito. O mesmo aconteceu com a sãotomense Susana, de 60 anos, que à falta de alternativa para melhor passar o tempo apanhou a excursão que partia da Quinta do Mocho sem saber muito bem ao que ía. “Eu só vim porque sou doente e estou sozinha. As minhas amigas vieram para aqui e eu também vim”, diz. Susana não sabe o que se vai ali passar nem quem será a ilustre figura que vai ocupar a poltrona colocada no centro do palco.

Conduzir comboios é para os homens

Uma fila à frente, a actriz Raquel Henriques aguarda Kadhafi com grande serenidade. “Estou ligada a questões humanitárias, sobretudo envolvendo crianças, e estou a fazer uma formação no Centro Português para os Refugiados. Surgiu um convite para vir cá e quero ouvir o que o Presidente Kadhafi tem para dizer. Além disso, ele é uma personagem um pouco especial. Ainda não consegui perceber se ele é uma pessoa amada ou odiada e fiquei curiosa”.

Mais de uma hora depois do horário previsto, Kadhafi irrompe pelo palco e arranca os primeiros aplausos. Sorri, acena e coloca a mão direita sobre o coração. A plateia está munida de auscultadores que vão traduzindo, de árabe para português, o que ele diz. Kadhafi invoca várias vezes o seu famoso ‘Livro Verde’ para dizer de sua justiça: “Nos deveres, não pode haver igualdade entre homens e mulheres, apenas nos direitos”. E socorre-se de um exemplo: se uma mulher quiser conduzir um comboio tem o direito de o fazer, mas não o dever porque essa é uma tarefa dos homens.

Raquel parece interessada. Já Susana, vai dormitando à medida que o discurso se prolonga. Bem ao seu estilo, Kadhafi foi-se deixando ficar, enquanto, em Lisboa, começavam a chegar ao Pavilhão Atlântico as delegações participantes na Cimeira UE-África para o jantar inaugural.

Artigo publicado no Expresso Online, a 8 de dezembro de 2007. Pode ser consultado aqui

Um continente à espera de crescer

Combina o melhor e o pior e é o continente com a população mais jovem. Cobiçada pelo resto do mundo, África é uma grande promessa

Mapa de África WIKIMEDIA COMMONS

O continente africano está a mexer. E Cabo Verde é prova disso. Este PALOP é o país africano com o mais alto registo no índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas (102º lugar em 177 países) e, em média, um cabo-verdiano vive 71 anos, a mais alta esperança de vida à nascença no continente. A estratégia do sucesso tem sido orientada pela capacidade de tirar o melhor rendimento possível do turismo, dos serviços aeroportuários e das remessas enviadas pela diáspora de 800 mil cabo-verdianos espalhados pelo mundo. O arquipélago já passou ao estatuto de país de médio rendimento segundo a ONU e é um dos mais reconhecidos casos de progresso entre os 53 membros da União Africana.

FALTA INFOGRAFIA

África tem extremos: grandes vulnerabilidades e imensas riquezas naturais. À margem da conferência da Amnistia Internacional (AI) ‘Direitos Humanos e Desenvolvimento — Uma Estratégia para África’, organizada com o objectivo de dar voz à sociedade civil africana no âmbito da cimeira UE-África, o missionário comboniano Padre Leonel Claro (há dez anos no Chade), disse ao Expresso que “o petróleo é uma maldição para o Darfur e para o Chade. As companhias petrolíferas consomem mais energia do que toda a população do Chade. E apesar do petróleo, o país está hoje mais pobre, inseguro e sem perspectivas de futuro que há dez anos”. A cobiça política por tantas riquezas, as consequências devastadoras das alterações climáticas e as disputas entre etnias estão na origem de algumas das piores crises humanitárias do último meio século, como a do Darfur.

“Vim há dez dias do Sudão onde decorriam bombardeamentos aéreos e terrestres sobre a população, onde se vive uma total falta de segurança, onde os jornalistas estão presos, e os dirigentes gozam de total impunidade”, disse Salih Mahmud Osman, o Prémio Sakharov 2007, outro participante na mesma conferência da AI. O activista sudanês acrescentou que “o número de pessoas directamente afectadas pelo genocídio — chamo-lhe assim porque sou advogado — é de cinco milhões”. O respeito pelos direitos humanos no continente é o garante da paz e do desenvolvimento, já dizia o ganês Kofi Annan, o ex-secretário-geral da ONU que lançou, em 2000, os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio para 2015.

Milhões é também a ordem de grandeza da pandemia do HIV-sida no território. Só na região subsariana, oito países albergam quase um terço de todos os novos infectados e das mortes por HIV-sida do planeta. Entre eles está a Zâmbia com 17% da sua população infectada. Andrew Tandeo é dirigente juvenil nesse país e, em declarações ao Expresso à margem da Cimeira da Juventude, alertou para a necessidade de multiplicar os fundos para programas de prevenção. Porque “África é um continente muito jovem e o mais afectado pelo HIV-sida e porque os jovens são os agentes da mudança”.

Dentro de três anos, África captará o olhar do mundo ao realizar o maior evento desportivo de sempre no continente — o Mundial de Futebol. A África do Sul será o lugar da expressão da capacidade de realização africana.

— 90% das jazidas mundiais de platina, crómio e cobalto, 25% das de titânio, matérias utilizadas nas novas tecnologias, encontram-se em território africano

— 10% das reservas de petróleo do planeta estão em África. O maior exportador do continente é a Nigéria

— 40% do ouro e 60% do manganésio existente na Terra estão à espera de ser extraídos do solo africano

— 295 mil barris de gás natural líquido são produzidos pela Argélia diariamente

— Nos últimos dez anos, o Ruanda e o Uganda conseguiram ganhar sete anos na esperança de vida à nascença

— As exportações na África subsariana aumentaram de 125 milhares de milhões de euros, em 2004, para 157 milhares de milhões de euros, em 2005, o que representa um aumento de 26%

— A maior população da África subsariana é de 131,5 milhões de pessoas (Nigéria); a mais pequena é de 0,1 milhão (Seychelles)

— A soma do PIB da África do Sul e do da Nigéria corresponde a 54% do total o continente

— 700 empresas chinesas investem actualmente em 49 países africanos. Na Serra Leoa, país que ocupa o último lugar do índice de desenvolvimento humano (177º), os chineses estão a investir 1615 milhões de euros na construção de instalações balneares

— Os maiores investidores em África no sector energético são a União Europeia, os Estados Unidos, França, Brasil, China e Índia

— A Mauritânia tem a mais alta taxa de frequência no ensino secundário (88%); a Namíbia tem a mais baixa (7%)

— Na última década, dois africanos foram galardoados com o Prémio Nobel da Paz: o ganês Kofi Annan, ex-secretário-geral das Nações Unidas (2001), e a queniana Wangari Maathai, activista dos direitos humanos (2004)

Artigo escrito com Cristina Peres.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de dezembro de 2007 Pode ser consultado aqui

Tolerância zero à corrupção

A corrupção é um dos maiores desafios do continente africano. Uma ex-governante nigeriana dá dicas práticas sobre como ser eficaz nesse combate e identifica bons exemplos africanos a seguir

PIXABAY

“Quem, nesta sala, sabe o nome do Presidente da Suíça?” Uma cidadã suíça sabia, o que tirou impacto ao desafio lançado por Ngozi Okonjo-Iweala, a nigeriana que integrou um painel de discussão sobre “Assuntos de Governança e Corrupção em África”. A intenção desta executiva do Banco Mundial era demonstrar que apesar do nome do chefe de Estado suíço ser praticamente desconhecido, o país atrai muitos negócios porque tem instituições fortes e consolidadas. “Isto também previne a corrupção”, rematou a nigeriana, aludindo a um dos grandes problemas em África.

Ngozi Okonjo-Iweala sabe do que fala. Até há bem pouco tempo, foi ministra dos Negócios Estrangeiros e, antes disso, ministra das Finanças. Nessa altura, promoveu medidas anti-corrupção que agora cita como exemplo: mandou publicar nos jornais quanto é que cada governo regional recebia por mês do poder central – rendimentos esses provenientes da partilha dos rendimentos do petróleo. “Então, muitos cidadãos que frequentemente viam os seus salários não serem pagos por falta de verbas começaram a confrontar os governos regionais: ‘Como é que vocês não têm dinheiro para nos pagar se recebem tanto?'”.

A nigeriana acredita que “o ciclo da corrupção pode ser quebrado”. Para tal, “há que ter tolerância zero à corrupção”, disse. Questionada pelo Expresso se em África não existem bons exemplos nesta matéria, respondeu de pronto: “Claro que há. O Botswana, por exemplo. Gere muito bem o dinheiro proveniente da venda de diamantes”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de dezembro de 2007. Pode ser consultado aqui

1000 milhões acabam com o problema

A questão da imigração foi abordada no primeiro dia dos trabalhos. O primeiro-ministro espanhol discursou sobre o tema e o Presidente líbio anunciou a fórmula mágica para erradicar a imigração ilegal

GERD ALTMANN / PIXABAY 

Muammar Khadafi pediu 1000 milhões de euros à União Europeia para erradicar o fenómeno da imigração ilegal, confirmou o ministro espanhol dos Negócios Estrangeiros espanhol, no final do primeiro dia de trabalhos da cimeira UE-África. “É verdade que ele afirmou que se recebesse uma ajuda de 1000 milhões de euros, os problemas migratórios poderiam resolver-se”, afirmou Miguel Moratinos, em conferência de imprensa, admitindo de seguida que a actual ajuda financeira ao desenvolvimento da África Subsariana “não é suficiente”.

“Migração, Mobilidade e Emprego” foi precisamente o tema da intervenção do primeiro-ministro espanhol, José Luís Rodrigues Zapatero, nas primeiras horas da cimeira. Segundo Moratinos, a imigração é, juntamente com a ajuda ao desenvolvimento, um dos pilares da “nueva mirada” de Espanha em relação a África. “Há uma ruptura em relação às políticas tradicionais, que abordavam unicamente as questões de segurança e de controlo de fronteiras”.

Moratinos deu ainda conta do assédio que rodeou Rodríguez Zapatero ao nível de encontros bilaterais. Paralelamente aos trabalhos da cimeira, o chefe do Governo espanhol reuniu-se com os Presidentes da França, Mauritânia, Senegal, Argélia, Angola, Nigéria, Chade e Guiné-Bissau e ainda com os primeiros-ministros da Guiné-Conakry e da Turquia. “Há uma lista enorme de pedidos para reuniões com o presidente do Governo espanhol”, conclui Moratinos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de dezembro de 2007. Pode ser consultado aqui