Em 2001, a organização terrorista basca tentou calar Gorka Landaburu. Em entrevista ao Expresso, o director da revista ‘Cambio 16’, de 56 anos, recorda esse dia e explica os contornos do conflito no País Basco. Reportagem no País Basco

Quais são hoje as principais sensibilidades na sociedade basca em relação à sua questão nacional?
Em Espanha, há três regiões (ou três nações) que têm um sector importante da sua população que reivindica desde o direito à autodeterminação, à independência, ou a modelos federais ou confederais — Catalunha, País Basco e Galiza. Na transição democrática que se seguiu à morte de Franco, chegou-se a um acordo de ordem política no qual estas três regiões iam ter estatutos diferenciados com direitos importantes. Das três, quem obteve mais foi o País Basco, por uma razão muito simples: desde sempre, e ainda anteriormente a Franco, teve um estatuto com mais poderes do que a maior parte das regiões da Europa. Temos um governo, um Parlamento, uma polícia, canais de televisão próprios, etc. Mas a pedra angular, que não têm nem catalães nem galegos, é o “Concierto Económico”.
O que é?
No País Basco, o governo autónomo recolhe os impostos, distribui-os pelos bascos e dá só uma parte a Madrid — “El Cupo”. Na Catalunha e na Galiza, é Madrid quem recolhe os impostos. Este privilégio permite aos bascos fazerem a gestão dos seus próprios recursos. Por isso, este ‘país’ evoluiu incrivelmente nos últimos 25 anos. Aqui, o nacionalismo (falemos de nacionalismo democrático) é uma força importante e o Partido Nacionalista Basco (PNV) — um partido de tendência democrata-cristã com mais de 100 anos — governa desde há 25 anos, ainda que em coligação.
E o que pretende o nacionalismo?
O nacionalismo democrático pretende governar. Mas dizem que são independentistas e que algum dia os bascos terão de definir o que querem — separar-se de Espanha, o direito à autodeterminação, um modelo confederal ou federal. Esta é a questão pendente e o principal argumento dos nacionalistas moderados do PNV. Mas paralelamente, temos um sector radical que defende a independência e que representa em votos entre 10 e 12% — a chamada “izquerda abertzale”. Esse sector radical está tutelado por uma organização violenta e terrorista que se chama ETA (“Euskadi Ta Askatasuna” — Pátria Basca e Liberdade, em basco), que existe desde há mais de 40 anos, que exerce a violência e a pressão e que, com isso, distorce o panorama político. Amanhã, poderia o País Basco ser independente? Não sabemos, porque há uma divisão muito clara. Se pusermos todo o nacionalismo no mesmo saco (o radical, o democrático e outras tendências), ele representará cerca de 55% dos votos; os que votam em partidos estatistas (como o PSOE ou o PP) representam 40 a 45%. Poderíamos, em algum momento, decidir? Sim, porque em democracia podemos fazer o que queremos. Há verdadeira democracia no País Basco? Não, porque há chantagem e uma coacção importante por parte de um grupo terrorista. E no campo nacionalista, poderiam os radicais e moderados porem-se de acordo? É muito complicado também. Tudo é possível em democracia, mas ir por um caminho que nos conduza à independência com violência e terrorismo e que, ainda por cima, pode dividir a sociedade basca não é o mais oportuno. Há que buscar consensos políticos amplos entre todas as forças políticas e chegar a um acordo como se chegou há 25 anos com o estatuto de autonomia que teve o apoio da grande maioria dos bascos, salvo dos radicais.
Eleitorado radical está a diminuir
Em quem votam os 10 a 12% de eleitorado radical?
A justiça mobilizou-se contra o partido que apoia a ETA. Comprovou-se que o Batasuna é, de certa maneira, o cordão umbilical com a ETA. Todo o Batasuna? Não, mas há muitas provas que relacionam directamente dirigentes do Batasuna com o aparato militar da ETA. Por isso, a justiça interveio e ilegalizou-o. (Eu não sou partidário das ilegalizações, nem tão pouco do encerramento de jornais — não resolvem o problema de fundo.) É certo que há 10% de pessoas que apoia e vota Batasuna, mas isso não quer dizer que defendam a ETA. Agora, como este sector não se pode apresentar às eleições (a cúpula dirigente do Batasuna está presa), pediu o voto na abstenção.
Com que objectivo?
Há sempre uns 20 a 25% de pessoas que se abstêm. Assim sendo, é provável que no País Basco haja mais abstenção do que no resto de Espanha, porque a acrescentar a esses 20-25% haverá os tais 10-12% de votos no Batasuna. Eu creio que eles optaram pela abstenção para diluir os seus votos, porque o seu eleitorado fixo tem vindo a diminuir.
Quando os bascos votam, o que é prioritário para eles: a agenda nacionalista dos partidos para a região ou as propostas económicas e sociais?
Tudo se mistura um pouco, mas julgo que para os nacionalistas moderados, o objectivo é ter uma representação no Parlamento de Madrid e com seis, sete deputados ter um grupo parlamentar e defender em Madrid os problemas do País Basco, no âmbito económico, social etc. Se o Batasuna se pudesse apresentar poderia ter em Madrid um ou dois deputados, mas ultimamente, antes de ser ilegalizado, já não iam a Madrid porque diziam que Madrid já não lhes interessava.
Há quem vote em partidos nacionalistas para as autonómicas e nos partidos espanholistas para as legislativas?
Há casos desses. Aliás, para mim, é mais que provável que seja o Partido Socialista a ganhar estas eleições no País Basco. O Partido Nacionalista Basco, que tem sido hegemónico nos últimos 25 anos, tem vindo a baixar, eleições atrás de eleições. As pessoas estão cansadas, estão fartas e querem soluções, querem que sejam resolvidos os seus problemas de trabalho, da casa, etc. Mas aqui, para além da luta política, temos um problema que se chama ETA. E a ETA intervém e distorce a vida política.
Populares com digestão indegesta
Quais são as diferenças entre o PSOE (socialistas) e o PP (populares) em matéria de luta anti-terrorista?
Não creio que haja diferenças de princípio. A única diferença é que o Partido Socialista leva muitos anos a lutar contra a ETA, ainda o PP não existia. Depois, houve um pacto entre a direita e os socialistas (o Pacto Anti-terrorista) que permitia a ilegalização das formações políticas próximas do mundo violento ou que não condenavam a violência — o Batasuna nunca condenou a violência, pelo menos da ETA. Esse Pacto rompeu-se quando José Luis Rodríguez Zapatero ganhou as eleições. Os populares dizem que a culpa foi de Zapatero e os socialistas dizem que a culpa foi do populares. O que está claro é que o PP, que eu considero ser dos partidos mais conservadores da Europa Ocidental, ainda mais conservador do que a direita polaca, utilizou o terrorismo e a luta anti-terrorista contra o governo actual.
E porquê?
Porque o PP não digeriu a sua derrota eleitoral de há quatro anos, às mãos do atentado de 11 de Março. Eles acham que lhes foi usurpado o poder e governo que era deles. Na luta anti-terrorista, nunca houve fissuras entre o PP e o PSOE. Na época de Filipe González, de José Maria Aznar, todos estavam juntos contra um inimigo comum que se chamava ETA. Desta vez, houve uma divisão e de uma forma mais complicada porque tentou-se um processo de paz e esse processo fracassou. Mas havia que tentá-lo. Eu, como vítima directa do terrorismo, apoiei esse processo, como apoiei o processo de Aznar e o de González. Nesta história, o PP foi muito desleal e foi um travão para que se avançasse até a uma solução definitiva.
Há um processo ideal para esta questão?
É muito complicado… Durante 40 anos, lutamos contra um ditador que se chamava Franco, agora já vamos em 35 anos a lutar contra outro ditador que se chama ETA. Não se pode defender nenhuma ideia com bombas e pistolas, muito menos na Europa Ocidental e menos ainda num país onde há uma democracia. Mais tarde ou mais cedo, os terroristas e o governo terão de se sentar. Todos os anos votamos, para as autonómicas, para as legislativas, para as municipais, etc. Estamos em campanha permanente, as pessoas expressam-se e o que dizem claramente é que a ETA tem de deixar as armas. Paralelamente, dizem que os temas de ordem política têm de ser abordados pelos partidos políticos. Ao romper este processo, a ETA enganou-nos e frustrou a sociedade basca, percorreu um caminho sem retorno, meteu-se ainda mais no buraco negro. E são eles os maiores prejudicados: os líderes do Batasuna estão presos e foram fechadas as portas a 700 pessoas detidas que podiam sair. Eles têm de reflectir, deu-se-lhes uma pista de aterragem e não aceitaram. A ETA não está madura para tomar a decisão mais importante da sua vida: é o único grupo terrorista que existe na Europa Ocidental e isso tem de acabar. Tem medo do futuro, de como se vai reciclar, de como vai deixar para trás 40 anos em que não obteve qualquer benefício político.
Antes de um eventual diálogo entre a ETA e o governo será aconselhável um processo entre a ETA e os moderados bascos?
Isso aconteceu no processo anterior. Aprovaram-se duas opções: uma militar, que previa um diálogo entre a ETA e o governo sobre os seus problemas de intendência, como a questão dos presos por exemplo; e uma outra política, onde todos os partidos conversariam sobre o chamado conflito basco (eu prefiro chamar problema político basco). Quando já se chegava a bom porto, a ETA aceitou uma trégua permanente e começou-se a falar. Mas o processo rompeu-se porque a ETA também quis entrar na política. Nessa altura, os moderados deviam ter batido com os punhos na mesa e dizer à ETA: ‘Nós somos o braço político, temos 10 a 12% dos votos e agora há que fazer política’. Mas é a ETA quem manda nos moderados. No dia em que os moderados mandarem na ETA, então a situação começará a mudar. Pessoalmente, enquanto vítima do terrorismo, agradeço a Zapatero por ter tentado alcançar a paz. É a obrigação de todos os governos.
Um funeral de três em três dias…
A ETA está mais débil do que nunca? (Esta entrevista foi feita antes do mais recente atentado da ETA.)
Não gosto muito de falar de debilidade, porque a ETA já tem 40 anos e teve momentos ‘maus’ e ‘bons’. O que é certo é que a ETA de 2008 não é a mesma de há 10 ou 25 anos. Em 1979, 1980 e 1981, a ETA matava 100 pessoas por ano. Eu, que já era jornalista, assistia a um funeral a cada três dias. A pressão policial, judicial e, sobretudo, a pressão social provocaram a debilidade da organização e do mundo que a apoia. O seu dirigente máximo, Arnaldo Otegui, e a mesa nacional estão presos e aqui não houve praticamente reacções. A sociedade está a perder o medo e quer que a ETA desapareça. Mas essa debilidade não quer dizer que não possa haver atentados, porque colocar um carro-bomba em Sevilha, Barcelona, Valência ou Bilbau não é complicado para uma organização profissional como a ETA. Alguns peritos na luta anti-terrorista dizem que a ETA tem 80 activistas, há jovens que escaparam à “kale borroka” (a luta nas ruas) que estão em França e que amanhã poderão cometer um atentado. O que é claro é que a legislatura que agora termina foi a que registou menos atentados mortais — só quatro vítimas (cinco após o atentado de sexta-feira).
Porque foi um alvo da ETA?
Nasci em Paris e vivi 20 anos em França — o meu pai era Vice-Presidente do governo basco no exílio. Os meus pais sempre me ensinaram que o mais importante é a liberdade, a liberdade de expressão e a defesa do direito à vida. Eu conheci os primeiros elementos da ETA quando chegaram a Paris, numa altura em que não se assassinava. Mas a partir do momento em que uma organização é capaz de matar empresários, jornalistas, juízes e magistrados, polícias e vereadores municipais, algo está a falhar completamente. E isso, eu sempre denunciei, na ‘Cambio 16’ e na Rádio França, onde eu tinha uma crónica diária em que 70% dos temas estavam relacionados com a violência terrorista. Como não gostavam das minhas mensagens, um dia mandaram-me um pacote-bomba, que continha 150 gramas de dinamite. Abri-o em minha casa, debruçado sobre as costas da cadeira, por mera casualidade. Tive muita sorte porque o maior impacto atingiu a cadeira. Nesse dia, 15 de Maio de 2001, contrariamente ao que era habitual, não abri o correio a seguir ao telejornal, sentado no sofá, na companhia da minha mulher e da minha filha. A minha escolta – eu tinha sido avisado que estava nas listas da ETA, por isso andava de escolta – tinha apalpado o embrulho e perguntado se eu identificava o remetente. A bomba estava perfeitamente camuflada. Destroçaram-me as mãos, perdi a visão no olho esquerdo, mas cometeram um grave erro: não me cortaram a língua. Não saio deste ‘país’. Se Franco expulsou os meus pais para França, estes senhores não me vão expulsar a mim. Não sou nacionalista, mas sou tão basco como eles, senão mais, e vou defender a liberdade, a liberdade de expressão, o direito à vida e a paz. É esse o meu compromisso pessoal.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de março de 2008. Pode ser consultado aqui







