Ajuda não chega a 80% dos sobreviventes

Três semanas após o ciclone Nargis, as carências persistem. Amanhã, doadores e Junta Militar vão conversar

Chuva e ventos fortes à passagem do ciclone Nargis por Myanmar, a 3 de maio de 2008 MOHD NOR AZMIL ABDUL RAHMAN / WIKIMEDIA COMMONS)

Ban Ki-moon está desde quinta-feira em Rangum, onde amanhã uma conferência internacional organizada pelas Nações Unidas e pela Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) tentará angariar meios para aliviar o impacto devastador do ciclone Nargis.

A Junta Militar pede 11 mil milhões de dólares de ajuda à reconstrução. Mas na véspera da reunião, a expectativa não está em saber se a soma será conseguida mas antes em perceber de que forma se irão compatibilizar duas sensibilidades: por um lado, os doadores internacionais, particularmente os países ocidentais, insistem na transparência das operações de assistência aos 2,5 milhões de birmaneses carenciados; por outro, a Junta Militar que governa a Birmânia está empenhada em manter os funcionários ocidentais à distância, apenas confiando na ajuda proveniente dos países vizinhos — na quarta-feira, o regime recusou uma proposta da Administração norte-americana de transporte de ajuda em navios.

“Conseguimos convencer as autoridades acerca da necessidade de termos pessoal especializado em certas regiões e, esta semana, obtivemos permissão para quatro expatriados irem até à região do Delta”, afirmou ao Expresso Hugues Robert, chefe da unidade de emergência dos Médicos Sem Fronteiras (MSF).

No terreno desde as primeiras horas da tragédia, os MSF constatam, por experiência própria, o que a ONU denunciou esta semana: apenas 20% dos sobreviventes do ciclone Nargis receberam ajuda. “Começamos a dar assistência a umas populações fora da zona de Bogaliy, junto a pequenos rios, que ainda não tinham recebido qualquer ajuda”, diz Hugues Robert. “Fomos os primeiros a chegar lá, mas há muitos outros sítios sem qualquer assistência”.

Os MSF têm 270 pessoas no terreno — uma equipa movimenta-se de barco —, mas apenas 11 estão no Delta do rio Irrawaddy, a região mais atingida. Entrar na Birmânia é um processo burocrático demorado, mas uma vez lá dentro é necessário negociar toda e qualquer movimentação. E é só à medida que as equipas de ajuda vão circulando que é feito o diagnóstico ao nível dos problemas de saúde. Hugues diz que os MSF já detectaram diarreias, malária, dengue e sobretudo infecções respiratórias.

Refere ainda que a maior necessidade das populações prende-se com a falta de abrigos e com a escassez de água potável. “Estas populações estão habituadas a recolher a água das chuvas acumulada nos telhados e a consumir a água recolhida por bombas hidráulicas. Mas a maioria dos telhados foi destruída e as bombas foram contaminadas pelos caudais das inundações. Agora, com as monções, as populações começaram a recolher água boa para consumo, mas em pouca quantidade”, diz.

O início das monções expôs outra faceta deste drama birmanês. “Esta é a época em que costumamos ir para os campos semear o arroz. Seria a altura mais atarefada do ano, mas agora não temos trabalho”, lamentava-se um agricultor de 50 anos, da região de Laputta, ao jornal ‘Mizzima’. Outro agricultor, cuja família escapou ao ciclone, não sabe agora como alimentá-la: “Eu tinha 28 búfalos. Só quatro sobreviveram”.

AS VÍTIMAS DO NARGIS

78 mil birmaneses estão dados como mortos e 56 mil estão desaparecidos, segundo a ONU

Artigo publicado no Expresso, a 24 de maio de 2008

 

E se Espanha acabasse?

A desagregação do país vizinho seria um péssimo cenário para Portugal

Podia ter sido uma entrevista discreta. Mas diante do microfone da agência Lusa, Josep-Lluís Carod Rovira, o número dois do Governo da Catalunha, não rejeitou a ocasião para pôr o dedo na ferida: “Espanha ainda não assumiu a independência de Portugal”, disse o líder da Esquerda Republicana da Catalunha. “O que menos interessa a Portugal é uma Espanha unitária”.

Perante a polémica, o Expresso confrontou três personalidades portuguesas com um cenário hipotético: se, após sucessivas independências das suas regiões, a Espanha desaparecesse, tal seria benéfico para Portugal?

“Seria péssimo”, diz João Rosa Lã, que foi embaixador em Madrid entre 2002 e 2004. “O facto de nos inserirmos em espaços cada vez mais amplos, como o europeu, diminui a conflitualidade entre países. A divisão da Espanha em entidades pequenas colocaria Portugal ao mesmo nível e num caldeirão de problemas que não nos diz respeito”.

Acresce que, “em termos económicos, Portugal beneficia em estar ao lado do mercado espanhol, que é cinco vezes maior”, diz. “Hoje negociamos com Madrid de igual para igual. Se tivermos de negociar com Vigo, Mérida ou Sevilha será mais complicado. Estes pequenos imperialismos tentarão estender os tentáculos a Portugal”, conclui.

Também para José Medeiros Ferreira, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, “se esse cenário se verificar num quadro de consenso entre as partes, quanto às alterações ao modo de administração dos territórios, é possível que Portugal também venha a ser afectado”. No entanto, “é pouco provável que tal aconteça na nossa geração. Temos de estar atentos a essa evolução, mas havendo soluções separadas para a Catalunha ou País Basco, não sei se depois haverá muitas mais soluções”, diz.

Há ainda que tirar lições da História: “A desagregação da Espanha é o pior cenário para Portugal, mesmo se se fizesse de forma pacífica e democrática”, diz Carlos Gaspar, membro do Instituto Português de Relações Internacionais. “Na Península Ibérica, Portugal seria um entre vários pequenos Estados, enquanto que, na fórmula estabilizada desde o século XV e confirmada após o interregno da união pessoal, Portugal é o outro Estado peninsular. A dualidade peninsular é um traço fundamental da posição de Portugal na Europa e na comunidade transatlântica”.

Em qualquer circunstância, conclui Medeiros Ferreira, “um cenário destes não depende de Portugal. E o que não depende nunca se sabe se convém”.

Artigo publicado no Expresso, a 24 de maio de 2008

A tempestade perfeita

O quadro de 100 mil mortos não aflige a ditadura, que taxa a ajuda internacional e vende casas a refugiados

Imagem de satélite do ciclone ‘Nargis’, a 1 de maio de 2008 NASA / WIKIMEDIA COMMONS

Oito meses após a Revolução de Açafrão, os monges budistas birmaneses voltaram a sair dos mosteiros — desta vez não para contestar o regime militar, mas antes para limpar as árvores das ruas e distribuir comida pelos sobreviventes da tragédia provocada pelo ciclone ‘Nargis’. “Onde estão os militares quando mais precisamos deles?”, interrogava-se uma dona de casa birmanesa. “Demoraram um dia para se abaterem sobre os monges mas quatro dias após o ciclone ainda ninguém os viu”, disse.

A coberto do anonimato, muitos birmaneses testemunham a forma negligente como a Junta Militar tem respondido à maior catástrofe de sempre no país. “Somos sobreviventes. Mas se quisermos um telhado novo temos de pagar às autoridades”, disse uma habitante de Rangum. “Até nos sentimos com sorte, porque depois vemos pessoas próximas das autoridades comprar esses materiais e venderem-nos a preços inflacionados”.

Em entrevista ao Expresso, um porta-voz do governo birmanês no exílio denunciou: “Os militares estão a exigir um imposto de 10% sobre a ajuda que entra na Birmânia”, acusou Bo Hla Tint. “Não posso confirmar essa informação, mas não me surpreenderia”, revelou ao Expresso Fernando Nobre, presidente da Assistência Médica Internacional (AMI). “Já houve países que cobraram a aterragem de aviões humanitários, após eles próprios terem lançado apelos de ajuda. Aconteceu-me no Zaire, em 1994, e em países de língua portuguesa também”. Contactados, Programa Alimentar Mundial (PAM) e Médicos Sem Fronteiras negaram ter pago qualquer taxa para entrar no país.

A caminho dos 100 mil mortos

Oficialmente, morreram 22 mil pessoas e 41mil estão desaparecidas; estimativas independentes admitem que os mortos poderão superar os 100 mil. Aye Kyu, um deputado da região de Laputta — onde, segundo o Comité Internacional da Cruz Vermelha, 92% das casas foram destruídas — descreveu ao Expresso o caos gerado pelo ‘Nargis’: “Não havia casas com telhados intactos e algumas tinham colapsado. Havia cobras na água das inundações e ondas gigantescas tão altas quanto as casas. As pessoas tinham de subir aos postes quando as ondas vinham e eram levadas pelas águas quando ficavam sem força para trepar a postes ou árvores. Muitas aldeias desapareceram totalmente. Alguns cadáveres flutuavam”.

Nos primeiros dias, a assistência às vítimas foi lenta. “Há obstáculos naturais que dificultam o acesso a muitos locais seriamente afectados. Os barcos que costumamos usar na região do delta foram destruídos”, relatou ao Expresso Marcus Pryor, porta-voz do PAM. “Também temos dificuldades para obter vistos. Temos pessoal em Banguecoque (Tailândia), à espera de entrar. É muito frustrante”. Ontem, o Governo birmanês fechou as portas à ajuda internacional, alegando que o país não está preparado para a receber.

As organizações humanitárias fazem fila para entrar. Uma equipa da AMI parte este fim-de-semana para a Tailândia para lutar por vistos junto da embaixada birmanesa. “A obtenção de vistos pode demorar de três dias a três semanas”, diz Fernando Nobre.

“As autoridades de Myanmar estão mais interessadas no apoio (sobretudo financeiro) de países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), nomeadamente da China, que não levantarão muitas questões, ao contrário das instituições humanitárias da sociedade civil que são vistas como potenciais críticos da situação local”, continua o presidente da AMI.

Uma semana após rajadas de vento superiores a 200km/h terem transformado regiões do delta do rio Irrawaddy em zonas de guerra, a preocupação prende-se agora com a prevenção de doenças. “A Birmânia tem uma situação endémica de febre tifóide e padece de dengue e de malária”, diz Fernando Nobre. “Dentro de uma semana muitos desaparecidos serão considerados mortos. O problema é cuidar dos vivos. As doenças hídricas poderão vitimar muita gente”.

Serviço especial da agência de notícias birmanesa Mizzima

ALDEIA DE BAMBU

Milagre ou boa arquitectura?
Enquanto o ciclone ‘Nargis’ passava, na sua máxima força, sobre Hlaing Tha Yar, uma aldeia no sudoeste da Birmânia, os habitantes rezavam para que as suas leves cabanas de bambu não fossem pelos ares. Passada a tempestade, a maioria das construções permanecia firme e intacta. Apenas um em cada dez telhados — feitos de folhas — foram arrancados. Mas “ninguém morreu. Tivemos muita sorte”, desabafou um estudante de 18 anos. Em Hlaing Tha Yar moram cerca de 10 mil pessoas.

CRISE ALIMENTAR

Ciclone devasta zona de arrozais
O coração da produção de arroz da Birmânia, em tempos o primeiro produtor mundial, foi severamente afectado pelo ‘Nargis’. Segundo a ONU, os cinco estados mais atingidos lavram 65% da produção total. Até agora, a Birmânia era auto-suficiente em matéria de arroz, o que lhe permitiu controlar o preço do cereal que, recentemente, triplicou no mercado externo. Os 30 milhões de toneladas que produz são quase na totalidade para consumo interno. O ciclone trouxe o receio de escassez.

EXECUÇÕES DEPOIS DO CICLONE

Governada por militares desde 1962, a Birmânia está isolada do mundo. As sequelas do ciclone ‘Nargis’ confirmaram-no

Às primeiras horas do caos que se seguiu à passagem do ciclone ‘Nargis’, a famosa prisão de Insein — que alberga os prisioneiros políticos e é considerada o local mais sinistro da Birmânia — foi palco de uma chacina: 36 prisioneiros foram executados durante um motim espoletado por um incêndio.

Tido como um dos regimes mais paranóicos e repressivos à face da Terra, o Governo liderado, desde 1992, pelo general Than Shwe mostrou, assim, não abdicar da sua política securitária mesmo quando o país está envolto na maior das tragédias. “Este regime militar é estúpido. Só se preocupa em perpetuar-se no poder. É xenófobo e não quer que a comunidade internacional veja esta tragédia”, denunciou, em entrevista ao Expresso, Bo Hla Tint, porta-voz do Governo birmanês no exílio, sediado nos Estados Unidos.

Desde 1962, a Birmânia — uma antiga colónia britânica independente desde 1948 e baptizada de Myanmar em 1989 — tem sido governada, ininterruptamente, pelos militares. Em 2005, o regime deixou Rangum e mudou-se de armas e bagagens para uma nova capital. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a manutenção desse complexo ministerial custa 2% do PIB do país.

Instalado em Naypyidaw, o regime distanciou-se ainda mais do povo e tornou-se mais autista, impedindo jornalistas estrangeiros de entrarem no país e mantendo um controlo apertado sobre as redes de Internet e de telemóvel.

Assim que a catástrofe provocada pelo ciclone ‘Nargis’ se tornou evidente, o Governo emitiu um comunicado dizendo que o referendo constitucional previsto para hoje iria manter-se, sendo apenas adiado, para o próximo dia 24, nos 47 municípios mais afectados. Ao preocupar-se mais com a agenda política do que com as consequências do ciclone, o regime revelou incapacidade e umgrande desfasamento em relação à realidade.

Membro da Liga Nacional para a Democracia — o partido liderado pela Prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, que se encontra em prisão domiciliária —, Bo Hla Tint foi um dos líderes das históricas manifestações pró-democracia de 1988 — brutalmente reprimidas pelas autoridades. Questionado sobre se não sente que a Birmânia é um país esquecido pela comunidade internacional, ele responde: “O problema da Birmânia não é o desconhecimento internacional em relação à magnitude da questão ou à intransigência e opressão do regime militar. O problema-chave prende-se com interesses estratégicos. Ninguém quer embaraçar a Índia e a China”.

Artigo publicado no Expresso Online, a 4 de agosto de 2018

Jogos políticos

Em 112 anos de história, nunca os Jogos se realizaram à margem da política. Sobreviveram a dois conflitos mundiais, a décadas de boicotes colectivos, a manifestações anti-racistas e a actos terroristas

PIXY

A escassos dias do início dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, Diogo Freitas do Amaral, então presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, socorreu-se de uma tradição da Antiga Grécia para apelar às tréguas olímpicas” (“ekecheria”). “Todos os conflitos paravam durante o período de tréguas, que começava sete dias antes da abertura dos Jogos e terminava no sétimo dia a seguir ao encerramento, de modo a que os atletas, artistas, as suas famílias e os peregrinos pudessem viajar em segurança para as Olimpíadas e depois regressar aos seus países”, afirmou durante uma intervenção em Nova Iorque.

Realizada exactamente 100 anos após o nascimento da Era Moderna da competição em Atenas, esta quarta edição dos Jogos em solo norte-americano haveria de ficar marcada pelo terrorismo. Medidas de segurança antes nunca vistas nos recintos dos Jogos não obstaram a que uma bomba explodisse no Parque Olímpico do Centenário, durante um concerto rock, e provocasse dois mortos e 111 feridos. Vinte e quatro anos depois, o “fantasma de Munique” tomava de assalto a cidade da Coca-Cola.

Ao longo do século XX, duas guerras mundiais obrigaram ao cancelamento dos Jogos, em 1916, 1940 e 1944. Mas a existência de quezílias políticas no palco da competição é quase tão antiga quanto o evento em si. Numa das primeiras edições, em Londres-1908, o verniz estalou quando a delegação norte-americana se apercebeu de que, entre as bandeiras que decoravam o estádio olímpico para a cerimónia de abertura, não figurava a “Stars and Stripes”.

Eis senão quando, durante a parada dos atletas, o desportista encarregue de transportar a bandeira norte-americana se recusou a baixá-la diante da tribuna do Rei Eduardo VIII. “Esta bandeira não se inclinará nunca diante de um Rei à face da Terra”, afirmou então o discóbolo Martin Sheridan.

Com o tempo, as tomadas de posição política ganhariam uma expressão mais colectiva, levada ao extremo durante a Guerra Fria, altura em que os Jogos se transformaram num confronto ideológico entre dois blocos e as prestações dos atletas eram encaradas como manifestações de superioridade de um modelo de vida sobre o outro.

Um dos episódios mais tensos durante a Guerra Fria foi em Munique-1972, quando a URSS venceu os EUA por um ponto, na final de “basket”

Helsínquia-1952 marcou a entrada da União Soviética no convívio olímpico, ainda que à maneira soviética… Por não quererem partilhar a aldeia olímpica com os “atletas capitalistas”, os soviéticos ficaram numa residência estudantil. Nestes Jogos, os soviéticos revelaram-se concorrentes à altura dos norte-americanos, pois somente no último dia de competições os EUA garantiram a liderança no quadro final de medalhas. Em boa verdade, o domínio norte-americano não aguentaria mais uma edição dos Jogos: em Melbourne-1956, a URSS destronaria os EUA, conquistando 98 medalhas, contra 74.

Desde então, não mais esta rivalidade bipolar se ausentou dos Jogos, com um dos episódios mais tensos a acontecer em Munique-1972, durante a final de basquetebol. Desde que a modalidade fora introduzida no programa olímpico que os EUA não tinham rival: em oito Olimpíadas, não tinham perdido um único jogo. Em Munique, com um cesto marcado em cima do apito final, a URSS venceu por 51-50. Os EUA não compareceram na cerimónia de entrega de medalhas.

A década de 80 haveria de ditar um pingue-pongue político — sob a forma de boicotes —, entre as duas superpotências e respectivas áreas de influência: os EUA faltaram a Moscovo, a URSS não compareceu em Los Angeles. A Guerra Fria apropriava-se, assim, de uma dinâmica de boicotes colectivos que tinha começado em Montreal-1976. Então, 23 países, sobretudo africanos, retiraram-se em protesto contra a participação da Nova Zelândia. Uma equipa de rugby neo-zelandesa efectuara uma digressão à África do Sul, a pátria do “apartheid”.

A acalmia só chegaria com Seul-1988, quando, pela primeira vez desde Montreal, não se registou qualquer boicote organizado, mas apenas de um pequeno grupo de países, entre os quais Cuba, Coreia do Norte e, pela quarta vez consecutiva — um recorde olímpico —, a Albânia. EUA e URSS voltaram a competir lado a lado e, no medalheiro final, como que contrariando o que estava na iminência de acontecer — a queda do Muro de Berlim e a desintegração da URSS —, os soviéticos assumiram-se como o maior colosso desportivo do mundo: ganharam 132 medalhas, contra 102 da antiga República Democrática Alemã e 94 dos EUA.

Depois da bonança de Seul, Barcelona-1992 acolheu uma espécie de Jogos da concórdia, com a integração de Cuba e da Coreia do Norte, 12 anos após a última participação, e também da África do Sul, afastada havia 32 anos. Não há um único boicote: 169 países participaram sem exibir incompatibilidades que colocassem os Jogos em causa.

Chegados a Pequim, paira no ar a ameaça de um boicote motivado pela questão do Tibete. Na contagem decrescente para os XXIX Jogos, o espírito olímpico sofreu já um revés histórico quando, à passagem por Londres, a tocha foi apagada por manifestantes pró-Tibete. Trata-se de vicissitudes próprias de um evento que, apesar do lema “O importante não é vencer, mas participar”, é mais político do que parece: nos Jogos participam mais países do que os que têm assento na ONU e entidades como a Formosa ou a Palestina competem em iguais circunstâncias com os demais.

BERLIM-1936
O negro que humilhou o Führer
Em nome da superioridade da raça ariana e da demonstração ao mundo da Alemanha enquanto potência em ascensão, Adolf Hitler ordenara o investimento de milhões em infra-estruturas de qualidade e a limpeza de todo e qualquer vestígio de propaganda anti-judaica das ruas, para que os Jogos de Berlim fossem verdadeiramente inesquecíveis. Mas um velocista negro norte-americano deu-lhe um golpe no sonho. Ao conquistar quatro medalhas de ouro (100 m, 200 m, salto em comprimento e estafeta 4×100 m), Jesse Owens — que um ano antes tinha batido cinco recordes mundiais num único dia — deitou por terra a teoria nazi da superioridade ariana. Vergado à humilhação. o Führer abandonou a tribuna e delegou a tarefa da condecoração do atleta. Já o público alemão ovacionou Jesse Owens estrondosamente.

MELBOURNE-1956
Confrontos subaquáticos
Pela primeira vez realizados no hemisfério Sul, os Jogos australianos sofreram o desgaste de dois conflitos acabados de deflagrar: por um lado, a ocupação britânica e francesa do Canal do Suez, que originou uma debandada árabe dos Jogos. Por outro, a invasão soviética da Hungria, que ocasionou um episódio memorável, em dia de semifinais de pólo aquático, uma delas disputada entre a URSS e a Hungria. Dentro da água, e sem que das bancadas fosse perceptível, os atletas iam trocando cotoveladas, pontapés e joelhadas. A dada altura, tudo fica claro quando o atleta húngaro Ervin Zador sai da piscina sangrando abundantemente do rosto. Tradicionalmente superior, a Hungria venceu a partida, sem surpresa, por 4-0. Mas cerca de 40% da delegação húngara recusou regressar ao seu país, ocupado, e desertou.

CIDADE DO MÉXICO-1968
Protestos anti-racistas no pódio
Organizados num contexto de grande agitação política, os Jogos motivaram manifestações de protesto em virtude dos seus elevados custos. Na Praça dos Três Poderes, os estudantes protestavam contra a marginalização da cidade universitária, por falta de verbas. A repressão policial fez-se sentir e provocou 80 mortos — no que ficaria conhecido como a Matança de Tlatelolco. Mas a imagem que, nesses Jogos, entraria para a história seria captada durante a cerimónia de consagração dos 200 metros masculinos: os velocistas negros Tommie Smith e John Carlos sobem descalços para o pódio e, assim que soa o hino dos Estados Unidos, baixam a cabeça e levantam o punho calçado com uma luva negra — a saudação “Black Power (Poder Negro), em protesto contra a segregação racial. Foram, de seguida, expulsos da equipa.

MUNIQUE-1972
Chacina no dormitório israelita
Os alemães eram os grandes interessados em apagar as más impressões deixadas por Berlim-1936, mas não conseguiram impedir o maior ataque terrorista da história dos Jogos. Às 4h30 de 5 de Setembro, um comando da organização Setembro Negro composto por oito palestinianos infiltrou-se na aldeia olímpica e surpreendeu os atletas israelitas de luta greco-romana. A operação de resgate dos reféns, no aeroporto militar de Furstenfeldbruck, acabou num banho de sangue, com 11 israelitas, cinco palestinianos e dois alemães mortos. Só então os Jogos, que decorriam paralelamente às negociações, foram suspensos, para a realização de uma cerimónia fúnebre, no estádio olímpico, participada por 80 mil pessoas. Com sete medalhas de ouro na natação, a estrela dos Jogos viria a ser um judeu norte-americano, Mark Spitz.

MOSCOVO-1980
Boicote à primeira edição socialista
Em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão, em 1979, um grupo de países ocidentais, liderado pelos Estados Unidos, boicota os primeiros Jogos organizados por um país socialista. O Presidente Jimmy Carter queria arrastar com os EUA a maioria do bloco Ocidental, mas viu os seus planos furados: se países como a Alemanha, o Canadá e o Japão faltaram à chamada em Moscovo — mais de 60 países aderiram ao boicote —, já aliados como o Reino Unido e a França marcaram presença no Estádio Lenine. O Governo português alinhou com os EUA, mas o Comité Olímpico luso decidiu participar, com 11 portugueses em seis modalidades. Num gesto de resposta ao boicote, na cerimónia de encerramento os soviéticos içaram ao lado da sua bandeira não a dos EUA (organizador dos Jogos seguintes) mas a de Los Angeles.

LOS ANGELES-1984
Lucros soberbos na edição capitalista
A retaliação do Bloco de Leste ao boicote promovido pelos EUA em Moscovo era mais do que esperada. Alegando não ter garantias de segurança para os seus atletas e denunciando uma comercialização descarada do espírito olímpico — estes Jogos foram os primeiros totalmente financiados pelos privados e a gerar lucros substanciais —, a URSS de Leonid Brejnev pagou na mesma moeda a atitude norte-americana e não compareceu. Mas a dimensão do boicote socialista não foi comparável ao que tinha acontecido quatro anos antes: em Moscovo onde tinham estado 81 países, em Los Angeles estiveram 140. Membro fundador do Pacto de Varsóvia, a Roménia deslocou-se aos EUA e foi o segundo país mais medalhado (53). Outro regresso foi o da China, que não competia há décadas por causa da participação da Formosa.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 10 de maio de 2008. Pode ser consultado aqui

“Perdoa-me, Salman Rushdie”

As críticas ao Islão continuam a ditar sentenças de morte. Ayaan Hirsi Ali está ameaçada desde que renegou a religião em que foi educada

Dezanove anos após o escritor Salman Rushdie se ter tornado o rosto universal dos perseguidos pelo radicalismo islâmico, casos subsistem em que a liberdade de expressão continua a ditar sentenças de morte. Dois escritores sauditas ousaram desafiar algumas interpretações do Corão e têm a cabeça a prémio. Em artigos publicados no jornal ‘Al-Riyadh’, Yousef al-Khail e Abdullah Al-Otaibi defenderam, designadamente, que cristãos e judeus não devem ser considerados infiéis pelos muçulmanos.

Há cerca de um mês, o clérigo radical Abdurrahman Al-Baraak emitiu uma “fatwa” apelando à morte dos autores dos “artigos heréticos”, colocando as suas vidas à mercê de um qualquer fanático — uma realidade bem familiar a Ayaan Hirsi Ali, a argumentista do filme ‘Submissão’, do realizador holandês Theo van Gogh.

Quatro anos após a exibição do filme, “estão a ser questionados alguns versículos do Corão que dizem que as mulheres desobedientes devem ser castigadas, que devem andar veladas, que o homem pode dispor da sua mulher sempre e quando lhe apetecer e que a mulher e o homem que cometerem adultério devem ser vergastados 100 vezes”, afirmou Ayaan Hirsi Ali, em entrevista ao Expresso. “Estes são os versos que eu seleccionei e que foram escritos no corpo da mulher (que surge no filme). Agora pergunta-se: é nisto que os muçulmanos acreditam? É desta forma que querem praticar a sua religião?”.

O realizador seria assassinado às mãos de um jovem holandês de origem marroquina que lhe cravou no peito uma carta dirigida a Ayaan — ela seria a próxima. “A morte de Theo van Gogh levanta uma questão: criticar o Islão conduz à morte daqueles que o criticam”, acusa.

Aos 38 anos, esta somali naturalizada holandesa — que foi deputada entre 2003 e 2006 — encontrou nos Estados Unidos a tranquilidade que lhe fugiu na Europa. “Pago a um segurança para me proteger, mas nos EUA sinto-me anónima. É um país enorme. Na Holanda, a minha vida tornou-se impossível, todos conheciam a minha cara e, por causa do nível de intensidade da ameaça, ninguém queria viver perto de mim…”, recorda.

O efeito 11 de Setembro

As ameaças contra Ayaan começaram ainda antes de ‘Submissão’. Em 2002, ela afirmou que “o Islão era mau para as mulheres” e renegou publicamente aquela que fora a sua religião desde o berço. Ainda hoje, recorda com clareza o dia em que o “ayatollah” Khomeini lançou uma “fatwa” — ainda em vigor — condenando à morte o autor de ‘Os Versículos Satânicos’, o indo-britânico Salman Rushdie: “Tinha 19 anos, vivia em Nairobi (Quénia) e usava voluntariamente o véu. Quando ouvi a notícia, encolhi os ombros e pensei: ‘É natural, ele fez por merecê-las. Nunca devia ter insultado o Profeta’. Hoje, peço-lhe desculpa”.

O 11 de Setembro de 2001 levou-a a reflectir como nunca antes… “Olhei-me ao espelho e pensei: a quem queres enganar? O problema não é as pessoas, mas a fé em si. As pessoas actuam em nome da fé”, recorda. “Fomos ensinados não só a ser bons muçulmanos, mas a não criticar o Islão”.

E haverá alguma religião à face da terra que aceite a crítica? “Há uma diferença entre o Islão e religiões como o cristianismo, judaísmo, budismo e hinduísmo: hoje, no Ocidente, apenas o Islão responde com violência”, acusa Ayaan Hirsi Ali.

Transformada numa feroz porta-voz dos direitos das muçulmanas, tem em preparação um novo livro sobre o tema, determinada em não paralisar perante a “fatwa” capital que a persegue. Ayaan diz nunca ter sofrido qualquer ataque físico, mas nem todos os críticos do Islão podem dizer o mesmo. Em 1992, o escritor egípcio Farag Foda foi assassinado por dois activistas do grupo Al-Gamaa al-Islamiyya, inflamados pelas suas sátiras antifundamentalistas.

Desde o caso Rushdie (1989) que as “fatwas” são vistas no Ocidente como sinónimo de condenação à morte — erradamente. Em 2005, a estrela feminina do ténis indiano, Sania Mirza, foi advertida por uma “fatwa” para que deixasse de jogar com saias curtas e ‘tops’ insinuantes. No ano passado, o astronauta malaio Sheikh Muszaphar Shukor pediu orientações ao Conselho Nacional da Fatwa do seu país sobre como cumprir os preceitos islâmicos no espaço.

O QUE É UMA “FATWA?

É um termo técnico usado na lei islâmica para indicar um decreto interpretativo ou orientativo. Exemplo curioso aconteceu em 1990 quando um “mufti” de Jerusalém emitiu uma “fatwa” confirmando que a cristã Hanan Ashrawi era a pessoa “certa” para ser porta-voz dos palestinianos na Conferência de Madrid. Uma outra surpreendente data de 2005 quando, na véspera do primeiro aniversário dos atentados de 11 de Março, em Madrid, a Comissão Islâmica de Espanha condenou “os actos terroristas de Osama Bin Laden e da sua organização Al-Qaeda” e apelou à denúncia do seu paradeiro. Recentemente, pronunciando-se sobre bebidas energéticas, um clérigo egípcio lançou a polémica ao defender que o Islão permite um nível de 0,5% de álcool. Original é a iniciativa do “mufti” Ebrahim Desai que, a partir de uma “madrassa” sul-africana, esclarece, num “site”, as dúvidas que lhe chegam por “e-mail”: “Como posso conhecer uma rapariga para casar?” “O Islão permite o uso de unhas postiças?”

A MULHER NO CORÃO

“E elas têm direitos sobre eles, como eles os têm sobre elas, condignamente; mas os maridos conservam um grau (de primazia) sobre elas” (2:228)

“E se receais que não podereis tratar com justiça os órfãos casai com as mulheres que vos parecerem boas para vós; — duas, três ou quatro. E se receais que não podereis proceder com equidade com todas casai, então, com uma somente…” (4:3)

‘‘Ó Profeta! Dize às tuas esposas e às tuas filhas e às mulheres dos crentes que se envolvam e fechem nos seus mantos (quando saírem). Isto será melhor para que possam ser reconhecidas e para que não sejam perturbadas” (33:59)

“O adúltero e a adúltera: castigai-os com severidade e cada um dos dois com um cento de varadas. E não deixeis que a piedade, por eles, vos impeça de obedecer a Alá, se credes em Alá e no Último Dia. E deixai que um grupo de crentes testemunhe o castigo” (24:2)

(Imagem: “Tolerar a intolerância é cobardia”, lê-se na citação atribuída a Ayaan Hirsi Ali)

Artigo publicado no Expresso, a 3 de maio de 2008