99 personagens de 99 países contam ao mundo as 99 virtudes do Islão

Será um pássaro? Será um avião? É Mumita, a Destruidora! Tal como na ‘vida real’ o Super-Homem é o tímido Clark Kent, na saga ‘Os 99’ Mumita é a heroína em que se transforma a portuguesa Catarina Barbosa. Esta maria-rapaz de 17 anos nunca vira as costas a uma boa luta e ‘vive’ na primeira banda desenhada baseada nos arquétipos islâmicos.
“Mumita é uma personagem muito importante. Recorro a ela para quebrar estereótipos”, diz o criador dos desenhos, Naif al-Mutawa, em entrevista ao “Expresso”. “Quando pensamos nos 99 atributos de Alá, há sempre uma componente ‘jing jang’: há o Bondoso, mas também o Vingador… Queremos que os rapazes sejam os matulões que se envolvem nas lutas e que as raparigas fiquem em casa e sejam bondosas e delicadas… Eu quero misturar. Quero ter raparigas que também partam ossos”, acrescentou.
Nas bancas desde Maio de 2006, no Médio Oriente, Norte de África, EUA, Indonésia, Malásia, entre outros, a saga conta as aventuras de 99 super-heróis, originários de 99 países e dotados dos 99 atributos de Deus. “Nunca referimos a religião. As personagens não rezam, não recitam o Alcorão, não mencionam o Profeta ou Deus. São muçulmanas porque as histórias se baseiam nos arquétipos islâmicos”, explica Naif.
99 é um número que não deixa os muçulmanos indiferentes. No Alcorão, o profeta Maomé dirige-se a Alá através de 99 epítetos: o Clemente, o Misericordioso, o Poderoso… “Às vezes, perguntam-me como é possível recorrer aos meios de Deus e fazer uma banda desenhada? Deus é a forma absoluta destas características, mas nas minhas histórias nenhuma delas é absoluta, precisam umas das outras para resolverem problemas. São muito humanas e não à semelhança de Deus”, esclarece Naif.
O autor diz que sabe o que faz, mas abordar a religião em banda desenhada é uma tarefa sensível. “Por vezes, aparecem comentários na Internet sobre se o meu trabalho é ou não islâmico”, diz. Houve quem o acusasse de propagandear o Cristianismo ao fazer deslocar os heróis em equipas de três (numa pretensa analogia à Santíssima Trindade). Naif responde que se formasse duplas (homem-mulher) seria muito mais ofensivo… Por sua iniciativa, a indumentária de algumas personagens já foi adaptada ao Islão: “Nos primeiros números, as roupas da Mumita eram demasiado justas. Não gostei”.

Nascido em 1971, no Kuwait, e doutorado em Psicologia Clínica, Naif al-Mutawa — com experiência no apoio a vítimas de tortura do regime de Saddam Hussein — conhece os efeitos terapêuticos que projectos como ‘Os 99’ podem ter em quotidianos duros, onde os verdadeiros heróis são Osama bin Laden ou os bombistas suicidas… Há tempos, distribuiu dezenas de milhares de revistas em campos de refugiados na Palestina, Líbano e Iraque. “Durante minutos, os livros desviaram a atenção dos refugiados da situação em que vivem”, diz.
Ao criar ‘Os 99’, Naif al-Mutawa teve dois objectivos. Um primeiro, dirigido à Ummah, a comunidade dos crentes muçulmanos: “Quis tocar num ponto sensível e transmitir a ideia de que não há um único Islão. O Islão é tão multicultural e variado quanto as pessoas à face da Terra. Há diferentes formas de o praticar, em diferentes países. Na minha opinião, é a abordagem única que causa problemas, porque passamos a ser responsabilizados pelas acções de qualquer pessoa”, diz.
O autor quis igualmente mandar uma mensagem para fora do mundo árabo-islâmico: “Nos EUA, há um livro famoso, que faz parte do currículo escolar, chamado ‘The Catcher in the Rye’, de J.D. Salinger. Duas pessoas cometeram crimes em nome dele. Mark David Chapman, que matou John Lennon em 1980, disse à polícia que retirou ideias do livro para cometer o crime. John Hinckley, que um ano depois tentou matar Ronald Reagan, referiu-se ao livro no interrogatório. A culpa é de J.D. Salinger que escreveu o livro? Ou destes lunáticos que leram coisas que os outros milhões de leitores não leram?”
Para o autor de ‘Os 99’, o mesmo raciocínio aplica-se ao Livro Sagrado dos muçulmanos: “Se há pessoas que retiram do Alcorão mensagens horríveis é porque têm mentes horríveis”.
⬅ RUGHAL, O MAU DA FITA
Quer apoderar-se das 99 pedras preciosas que estão na origem dos 99 poderes para dominar todo o mundo
SOORA, A ORGANIZADORA
(em cima, à esquerda)
Na ‘vida real’ é a ganesa Jamila Adams. Reconhece padrões de comportamento e gera ordem a partir do caos
JABBAR, O PODEROSO (em cima, ao centro)
Chama-se Nawaf al-Bilali e é saudita. Por ter fragmentos de uma das 99 pedras no corpo, é muito forte e duro
DARR, O QUE ATORMENTA
(em cima, à direita)
Tetraplégico, o norte-americano John Wheeler consegue provocar ou impedir a dor através da manipulação nervosa
⬅ WIDAD, A QUE AMA
Natural das Filipinas, Hope Mendoza espalha amor à volta das pessoas e tenta que elas se sintam vazias de ódio
Artigo publicado no “Expresso”, a 28 de junho de 2008











