O início de uma nova era

Moscovo quer recuperar a influência perdida no seu
‘estrangeiro próximo’. As dinâmicas separatistas agravam-se

ILUSTRAÇÃO LEFTEAST

Qualquer que seja o desfecho para esta crise no Cáucaso, outras se seguirão. “Abriu-se um ciclo de instabilidade e vamos ter de lidar ao longo da próxima década com uma sucessão de outras crises. Criou-se uma dinâmica de confronto que substituiu a de cooperação que se tinha desenvolvido com a Rússia depois do fim da Guerra Fria”, disse ao Expresso o ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado (ler entrevista).

Desde que o Presidente russo, Dmitri Medvedev, assinou, na terça-feira, os decretos que reconhecem as independências das repúblicas georgianas da Ossétia do Sul e da Abkházia que o velho continente voltou a ser cenário de fronteiras tensas e vigiadas. Em nome da presidência francesa da União Europeia (UE), Bernard Kouchner adiantou, na quinta-feira, que “estão a ser ponderadas sanções” contra a Rússia.

Na segunda-feira reunirá, em Bruxelas, um Conselho Europeu extraordinário com as relações UE-Rússia como ponto único da agenda. Medvedev já marcou posição: “Se a Europa quiser uma degradação das relações, vai tê-la naturalmente. Mas se quiser salvaguardar as relações estratégicas, o que é totalmente do interesse da Rússia e da Europa, tudo vai correr bem”.

Na quinta-feira, o primeiro-ministro Vladimir Putin ignorou a postura de Estado e disparou contra os Estados Unidos, acusando-os de terem provocado o conflito na Geórgia para “beneficiar um candidato” à Casa Branca. A teoria flui nos corredores do Kremlin, atento, nos últimos meses, às tiradas hostis à Rússia do republicano John McCain. Chegou a apelar à sua expulsão do G8.

O mal-estar russo

Paralelamente à teoria da conspiração russa, várias outras razões confluem para este ‘despertar’ da retaliação russa. Desde logo, o acordo de instalação de um sistema antimíssil norte-americano
na Polónia e na República Checa, que constitui um elemento dissuasor de qualquer tentativa militar russa no seu “estrangeiro próximo” a antiga área de influência da ex-União Soviética.

O Presidente russo prometeu uma resposta militar à ‘ousadia’ norte-americana, o que parece estar já em curso. Na quinta-feira, o Ministério russo da Defesa confirmou o êxito dos testes de um míssil balístico intercontinental (RS 12 Topol) “capaz de superar as tecnologias de defesa” antimíssil inimigas. EUA e Rússia estão em marcação cerrada e atentos às movimentações recíprocas. Esta semana ainda, o Estado-Maior-General das Forças Armadas russas questionou o recente aumento da actividade da NATO no Mar Negro, com dez navios de guerra ali estacionados e outros oito a caminho.

A penetração da NATO no território da antiga URSS, com a adesão dos três países bálticos, em 2004, levou a Rússia a bater no fundo. “A estratégia da Rússia tem dois objectivos principais: impedir a entrada da Geórgia e da Ucrânia na Aliança Atlântica e inverter a tendência de liberalização nos dois países, aberta com as ‘revoluções coloridas’”, disse ao Expresso Carlos Gaspar, director do Instituto Português de Relações Internacionais.

Desde 1991, a Rússia tem usado as tensões separatistas para exercer pressão ao largo das suas fronteiras. Tradicional aliada da Sérvia, a Rússia nunca poderia ficar indiferente à autoproclamada independência do Kosovo, festejada nas ruas de Pristina com muitas bandeiras americanas… “Ao reconhecermos a independência da Ossétia do Sul e da Abkházia fizemos o que outros fizeram com o Kosovo”, disse Medvedev.

A dinâmica secessionista nos países limítrofes à Rússia está lançada. Ao Expresso, o general Loureiro dos Santos defende que os russos estão apostados em “intimidar” — mais por via diplomática que militar, embora esta última hipótese siga em aberto. De resto, à Rússia não faltam trunfos para ‘bater o pé’ na cena internacional: é essencial à aprovação de sanções ao Irão no Conselho de Segurança da ONU; os EUA dependem do corredor russo para abastecimento das suas tropas no Afeganistão; e dispõe dos recursos energéticos de que o Ocidente depende.

Artigo escrito com Cristina Peres.

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de agosto de 2008

ENTREVISTA INTEGRAL A CARLOS GASPAR

Director do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI)

Não estamos perante uma nova Guerra Fria, mas a crise georgiana é um bom momento para os europeus tirarem conclusões sobre a evolução da Rússia

Qual é a estratégia da Rússia?
A estratégia da Rússia tem dois objectivos principais — impedir a entrada da Geórgia e da Ucrânia na Aliança Atlântica e inverter a tendência de liberalização nesses dois países, aberta pelas “revoluções coloridas”.

A breve prazo, a Rússia poderá incentivar outras independências ao longo da sua fronteira?
Desde 1991 que as tensões separatistas são usadas pela Rússia para manter uma pressão no seu “estrangeiro próximo”, designadamente na marca europeia (Transnístria) e na marca caucasiana (Abcásia, Ossetia do Sul).

Como poderão reagir os Estados Unidos e a União Europeia?
As respostas dos Estados Unidos e da União Europeia são diferentes. A administração republicana não mostrou a menor vontade de intervir no conflito e limitou-se a secundar as “démarches” europeias e a apoiar a Geórgia, sem deixar, por isso, de criticar o seu comportamento. A União Europeia quis apresentar-se como mediador, para parar as acções militares, ao mesmo tempo que parece disposta a iniciar conversações sobre o estatuto futuro da Ossétia do Sul e da Abcásia, embora não seja evidente a sua capacidade para moderar a estratégia russa.

Qual a importância do processo de independência do Kosovo neste “despertar” russo?
O precedente do Kosovo é um pretexto. As autoridades russas tinham anunciado que usariam o precedente nos casos da Ossétia do Sul e da Abcásia. Mas as afinidades são aparentes… Não existem resoluções do Conselho de Segurança a condenar as autoridades georgianas por perseguirem as suas minorias; não estavam em curso conversações com as mesmas autoridades para salvaguardar os direitos dos ossetas na Geórgia; nem há uma história recente de repressão georgiana das suas minorias.

Estamos perante uma Nova Guerra Fria?
Não estamos perante uma nova Guerra Fria. Mas a crise georgiana é um bom momento para os europeus tirarem conclusões sobre a evolução da Rússia, depois de ter falhado a sua transição para a democracia. Por um lado, é preciso impedir a repetição do síndroma de Weimar — a ressurgência da Rússia como uma grande potência dominada pelo ressentimento da sua derrota na Guerra Fria e pela decomposição do seu império e determinada a demonstrar o seu poder pelo recurso à força. Por outro lado, é preciso evitar qualquer ambiguidade que possa convencer as autoridades russas que o seu comportamento intimida as democracias ocidentais. A intervenção russa na Geórgia deve ter um preço: os Estados Unidos, a Alemanha e a União Europeia deixaram de poder ter confiança nas autoridades russas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de agosto de 2008. Pode ser consultado aqui

Barcos pacifistas atracam em gaza

Israel não levantou problemas à entrada de 46 pacifistas internacionais na Faixa de Gaza. O bloqueio àquele território palestiniano arrasta-se desde Junho de 2007

Chegada dos barcos à costa da Faixa de Gaza, apinhada de gente para lhe dar as boas-vindas Gaza FREEDOM FLOTILLAS-SHIPS, PASSENGERS & LAWSUITS AGAINST THE ISRAELI GOVERNMENT

Dois barcos transportando 46 activistas pró-palestinianos, que partiram do porto cipriota de Larnaca, na sexta-feira, atracaram na Faixa de Gaza sem quaisquer incidentes. “Eles queriam uma provocação no mar, mas não o obtiveram”, reagiu o porta-voz do ministério israelita dos Negócios Estrangeiros, Aviv Shiron. “Nós conhecemos os passageiros e o que eles transportam com eles. Por isso, não temos qualquer problema em deixá-los passar”.

Com esta iniciativa, o grupo “Libertem Gaza”, composto por nacionais de 14 países, pretendeu chamar a atenção para o sofrimento dos 1,4 milhões de palestinianos da Faixa de Gaza. A bordo do “Liberty” e do “Free Gaza” seguiam 200 aparelhos auditivos destinados às crianças.

Os pacifistas foram recebidos pelo primeiro-ministro Ismail Haniyeh (do Hamas), em clima de festa. “Independentemente do que venha a acontecer, conseguimos o nosso objectivo. Provamos que cidadãos comuns com meios comuns podem mobilizar a defesa dos direitos humanos palestinianos”, afirmou o organizador Paul Larudee.

Em 2005, Israel retirou colonos e tropas da Faixa de Gaza. Mas desde Junho de 2007, na sequência do movimento islâmico Hamas ter tomado o poder pela força, mantém um bloqueio ao território, apenas permitindo a entrada de ajuda humanitária. Israel quer isolar o Hamas e estancar o lançamento de “rockets” contra o seu território.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de agosto de 2008. Pode ser consultado aqui

Al-Qaeda, 20 anos a espalhar medo

Nasceu no Paquistão e disseminou-se pelo mundo. O Expresso faz um ‘dicionário’ da organização terrorista

Osama bin Laden (à esquerda) e Ayman al-Zawahiri, durante uma entrevista ao jornalista paquistanês Hamid Mir, a 8 de novembro de 2001 HAMID MIR / WIKIMEDIA COMMONS

A 11 de Agosto de 1988, uma reunião entre Osama Bin Laden, Ayman al-Zawahiri e Sayyed Imam Al-Sharif (dr. Fadl), em Peshawar (Paquistão), criou a Al-Qaeda (AQ) — “a base”. Bin Laden era o garante de uma riqueza extraordinária; Al-Zawahiri, líder da Jihad Islâmica Egípcia, personificava uma crença inabalável no radicalismo islâmico; e o intelectual egípcio dr. Fadl a base filosófica da “jihad”. Vinte anos depois, a AQ tornou-se a organização terrorista mais temida de sempre. De A a Z, o Expresso caracteriza essa hidra.

Aden Foi nesta cidade portuária do Iémen que a AQ atentou pela primeira vez: a 29 de Dezembro de 1992, um ataque contra o Gold Mihor Hotel matou duas pessoas.

Bin Laden Oriundo de uma família rica, próxima da realeza saudita, o líder da AQ nasceu a 10 de Março de 1957, em Riade.

Constelação AQ Mais do que uma organização altamente centralizada, a AQ consiste numa galáxia de grupos regionais que partilham uma ideologia, objectivos estratégicos, “modus operandi” e um ódio fanático aos EUA, a Israel e aos regimes muçulmanos que traem o verdadeiro Islão. Os atentados em Nova Iorque (2001), Bali (2002), Casablanca (2003) e Londres (2005) atestam a eficácia global da AQ.

Documentário Produzido pela BBC, ‘O Poder dos Pesadelos’ (2004) defende que a ameaça do radicalismo islâmico é um mito perpetrado, designadamente, pelos neoconservadores americanos, por forma a unir o povo após o falhanço das ideologias.

Embaixadas A 7 de Agosto de 1998, ataques simultâneos às representações diplomáticas dos EUA em Nairobi (Quénia) e Dar-es-Salaam (Tanzânia) fizeram 224 mortos. Bill Clinton mandou bombardear os campos de treino da AQ no Afeganistão.

Financiamento Criado em 1984, por Abdullah Azzam e Bin Laden, o “Maktab al-Khidamat” foi uma espécie de precursor da AQ. Este escritório angariava fundos e recrutava “mujahedines” estrangeiros para lutar contra os soviéticos no Afeganistão.

Guerra ao terrorismo Esta expressão engloba as acções legais, políticas ou militares adoptadas pelo Governo dos EUA. Oficialmente, visam a contenção de ameaças terroristas.

Hierarquia Se Bin Laden é o rosto da AQ, Ayman al-Zawahiri é o principal estratega. Desconhece-se o paradeiro de ambos.

Internet O ciberespaço é um elemento-chave no processo de treino, planeamento e logística da AQ. Há quem considere a AQ a primeira rede de guerrilha direccionada para a internet.

“Jihad” Recorrendo à “guerra santa”, a AQ — uma organização sunita de inspiração wahabita (uma interpretação conservadora do Islão) — prossegue o fim da influência estrangeira nos países muçulmanos e a instituição de um califado universal.

“Kamikaze” Por razões teológicas, a AQ sempre se opôs à utilização de mulheres em ataques-suicidas. Quando, no Iraque, Al-Zarqawi acolheu voluntárias suicidas, a AQ nunca comentou.

Lawrence Wright Premiado com um Pulitzer, este especialista no mundo muçulmano escreveu um livro sobre o 11 de Setembro (‘A Torre Ameaçadora’) que resulta de entrevistas a “jihadistas”, espiões, peritos, funcionários, amigos, mulheres e amantes de protagonistas. Revela também as fraquezas da AQ.

Manchester Foi nesta cidade britânica que, em Abril de 2000, a Polícia apreendeu um manual da AQ. Nele havia recomendações sobre como conduzir operações de combate, escapar a uma situação de captura ou comportar-se em cativeiro.

Nedal “Laden” ao contrário foi um vírus criado por um “ciberjihadista” chamado ‘Melhacker’. Quando a invasão do Iraque se tornou iminente, ele infectou milhares de “e-mails” nos EUA.

Operação Cannonball Com início previsto para 2006, esta acção da CIA visava a captura de Bin Laden. A rivalidade entre as agências de informação norte-americanas ditou o fracasso.

Pearl A 1 de Fevereiro de 2002, o norte-americano Daniel Pearl, que tinha sido raptado, foi decapitado em Karachi. O jornalista do ‘Wall Street Journal’ investigava alegados laços entre a AQ e a secreta paquistanesa.

Qatar Acolhe a sede da Al-Jazira, a televisão árabe que, após o 11 de Setembro, ganhou mediatismo ao difundir mensagens de Bin Laden. O braço da AQ para os “media” é, porém, a As-Sahab, uma produtora de conteúdos com a chancela AQ.

Reino Unido Os ataques suicidas contra o sistema de transportes de Londres, a 7 de Julho de 2005, matando 52 pessoas, confirmou a Europa como um alvo da AQ. No ano anterior, a 11 de Março, em Madrid, dez explosões em comboios tinham provocado 191 mortos.

Sudão Este país africano deu guarida a Bin Laden entre 1991 e 1996. Após pressão dos EUA, o saudita foi expulso, rumando, de seguida, ao Afeganistão.

Talibã O regime dos “estudantes de Teologia” providenciou um santuário à AQ. Suspeita-se que Bin Laden esteja escondido nas montanhas junto à fronteira entre Paquistão e Afeganistão.

USS Cole Contrária à presença militar norte-americana em solo muçulmano, a 12 de Outubro de 2000, a AQ realizou uma acção suicida que visou o contratorpedeiro USS Cole, no porto de Aden. Morreram 17 marinheiros.

Vídeos Entre boatos que o dão como morto, de tempos a tempos, Bin Laden — que, crê-se, tem uma deficiência glandular chamada doença de Addison — renova as suas ameaças em vídeos e gravações áudio. Desde o 11 de Setembro, já foram difundidas mais de 20 mensagens.

World Trade Centre O mítico edifício de Nova Iorque foi, por duas vezes, alvo da AQ. A 26 de Fevereiro de 1993, uma bomba matou seis pessoas e feriu mais de 1000. A 11 de Setembro de 2001, dois aviões suicidas embateram nas torres-gémeas de 110 pisos, matando 3000. O ataque terá custado 500 mil dólares.

“X-files” Em 1996, a CIA criou a Unidade Bin Laden para seguir o rasto do terrorista saudita. O grupo de trabalho foi desarticulado em 2005. Bin Laden permanece um dos dez terroristas mais procurados pelo FBI.

Yanbu O ataque de quatro atiradores à Petroquímica Yanbu, na Arábia Saudita, a 1 de Maio de 2004, colocou a indústria petrolífera na mira da AQ. Outros ataques seguir-se-iam, com uma tónica semelhante: matar estrangeiros, mas não muçulmanos.

Zarqawi Até ser morto, em 2006, o jordano Abu Musab al-Zarqawi — líder da Al-Qaeda no Iraque — foi um dos principais instigadores da insurgência islamista. Já a ligação de Saddam Hussein a Bin Laden nunca foi provada.

Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de agosto de 2008 e republicado no “Expresso Online”, a 2 de maio de 2011. Pode ser consultado aqui