Fareed estudava sem luz e ao som das bombas

Há vidas com um antes e um depois daquele momento em que os protagonistas decidiram parar de repetir a palavra aguentar e decidiram conjugar o verbo mudar. A história do iraquiano Fareed Nabeel

Aos 24 anos Fareed estava empenhado em dar uma grande alegria aos pais. Para qualquer clã iraquiano, ter um filho médico ou engenheiro é das maiores fortunas que podem desejar. Nascido em 1979, o mais velho dos três filhos daquela família católica de Bagdade queria dar o exemplo e provar que não precisava mais do que os seis anos curriculares para se formar em Medicina. Teria sido assim se a guerra não rebentasse. Os exames finais coincidiram com a invasão americana, em Abril de 2003. Estudava sem luz e ao som das bombas. A temperatura chegava aos 50 graus. O Iraque estava um caos, recorda Fareed.

Por causa da guerra, qualquer médico recém-licenciado tinha vaga. Fareed foi colocado em Sadr City, um bairro xiita problemático nos arredores de Bagdade. “Às vezes, para não correr riscos de ser atingido por uma bala perdida, ia a rastejar até ao hospital. Um colega meu morreu assim”. Passou a viver ao dia, sem garantias de regressar a casa são e salvo. De manhã, despedia-se da família como se não mais os voltasse a ver. “Sentia-me como se fosse para um campo de batalha. A minha mãe chorava e pedia-me para não ir trabalhar, mas tinha de ser…” Um dia, foi ameaçado. Queriam que deixasse o hospital. Pela primeira vez, sentiu que ser católico era uma adversidade.

Então, tomou conhecimento que em Portugal havia falta de médicos. E predispôs-se à mudança. “Cheguei em Abril de 2006. Era tudo estranho. No Iraque, praticamente, só conhecemos o país através do futebol…” Com a cabeça a prémio no Iraque, inicia um processo de sobrevivência em Portugal. Para exercer Medicina tinha de fazer o exame de equivalência, dali a uns meses e não falava uma palavra de português. “Arrendei um quarto a uma senhora de idade, a Dona Guida. Quando entrei em casa dela pela primeira vez só comunicávamos por gestos. Tirei um curso intensivo e comecei a ouvir rádio e a ver as telenovelas. Quando a Dona Guida se sentava para tomar o café, lia-lhe artigos dos jornais e ela corrigia”.

A história de Fareed cruza-se, então, com a do seu próprio país. Com os pais reformados, o seu irmão do meio, que trabalhava como engenheiro electrotécnico em Bassorá, era o único que lhe podia valer. “Ele chegava a pedir ao patrão para depositar o ordenado dele, integralmente, na minha conta”. Mas no Iraque pós-Saddam quem trabalhasse na reconstrução do país colocava-se na mira dos insurgentes. Um dia, o irmão de Fareed é ameaçado por homens armados. Se não deixasse aquele trabalho pagaria com a vida.

Sem meios de subsistência e com o exame à porta, no Hospital Santa Maria, Fareed venceu a vontade de desistir. Contou a sua história na Fundação Gulbenkian, na Associação dos Médicos Católicos e no Serviço Jesuíta aos Refugiados e conseguiu apoios e um trabalho, a cuidar de um doente com parkinson. Como milhares de iraquianos fugidos à guerra, chegado a Portugal, Fareed podia ter solicitado o estatuto de refugiado. “Não escolhi essa via por uma questão de princípio. Quis fazer tudo com esforço próprio”.

Em Junho de 2007, Fareed obteve a desejada equivalência, na Faculdade de Medicina de Lisboa, com a mesma nota que teve no Iraque, 13. Agora, frequenta o internato geral em Torres Novas. Aos poucos, sente que a vida começa a estabilizar. Gosta de cozido à portuguesa, apaixonou-se por Cascais e não dispensa o cafezinho pela manhã. Ainda não foi a Fátima, como a mãe lhe pediu, mas reza para, um dia, retribuir a generosidade do irmão: “O que eu mais queria é que ele viesse trabalhar para Portugal”.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 13 de setembro de 2008

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