A maldição dos albinos em África

Estigmatizados, os albinos não têm vida fácil. Na Tanzânia, são mortos e amputados para rituais de feitiçaria

“Além da pele, somos apenas todos humanos” ZANNA98 / WIKIMEDIA COMMONS

Em nome da sua própria sobrevivência, os albinos passam a vida a proteger-se do Sol. Nos últimos tempos, em várias regiões da África Austral, muitos albinos começaram também a refugiar-se das próprias comunidades, com medo que o seu tom de pele lhes sentencie a morte.

A Tanzânia, em particular, é hoje um verdadeiro calvário para os albinos. No último ano, foram assassinados pelo menos 26 indivíduos. Num dos últimos casos, um bebé de sete meses foi morto à catanada. Feiticeiros e curandeiros promovem a chacina de albinos para usarem a sua pele, os ossos ou o cabelo — que acreditam ter propriedades mágicas — em poções e amuletos para atrair riqueza.

As pernas são as partes do corpo mais valiosas para os mineiros, que acreditam que elas lhe trarão boa sorte, enquanto fios de cabelo de albino presos a redes de pesca são um talismã para uma boa faina.

Para tentar combater o estigma, o Presidente Jakaya Kikwete nomeou uma albina para trabalhar no Parlamento em campanhas antidiscriminatórias. Paralelamente, ordenou a realização de um censo aos albinos e providenciou escolta a crianças albinas durante o trajecto escolar. Pelo menos 173 pessoas acusadas de participar na morte de albinos foram detidas.

Muitos casais sentem-se amaldiçoados quando têm um filho albino. Há histórias de bebés abandonados junto a rios

Em África, estima-se que uma em cada 4000 pessoas seja albina. O Expresso visitou Veronica Bvumavaranda, uma albina zimbabweana de 36 anos. “No início, foi difícil lidar com esta condição. Na escola, era horrível enfrentar os olhares desconfiados. Com determinação, consegui fazer amigos. Mas não tem sido fácil encontrar o amor…”.

Solteira, Veronica parece conformada com esse infortúnio. Tem a sorte de contar com o apoio da família, o que nem sempre acontece. Muitos casais sentem-se amaldiçoados quando lhes nasce um filho albino. Contam-se histórias de bebés albinos abandonados junto a cursos de água e de crianças negligenciadas em situações de doença. “Se alguém tem uma criança com albinismo pode aproveitar um momento de doença para a deixar morrer”, diz ao Expresso Ian Van Maanen, um holandês radicado há 30 anos na Guiné, onde é cônsul do Reino Unido.

Mitos rurais

Fundos angariados por este holandês tornaram possível o recenseamento dos albinos guineenses. “São 79. Se compararmos com as estatísticas do Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné-Conacri, concluímos que, na Guiné-Bissau, a maioria dos albinos morre cedo, provavelmente ainda em criança. Suspeito que os deixem morrer…”, diz.

Sobretudo nas zonas rurais, os albinos são objecto dos mais variados mitos. Em Angola, onde se estima que correspondam a 1% da população, diz-se que os “quilombos” não são humanos, que vêem à noite e que têm uma má relação com gémeos.

Com trabalho de campo efectuado no Sul de Moçambique, Paulo Granjo, professor no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, disserta sobre as razões de discriminação de gémeos e albinos. “São ambos desafios à identidade: uns pela estranheza de cor, os outros por serem duas pessoas iguais”, explica ao Expresso. “É suposto que os gémeos e os albinos tenham uma origem cósmica comum: foram atingidos por um raio no útero da mãe. Os gémeos partiram-se em dois e os albinos resistiram, mas ficaram queimados, perdendo a cor”, explica o antropólogo. Então, ambos passam a constituir um perigo para a harmonia social. “De acordo com estas crenças, o albino é a pessoa com mais poderes disruptores e a maior ameaça de secar as terra, a fertilidade e a sobrevivência colectiva”, continua Paulo Granjo.

No Zimbabwe, há relatos de mulheres albinas violadas por indivíduos infectados com o vírus da sida que, dessa forma, procuravam ‘limpar’ o corpo desse mal. “Essa crença generalizou-se inicialmente em relação às virgens, em particular na África do Sul”, diz o antropólogo. Neste caso, os seropositivos procuram que o poder atribuído aos albinos lhes seque a doença.

O QUE É O ALBINISMO?

Oriundo do latim — “albus” significa ‘branco’ —, o albinismo é uma desordem congénita caracterizada pela ausência (total ou parcial) de melanina nos olhos, pele e cabelo. Não se transmite através de contacto nem de transfusão sanguínea e manifesta-se em seres humanos, animais e plantas. Estima-se que, em todo o mundo, uma em cada 17 mil pessoas seja albina. Sensíveis ao Sol, os albinos cumprem rigorosos cuidados de protecção corporal, para evitarem contrair cancro da pele. Na sua maioria, têm também problemas de visão. Em Portugal, os albinos são representados pela Associação Nacional de Deficiências Mentais e Raras, onde estão registados apenas dois casos de albinismo. “Não dispomos de dados quanto ao número de pessoas afectadas pela patologia, É uma das batalhas da Raríssimas”, disse ao Expresso a presidente da associação, Paula Brito e Costa.

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de outubro de 2008. Contributo de Guthrie Munyuki, correspondente do “Expresso” em Harare, Zimbabwe

Torturado por engano

Durante 11 meses, Jawed Ahmad foi detido e brutalizado na prisão de Bagram. Ao Expresso, ele recorda o pesadelo

Jawed Ahmad tornou-se famoso entre os repórteres estrangeiros em serviço no Afeganistão KABUL PRESS

Quando o telefone tocou e, do outro lado da linha, um pretenso oficial da base americana de Kandahar o convidou para participar num estudo de opinião a jornalistas afegãos, Jawed Ahmad estranhou um pouco. “Era sexta-feira — 26 de Outubro de 2007 —, e normalmente não trabalhamos nesse dia. Mas decidi ir até lá.”

No local combinado — o portão principal da base —, uma “pick-up” vermelha logo apareceu para o transportar para o interior do perímetro militar. Lá dentro, assim que a carrinha parou, 14 soldados acercaram-se de Jawed… “Foi horrível. Eu tinha isto o filme ‘A Caminho de Guantánamo’ (2006) e a forma como eles me prenderam e me levaram para dentro — com as mãos atadas, os olhos vendados e um saco preto enfiado na cabeça — foi igual. Sentia-me um actor daquele filme…”, conta ao Expresso, numa entrevista telefónica, na última quarta-feira.

Nos nove dias que se seguiram, o jornalista viveria uma descida aos infernos. “Não me deixaram dormir nem comer. A forma como me interrogaram, a tortura, os espancamentos e gritos foi inacreditável. Depois, disseram que me iam transferir para Guantánamo, juntamente com toda a minha família, que eles diziam ter prendido.”

Jawed preparou-se para o pior, mas assim que percebeu que o avião não tinha voado mais do que duas horas, logo conclui que não podia estar na ilha de Cuba. Na verdade, tinha sido levado para Bagram — a maior base americana em território afegão, a norte de Cabul —, onde existe um centro de detenção de indivíduos suspeitos de ligações aos talibã e à Al-Qaeda. “Em Bagram, obrigaram-me a ficar de pé seis horas com os pés nus e enterrados na neve. Desmaiei duas vezes.”

Após o ‘The New York Times’ ter escrito sobre o seu caso, Jawed passou dois meses e meio na solitária

Aos poucos, o prisioneiro 3370 foi gerando curiosidade nos guardas. “Eu falava muito bem inglês e era muito paciente e disciplinado. Em 11 meses, nunca arranjei problemas. Os guardas ficavam espantados quando me viam a ler Shakespeare — li o ‘Hamlet’ umas 20 vezes. E não me viam como um afegão. Chamavam-me ‘canadiano’.”

Mas à medida que o seu caso era abordado na imprensa internacional, a situação complicava-se dentro da cela. Na sequência de um artigo no ‘The New York Times’, foi colocado na solitária durante dois meses e meio. Na “célula da morte”, não entrava a luz do dia.

Talibã, espião e “cameraman”

Sem qualquer acusação formal, Jawed foi descobrindo os crimes que lhe queriam imputar ao longo dos mais de cem interrogatórios a que foi submetido. “Diziam que eu tinha contactos com os talibãs, que lhes fornecia armas e que fazia filmagens para eles. Chegaram a dizer que eu tinha sido denunciado pela CTV (a televisão canadiana, para onde trabalhava como “cameraman”) e até que eu era um agente do ISI (os serviços secretos paquistaneses).”

Em miúdo, Jawed tinha estudado no Paquistão. Oriundo de uma família da classe média com oito filhos, ele regressara à sua Kandahar natal por alturas da invasão americana, após o 11 de Setembro. Com apenas 16 anos, mas exibindo excelentes conhecimentos linguísticos e agilidade física, conseguiu um trabalho como intérprete junto das forças especiais americanas. “Fui ferido duas vezes, em emboscadas, e a minha mãe obrigou-me a deixar aquele trabalho. Demiti-me em 2005.”

Desses tempos, sobreviveu uma alcunha — ‘Jojo’ — que lhe foi posta pelos americanos, enrascados com a pronúncia daquele nome afegão. ‘Jojo’ tornar-se-ia famoso entre os repórteres estrangeiros em serviço no Afeganistão. Era hábil a conseguir notícias e garantia histórias fora do comum. “Chamavam-me o rei das ‘breaking news’.”

Enquanto jornalista, Jawed sabia que corria riscos. Kandahar era o centro do poder talibã e Jawed tinha muito bons contactos junto dos ‘estudantes de Teologia’. “Eu era honesto e um trabalhador esforçado. Os repórteres estrangeiros ficavam impressionados com a minha capacidade de trabalho, os meus conhecimentos e a minha rede de contactos, que iam do governo afegão, aos americanos, à Isaf e aos talibã. Ter contactos com toda a gente é um direito dos jornalistas”. Mas se para qualquer ‘media’, Jawed era um contacto precioso, para a inteligência americana as suas incursões nos territórios talibã causavam suspeita. “Cobri histórias que lhes causaram algumas dores de cabeça…”, admite.

O pesadelo prisional de Jawed Ahmad terminou a 21 de Setembro, dia em que foi libertado da custódia americana. “Queriam que eu assinasse um papel que me obrigava ao silêncio…” Jawed não só não assinou, como está a preparar um livro onde contará a sua história. Aos 22 anos, quer recuperar o tempo perdido e exige justiça. “Os governos canadiano e americano são os responsáveis pela minha destruição. Vou lutar pelos meus direitos até ao último fôlego, nem que tenha de ir bater à por￾ta de Barack Obama. Quero a minha vida de volta.”

“HÁ PRESOS A SEREM LEVADOS DE GUANTÁNAMO PARA BAGRAM”

Entrevista a Kathleen Kelly, advogada de ‘Jojo’

A defesa de Jawed Ahmad, ‘Jojo’ para os amigos, está entregue a duas instituições norte-americanas: a International Human Rights Clinic de Stanford e a International Justice Network. O Expresso conversou com uma das três advogadas da equipa de defesa para perceber que estratégia está a ser montada.

Presentemente, há algum processo em curso na justiça americana relativo ao caso ‘Jojo’?
Sim. Apresentamos cinco petições pedindo o «habeas corpus» para cinco detidos em Bagram. O caso ‘Jojo’ é um deles. É dos primeiros em que um indivíduo preso em Bagram é representado por advogados. Ele foi libertado, mas continuamos a trabalhar em nome dos outros. Presentemente, há 670 detidos em Bagram e os EUA já disseram que vão aumentar para mais de 11 mil.

O que quer ‘Jojo’ da justiça?
Estamos a analisar árias possibilidades. Ele foi preso, era inocente, foi torturado brutalmente, perdeu o emprego, a mãe está doente e a família está devastada. Nunca será compensado por todas estas perdas. Estamos a estudar formas de lhe fazer justiça, seja através de medidas de compensação ou da interposição de processos contra os responsáveis pela sua situação. Vai ser muito difícil acusar quem o torturou, porque gozam de imunidade enquanto membros do Governo. Vamos ter de ser criativos para os responsabilizar.

Por que decidiram defender ‘Jojo’?
Há que recuar até à questão de Guantánamo. O governo dos EUA falhou na apresentação de qualquer processo de acusação contra os detidos. Recentemente, o Supremo Tribunal decidiu que o Congresso não pode, unilateralmente, retirar o mandado do «habeas corpus», que é um direito constitucional. Em Guantánamo, há centenas de indivíduos a quem não é conferido esse direito. O Governo americano já percebeu que essas pessoas estão abrangidas pela lei americana e que ai acabar por
ser responsabilizado pela sua detenção. Fala-se no encerramento de Guantánamo — os dois candidatos presidenciais estão de acordo nisso —, mas o que os EUA têm feito é transferir pessoas para Bagram. É o novo Guantánamo.

Têm provas disso?
Temos. Os EUA acham que se espalharem as pessoas pelo mundo ninguém se vai preocupar. O nosso trabalho é responsabilizá-los.

Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de outubro de 2008

“Quero a minha vida de volta”

Jawed Ahmad, um repórter afegão que trabalhava para a televisão canadiana, esteve detido em Bagram, durante quase um ano, sem culpa formada. Libertado a 21 de Setembro, ele descreve ao Expresso o ano mais negro da sua vida

Recém-libertado da prisão de Bagram, perto de Cabul, onde esteve detido 11 meses por suspeitas de ligação aos talibã, o jornalista afegão Jawed Ahmad recorda, em entrevista telefónica ao Expresso, o dia em que foi atraído a uma cilada, em Kandahar, e as posteriores sessões de tortura vividas às mãos dos norte-americanos. Aos 22 anos de idade, “Jojo”, como ficou conhecido entre os ocidentais para quem trabalhou, está determinado em recuperar, na barra dos tribunais, a vida normal que a passagem por Bagram lhe destruiu.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de outubro de 2008. Pode ser consultado aqui. No dia seguinte, foi publicado um artigo sobre o tema no “Expresso” (aqui)