Durante 11 meses, Jawed Ahmad foi detido e brutalizado na prisão de Bagram. Ao Expresso, ele recorda o pesadelo

Quando o telefone tocou e, do outro lado da linha, um pretenso oficial da base americana de Kandahar o convidou para participar num estudo de opinião a jornalistas afegãos, Jawed Ahmad estranhou um pouco. “Era sexta-feira — 26 de Outubro de 2007 —, e normalmente não trabalhamos nesse dia. Mas decidi ir até lá.”
No local combinado — o portão principal da base —, uma “pick-up” vermelha logo apareceu para o transportar para o interior do perímetro militar. Lá dentro, assim que a carrinha parou, 14 soldados acercaram-se de Jawed… “Foi horrível. Eu tinha isto o filme ‘A Caminho de Guantánamo’ (2006) e a forma como eles me prenderam e me levaram para dentro — com as mãos atadas, os olhos vendados e um saco preto enfiado na cabeça — foi igual. Sentia-me um actor daquele filme…”, conta ao Expresso, numa entrevista telefónica, na última quarta-feira.
Nos nove dias que se seguiram, o jornalista viveria uma descida aos infernos. “Não me deixaram dormir nem comer. A forma como me interrogaram, a tortura, os espancamentos e gritos foi inacreditável. Depois, disseram que me iam transferir para Guantánamo, juntamente com toda a minha família, que eles diziam ter prendido.”
Jawed preparou-se para o pior, mas assim que percebeu que o avião não tinha voado mais do que duas horas, logo conclui que não podia estar na ilha de Cuba. Na verdade, tinha sido levado para Bagram — a maior base americana em território afegão, a norte de Cabul —, onde existe um centro de detenção de indivíduos suspeitos de ligações aos talibã e à Al-Qaeda. “Em Bagram, obrigaram-me a ficar de pé seis horas com os pés nus e enterrados na neve. Desmaiei duas vezes.”
Após o ‘The New York Times’ ter escrito sobre o seu caso, Jawed passou dois meses e meio na solitária
Aos poucos, o prisioneiro 3370 foi gerando curiosidade nos guardas. “Eu falava muito bem inglês e era muito paciente e disciplinado. Em 11 meses, nunca arranjei problemas. Os guardas ficavam espantados quando me viam a ler Shakespeare — li o ‘Hamlet’ umas 20 vezes. E não me viam como um afegão. Chamavam-me ‘canadiano’.”
Mas à medida que o seu caso era abordado na imprensa internacional, a situação complicava-se dentro da cela. Na sequência de um artigo no ‘The New York Times’, foi colocado na solitária durante dois meses e meio. Na “célula da morte”, não entrava a luz do dia.
Talibã, espião e “cameraman”
Sem qualquer acusação formal, Jawed foi descobrindo os crimes que lhe queriam imputar ao longo dos mais de cem interrogatórios a que foi submetido. “Diziam que eu tinha contactos com os talibãs, que lhes fornecia armas e que fazia filmagens para eles. Chegaram a dizer que eu tinha sido denunciado pela CTV (a televisão canadiana, para onde trabalhava como “cameraman”) e até que eu era um agente do ISI (os serviços secretos paquistaneses).”
Em miúdo, Jawed tinha estudado no Paquistão. Oriundo de uma família da classe média com oito filhos, ele regressara à sua Kandahar natal por alturas da invasão americana, após o 11 de Setembro. Com apenas 16 anos, mas exibindo excelentes conhecimentos linguísticos e agilidade física, conseguiu um trabalho como intérprete junto das forças especiais americanas. “Fui ferido duas vezes, em emboscadas, e a minha mãe obrigou-me a deixar aquele trabalho. Demiti-me em 2005.”
Desses tempos, sobreviveu uma alcunha — ‘Jojo’ — que lhe foi posta pelos americanos, enrascados com a pronúncia daquele nome afegão. ‘Jojo’ tornar-se-ia famoso entre os repórteres estrangeiros em serviço no Afeganistão. Era hábil a conseguir notícias e garantia histórias fora do comum. “Chamavam-me o rei das ‘breaking news’.”
Enquanto jornalista, Jawed sabia que corria riscos. Kandahar era o centro do poder talibã e Jawed tinha muito bons contactos junto dos ‘estudantes de Teologia’. “Eu era honesto e um trabalhador esforçado. Os repórteres estrangeiros ficavam impressionados com a minha capacidade de trabalho, os meus conhecimentos e a minha rede de contactos, que iam do governo afegão, aos americanos, à Isaf e aos talibã. Ter contactos com toda a gente é um direito dos jornalistas”. Mas se para qualquer ‘media’, Jawed era um contacto precioso, para a inteligência americana as suas incursões nos territórios talibã causavam suspeita. “Cobri histórias que lhes causaram algumas dores de cabeça…”, admite.
O pesadelo prisional de Jawed Ahmad terminou a 21 de Setembro, dia em que foi libertado da custódia americana. “Queriam que eu assinasse um papel que me obrigava ao silêncio…” Jawed não só não assinou, como está a preparar um livro onde contará a sua história. Aos 22 anos, quer recuperar o tempo perdido e exige justiça. “Os governos canadiano e americano são os responsáveis pela minha destruição. Vou lutar pelos meus direitos até ao último fôlego, nem que tenha de ir bater à porta de Barack Obama. Quero a minha vida de volta.”
“HÁ PRESOS A SEREM LEVADOS DE GUANTÁNAMO PARA BAGRAM”
Entrevista a Kathleen Kelly, advogada de ‘Jojo’
A defesa de Jawed Ahmad, ‘Jojo’ para os amigos, está entregue a duas instituições norte-americanas: a International Human Rights Clinic de Stanford e a International Justice Network. O Expresso conversou com uma das três advogadas da equipa de defesa para perceber que estratégia está a ser montada.
Presentemente, há algum processo em curso na justiça americana relativo ao caso ‘Jojo’?
Sim. Apresentamos cinco petições pedindo o «habeas corpus» para cinco detidos em Bagram. O caso ‘Jojo’ é um deles. É dos primeiros em que um indivíduo preso em Bagram é representado por advogados. Ele foi libertado, mas continuamos a trabalhar em nome dos outros. Presentemente, há 670 detidos em Bagram e os EUA já disseram que vão aumentar para mais de 11 mil.
O que quer ‘Jojo’ da justiça?
Estamos a analisar árias possibilidades. Ele foi preso, era inocente, foi torturado brutalmente, perdeu o emprego, a mãe está doente e a família está devastada. Nunca será compensado por todas estas perdas. Estamos a estudar formas de lhe fazer justiça, seja através de medidas de compensação ou da interposição de processos contra os responsáveis pela sua situação. Vai ser muito difícil acusar quem o torturou, porque gozam de imunidade enquanto membros do Governo. Vamos ter de ser criativos para os responsabilizar.
Por que decidiram defender ‘Jojo’?
Há que recuar até à questão de Guantánamo. O governo dos EUA falhou na apresentação de qualquer processo de acusação contra os detidos. Recentemente, o Supremo Tribunal decidiu que o Congresso não pode, unilateralmente, retirar o mandado do «habeas corpus», que é um direito constitucional. Em Guantánamo, há centenas de indivíduos a quem não é conferido esse direito. O Governo americano já percebeu que essas pessoas estão abrangidas pela lei americana e que ai acabar por
ser responsabilizado pela sua detenção. Fala-se no encerramento de Guantánamo — os dois candidatos presidenciais estão de acordo nisso —, mas o que os EUA têm feito é transferir pessoas para Bagram. É o novo Guantánamo.
Têm provas disso?
Temos. Os EUA acham que se espalharem as pessoas pelo mundo ninguém se vai preocupar. O nosso trabalho é responsabilizá-los.
Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de outubro de 2008
