“Obama será mais inteligente com o Irão” (versão integral)

O diplomata sueco que liderou as inspecções da ONU ao arsenal de Saddam Hussein esteve, esta semana, em Lisboa. Hans Blix confessou-se mais assustado com o aquecimento global do que com as armas de destruição maciça

Hans Blix foi ministro dos Negócios Estrangeiros da Suécia entre 1978 e 1979 e diretor da Agência Internacional para a Energia Atómica entre 1981 e 1997 FRANKIE FOUGANTHIN / WIKIMEDIA COMMONS

Há cinco anos, Hans Blix bateu com a porta quando George W. Bush declarou guerra ao Iraque, impossibilitando que a equipa da ONU, que ele liderava, continuasse com inspecções na procura de armas de destruição maciça. Na terça-feira, numa conferência em Lisboa sobre o Nuclear no Norte de África, organizada pelo Fórum Intelligence (do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica) e pela Liga dos Combatentes, o diplomata sueco defendeu que “o nuclear é parte da solução” para o problema do aquecimento global.

O que acha do nuclear enquanto fonte de energia?

Todos queremos ter mais energia. Os casos da Índia e da China são pertinentes. Não faz sentido apostarmos numa única fonte. Há vantagens e inconvenientes em todas elas. Os combustíveis fósseis dão 85% da energia que o mundo consome; a energia hídrica 4% e a energia nuclear igualmente 4%. Várias outras, como a energia eólica e a solar, contribuem com muito pouco. Se um país tem condições para produzir energia hídrica, há que explorá-lo, se as pessoas estiverem de acordo. No meu país (Suécia), houve um referendo e as pessoas disseram: Não queremos usar mais os rios. Queremos manter a sua beleza. Não lhes toquem. A Colômbia tem energia hídrica de sobra. Muitos países europeus já a exploraram. Acredito que em Portugal ainda haja energia hídrica que possa ser usada. No capítulo dos combustíveis fósseis, o querosene é indispensável para aviões. Não é possível termos um reactor nuclear nos aviões, nem tão pouco energia eólica. Os combustíveis fósseis têm também grandes vantagens para veículos de transporte. Usamos carvão nos comboios, mas não em carros. Quais os seus aspectos negativos? A poluição, claro. Há experiências feitas a partir da queima de carvão em que se apanha o dióxido de carbono emitido para atmosfera e depois injecta-se no solo. Sou favorável a tudo isso, porque ficaremos gratos se for economicamente viável. Todos os combustíveis fósseis têm grandes problemas ambientais. Há também problemas ao nível da segurança. Onde decorrem as guerras hoje? No Médio Oriente, a propósito do petróleo, do gás. E também na Ásia Central.

E em relação ao nuclear?

As fontes do nuclear estão por todo o lado, não só no Médio Oriente, na Ásia Central, mas também na Austrália ou no Canadá. O urânio é um recurso abundante. Se, nos reactores nucleares actuais usarmos combustível derivado do urânio e fizermos o reprocessamento usando plutónio e urânio, produziremos 80 vezes mais energia. O nuclear tem algumas fraquezas. Há o risco da gestão dos reactores. Pode acontecer acidentes. Chernobyl foi o único, em 60 anos. Não sendo 100% seguro, os registos de segurança do nuclear são muito bons.

Mas temos o problema do terrorismo… 

Até ao momento, não tivemos qualquer caso de um terrorista que se tenha apoderado de uma instalação nuclear. Não seria fácil tão pouco. Os pinos de segurança do urânio estão a grande profundidade. E quanto à colocação de explosivos, não digo que há risco zero, mas a indústria nuclear já identificou este problema há muito tempo. Tem uma experiência muito maior do que as indústrias química e biológica. No passado, o Iraque e a Líbia violaram o Tratado de Não Proliferação (TNP): o Iraque abandonou o nuclear pela força e a Líbia foi dissuadida. Agora, temos os casos da Coreia do Norte e do Irão. Há conversações e eu estou relativamente optimista, mas não estamos seguros de que não vá haver um efeito-dominó na Ásia ou no Médio Oriente. E depois há países que pensam que se o mundo enveredar por uma Primavera nuclear, com muitos mais reactores nucleares, então serão necessárias mais centrais de enriquecimento (porque é necessário enriquecer o urânio para produzir combustível). Mas não é economicamente viável ter centrais de enriquecimento sem que se tenha muitos reactores. Fica mais barato comprar no mercado internacional. Portanto, para mim, o nuclear é uma opção viável.

Portugal depende energeticamente da Argélia, que sofre com o terrorismo. E se o nuclear cai em mãos erradas?

Primeiro, há que distinguir entre reactores de água leve, que dão electricidade e são inofensivos, e o enriquecimento ou reprocessamento, que produz material usado em armas. Eu não nego que os conhecimentos científicos básicos são os mesmos, mas a Suécia tem 10 reactores, a Suíça tem alguns, a Finlândia está a construir o quinto, a Coreia do Sul tem 20 e o Japão tem mais ainda e nenhum deles tem enriquecimento. Alguns países têm (como o Brasil e a África do Sul), mas são relativamente poucos. Seria notável se a Argélia quisesse enriquecer o seu próprio urânio. E não ouvi que a Argélia tenha esse interesse. Tem infra-estruturas nucleares, tem vários reactores de investigação, tem uma longa tradição neste domínio, tem um conhecimento científico e, julgo, também a capacidade de controlar essa indústria. É um país que foi conquistado pela Al-Qaeda e por outros grupos. Enquanto eles apenas gerirem reactores nucleares não há preocupação. Se eles enveredarem pelo processo de enriquecimento, aí já é outro assunto…

“É desejável dissuadir o Irão a não continuar com o enriquecimento”

Desde 2006, 13 países do Médio Oriente anunciaram planos nucleares. Isto é uma resposta ao programa nuclear iraniano ou acredita que têm na base intenções energéticas?

Não sou psicanalista, mas acredito que, em parte, é uma resposta ao que vimos acontecer nos EUA, Reino Unido e outros países que, a dada altura, disseram: Precisamos de mais energia e vemos alguns problemas com as energias fósseis…. Há também motivações económicas. O Irão e os países do Golfo pensam: ‘Os preços do petróleo e do gás estão a subir muito. Preferimos produzir a nossa electricidade para podermos vender o petróleo e o gás que utilizaríamos nesse fabrico’. O Irão tem dois reactores de água leve. A questão que se coloca é: Porque precisa de uma central de enriquecimento? Para apenas dois reactores, não é economicamente viável. As pessoas dizem: ‘Bem, eles têm de ter um motivo militar’. Eles dizem: ‘Nós apenas queremos ter garantias de abastecimento, não confiamos em ninguém para nos vender o combustível’. Pessoalmente, acho que é desejável dissuadir o Irão a não continuar com o enriquecimento.

A dissuasão através de meios militares é válida?

Israel fez essa ameaça e Bush disse que todas as opções estão sobre a mesa, incluindo a militar. Na prática, será que podem bombardear todos os sítios onde suspeitam que os iranianos têm qualquer coisa nuclear? E depois, o que vai acontecer no Médio Oriente? E como vai reagir o Irão? Eu digo ‘Não!’. Há que usar a influência diplomática, económica e política. Não creio que essas possibilidades estejam esgotadas. Hoje, estou mais optimista. É maior a probabilidade da Administração Obama seguir por um caminho mais inteligente.

Como aconselharia Obama?

Deve fazer aquilo que já disse: conversações directas com os iranianos, ao nível preparatório, claro. E deve esquecer a exigência prévia de que o Irão suspenda o processo de enriquecimento. Isso não vai acontecer. Depois, deveria reanimar as estruturas de fornecimento de combustível, porque o Irão tem dois reactores e precisa ter a certeza absoluta de que terá combustível para eles. Também acho que a oferta russa, do processo de enriquecimento decorrer na Rússia, é boa. A comissão que eu dirijo (Comissão para as Armas de Destruição Maciça) fez também uma proposta visando o fim das actividades relacionadas com o ciclo do combustível no Médio Oriente. Israel está tão ansioso e preocupado com o Irão que talvez pudesse fazer alguma coisa para facilitar uma saída, e não apenas ameaçar. Talvez pudesse haver um acordo que levasse a que ninguém no Médio Oriente pudesse ter o enriquecimento ou o reprocessamento: o Irão pararia com o enriquecimento e Israel pararia com actividades de reprocessamento adicionais. Ou então, se se avançasse para um acordo de paz no Médio Oriente e os americanos acreditam nisso , como parte integrante desse acordo, seria estabelecida uma zona livre de armas nucleares.

Será difícil convencer Israel…

Estou certo que sim. Mas eles também querem a paz, não querem? Quais são as opções deles? Seria uma grande negociação que também obrigaria o Irão a abster-se de apoiar movimentos terroristas.

Mesmo que a AIEA provasse que não havia armas nucleares, americanos e israelitas não acreditariam

Como avalia as acções diplomáticas e o trabalho da AIEA?

Têm feito o possível. É verdade que o Irão continua a investigar e a fazer experiências que deveria ter sido declaradas, e não foram. E nós não tivemos tempo para fazer inspecções intrusivas, ao abrigo do Protocolo Adicional. Depois os iranianos permitiram mais inspecções intrusivas, mesmo para além dos termos do Protocolo Adicional, mas não ao ponto de permitir que estudássemos documentos militares. Mas julgo que se a AIEA provasse que não havia armas nucleares, os americanos e os israelitas não acreditariam. Talvez mudem de opinião daqui a cinco anos… Por isso, eu acho que investigações a este nível não ajudam. Os europeus ofereceram algumas contrapartidas inteligentes: a facilitação de investimentos no Irão, o apoio à adesão do Irão à Organização Mundial de Comércio e também a oferta de ajudas para um programa nuclear civil. O problema é que depois disseram que não se sentariam para negociar se o Irão não suspendesse o programa. É como que se falássemos com alguém que está em greve: Nós falaremos com vocês, mas primeiro têm de acabar com a greve. É um pouco humilhante para os iranianos. Não estou nada surpreendido que o Irão tenha dito não’ à proposta.

O que pode ser oferecido ao Irão em conversações directas?

Há três coisas que podem ser feitas. A primeira, que já foi feita em conversações preliminares, e é garantia de fornecimento de combustível: ‘Vocês não precisam de ter o enriquecimento porque nós fornecemos’. As outras duas ainda não foram oferecidas. Uma é a garantia de que o Irão não será atacado do exterior nem que serão usados meios subversivos para derrubar o regime. (Fizeram isto com a Coreia do Norte, mas não com o Irão.) Muitos países que procuram ter armas nucleares perseguem uma necessidade de segurança. O Paquistão pensou: ‘A Índia tem, então nós também temos de ter’. O Irão podia ter essa motivação nos anos 80, quando poderia ter suspeitado de Saddam Hussein. Israel suspeitou e bombardeou Osirak. O Irão poderia tê-lo feito. A terceira proposta prende-se com as relações diplomáticas. O Irão tem sido ostracizado e isolado pelos Estados Unidos, enquanto parte do eixo do mal. Agora, podiam dizer: ‘Se vocês pararem com o enriquecimento, iniciaremos relações diplomáticas’. Fizeram-no com a Coreia do Norte. Não sei se resultaria, mas sinto que ainda não esgotámos todos os meios diplomáticos.

Não teme que o Irão está empenhado em ganhar tempo e que isto pode tornar-se um jogo do gato e do rato?

É possível. Eu não digo que isto funcionasse. Simplesmente digo que esta não é a altura de dizer que tentamos de tudo. Os casos em que não se consegue mesmo travar os países que perseguem o nuclear é quando eles se sentem constrangidos, como os casos do Paquistão e da Índia. Ou o caso de Israel, que se dizia constrangido eu não estou convencido disso mas eles sentiam-se como tal e precisavam disso. Ou o caso da Índia depois da guerra com a China. Este não é o caso do Irão. Eles não são ameaçados pelos turcos, pelos afegãos e não mais pelos iraquianos. Por isso, não vejo qualquer necessidade. Eles podem dizer que precisam disso para se manterem fortes e para ganhar um trunfo na mesa das negociações.

Alguém imagina os EUA ou a Rússia a abdicarem do controlo ao seu arsenal nuclear?

O problema do enriquecimento poderia ser resolvido através de multinacionais de Estados?

Existe essa proposta. Mohamed El Baradei sugeriu que deveríamos ter uma agência internacional de reprocessamento, mas politicamente é complicado. Alguém consegue imaginar os americanos ou os russos a abdicarem do seu próprio controlo? Eu não tenho esperança que uma medida dessas surja facilmente. A melhor forma é usar desincentivos económicos. Há também uma discussão sobre a criação de um banco de combustível na AIEA. Seria uma instituição virtual ao abrigo da qual um Estado poderia dizer: Eles pararam de nos fornecer combustível por razões políticas. E o banco responderia: Sim, estamos aqui para vos ajudar. Mas também aqui há dificuldades. Quem decidiria no banco? Baradei? O Conselho de Governadores? E os americanos teriam poder de veto?

No Conselho de Segurança da ONU, os cinco membros com poder de veto são potências nucleares. Não é legítimo para qualquer país que, por uma questão de estatuto político, também aspire a ter armas nucleares?

Há dois exemplos que contrariam essa teoria: o Japão e a Alemanha. Ninguém duvida que são duas grandes potências políticas e nenhum deles tem armas nucleares. Muito pelo contrário. São a prova de que é possível ser-se um grande jogador sem ter armas nucleares.

Qual é a sua maior preocupação em relação ao nuclear?

Não há nenhuma energia que não comporte riscos. Mas eu estou mais assustado com o aquecimento global do que em relação às armas de destruição maciça. Estas ameaçam-nos na forma de um suicídio rápido. O aquecimento global ameaça a civilização com um suicídio lento. E essa perspectiva está muito próxima. Em relação às armas nucleares, apenas precisamos de sabedoria em uma dúzia de Estados. Mas no que toca ao aquecimento global, o que está em causa é o comportamento de 6,5 mil milhões de pessoas. Em relação ao aquecimento global, eu não digo simplesmente que o nuclear é a solução. O nuclear não resolve o problema, mas é uma parte da solução. Outra parte importante é a poupança energética. Ou seja, uma produção energética mais eficiente e um consumo energético mais racional. São coisas tremendas que todos nós podemos fazer.

Sempre que falamos destas questões referimo-nos a Estados. Mas o grande perigo não virá de actores não-estaduais?

Olhemos para o ataque mais espectacular que já tivemos, o 11 de Setembro. Não foi usada qualquer arma, só aviões. Isso não quer dizer que não possa acontecer no futuro. Mas é pouco provável que actores não-estaduais tenham capacidade para o fazer. Para produzirem explosivos nucleares precisarão de grandes instalações que custarão milhões de dólares. Claro que podem roubar urânio enriquecido ou uma bomba completa, porque não? Não é de descartar que procurem material biológico para fazer o mesmo. Eu acho que o ser humano tem sempre a necessidade de sentir algum tipo de ansiedade e vocês, nos media, ajudam-nos muito: num dia é o colesterol, noutro dia são os telemóveis e no outro são os terroristas.

CONFERÊNCIA EM LISBOA

Hans Blix esteve em Lisboa para intervir na conferência O Mediterrâneo, o Norte de África e a ameaça nuclear, que se realizou, na passada terça-feira, no Instituto de Estudos Superiores Militares. O investigador Delgado Domingos começou por recordar que “os átomos não sabem se são civis ou militares…” Afirmou que “o nuclear não é alternativa nem solução” para os problemas energéticos e que “não há racionalidade económica que justifique centrais nucleares no Norte de África”.

A emergência de projectos nucleares na margem Sul do Mediterrâneo, de Marrocos ao Egipto, tem contado com o apoio da França que, já este ano, assinou acordos de cooperação nuclear com a Argélia, Líbia e Marrocos. Coube ao embaixador francês, Denis Delbourg, justificar o entusiasmo do seu país: “A França fez a escolha nuclear há 40 anos e 80% da energia produzida é nuclear”.

Sendo o Norte de África uma região democraticamente frágil, um dos painéis da conferência dedicou-se ao “Impacto da Ameaça Terrorista”. O criminalista José Manuel Anes alertou para o facto de alguns grupos actuantes na região terem “infiltrações no Sul da Europa”. Por fim, falando sobre a questão dos financiamentos aos movimentos terroristas, o ex-inspector da Polícia Judiciária Miguel Trindade Rocha recordou que os atentados de 11 de Setembro custaram apenas cerca de 200 mil dólares. E defendeu que o nuclear é cada vez mais “uma fonte de financiamento do que um meio de ataque”.

Entrevista publicada no Expresso Online, a 22 de novembro de 2008. Pode ser consultada aqui. Uma versão curta foi publicada no “Expresso”, no mesmo dia

“Obama será mais inteligente com o Irão” (versão curta)

Entrevista a Hans Blix, ex-director da Agência Internacional para a Energia Atómica

Hans Blix foi ministro dos Negócios Estrangeiros da Suécia entre 1978 e 1979 e diretor da Agência Internacional para a Energia Atómica entre 1981 e 1997 FRANKIE FOUGANTHIN / WIKIMEDIA COMMONS

Há cinco anos, Hans Blix bateu com a porta quando George W. Bush declarou guerra a Saddam Hussein, impossibilitando que a equipa da ONU, liderada por ele, continuasse com as inspecções ao arsenal iraquiano na procura de armas de destruição maciça. Na terça-feira, numa conferência sobre o Nuclear no Norte de África, organizada pelo Fórum Intelligence (do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica) e pela Liga dos Combatentes, o diplomata sueco confessou-se “mais assustado com o aquecimento global do que com as armas de destruição maciça”. Em entrevista ao “Expresso”, Hans Blix revelou que o nuclear, não curando a maleita ambiental, “é parte da solução”. E explicou que conselhos daria a Barack Obama sobre como lidar com o dossiê nuclear do Irão.

O que acha do nuclear enquanto fonte de energia?
Todos queremos mais energia. Não faz sentido apostarmos numa única fonte. Há vantagens e inconvenientes em todas. O nuclear tem fontes em todo o lado. O urânio é um recurso abundante. Se nos reactores nucleares actuais usarmos combustível derivado do urânio e fizermos o reprocessamento usando plutónio e urânio, produziremos 80 vezes mais energia.

E quais são as fraquezas?
Podem acontecer acidentes. Mas os registos de segurança do nuclear são muito bons. Em relação ao terrorismo, nunca um terrorista se apoderou de uma instalação nuclear. Não é fácil. Os pinos de segurança do urânio estão a grande profundidade. E quanto ao uso de explosivos, há muito tempo que a indústria nuclear identificou este problema.

Portugal depende energeticamente da Argélia, que sofre com o terrorismo. E se o nuclear cai em mãos erradas?
Há que distinguir entre reactores de água leve, que dão electricidade e são inofensivos, e o enriquecimento ou reprocessamento, que produz material usado em armas. Os conhecimentos científicos básicos são os mesmos, mas a Suécia tem 10 reactores, a Finlândia está a construir o quinto, a Coreia do Sul tem 20 e nenhum tem enriquecimento. Alguns países têm (como o Brasil e a África do Sul), mas são poucos. Seria notável se a Argélia quisesse enriquecer o seu próprio urânio.

Desde 2006, 13 países do Médio Oriente anunciaram planos nucleares. É a resposta ao Irão?
Em parte, é uma resposta aos EUA, Reino Unido e outros que, a dada altura, disseram: ‘Precisamos de mais energia e vemos alguns problemas com as energias fósseis…’. Há também motivações económicas. O Irão e os países do Golfo pensam: ‘Os preços do petróleo e do gás estão a subir muito. Preferimos produzir a nossa electricidade para podermos vender o petróleo e o gás que utilizaríamos nesse fabrico’. O Irão tem dois reactores de água leve. Porque precisa de uma central de enriquecimento? Para apenas dois reactores, não é economicamente viável. É desejável dissuadir o Irão a não perseguir o enriquecimento.

A dissuasão através de meios militares é válida?
Israel fez essa ameaça e Bush disse que todas as opções estão sobre a mesa. Será que podem bombardear todos os sítios onde suspeitam que os iranianos têm qualquer coisa nuclear? E depois, o que vai acontecer no Médio Oriente? E como vai reagir o Irão? Eu digo ‘Não!’. Há que usar a influência diplomática, económica e política. Não creio que essas possibilidades estejam esgotadas. Estou optimista. É maior a probabilidade da Administração Obama ir por um caminho mais inteligente.

Como aconselharia Obama?
Deve fazer aquilo que já disse: conversações directas com os iranianos, ao nível preparatório, claro. E deve esquecer a exigência prévia de que o Irão suspenda o processo de enriquecimento. Isso não vai acontecer.

Como avalia as acções diplomáticas e o trabalho da AIEA?
Têm feito o possível. É verdade que o Irão continua a fazer experiências que deveria ter declarado, e não fez. Mas julgo que se a AIEA provasse que não havia armas nucleares, os americanos e os israelitas não acreditariam. Talvez mudem de opinião daqui a cinco anos… Os europeus ofereceram algumas contrapartidas inteligentes: a facilitação de investimentos no Irão, o apoio à adesão à OMC e ajudas para um programa nuclear civil. Mas depois disseram que não negociariam se o Irão não suspendesse o programa. É humilhante para os iranianos.

O que pode ser oferecido ao Irão em conversações directas?
Três coisas. A garantia de fornecimento de combustível: ‘Vocês não precisam de ter o enriquecimento porque nós fornecemos’. Assegurar ao Irão que não será atacado do exterior nem que serão usados meios subversivos para derrubar o regime. E propor relações diplomáticas. Não sei se resultaria, mas sinto que ainda não esgotámos todos os meios diplomáticos

O problema do enriquecimento poderia ser resolvido através de multinacionais de Estados?
Existe essa proposta. Mohamed El Baradei sugeriu uma agência internacional de reprocessamento, mas politicamente é complicado. Alguém imagina os americanos ou os russos a abdicarem desse controlo?

Artigo publicado no Expresso, a 22 de novembro de 2008. A entrevista integral foi publicada no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultada aqui

Magrebe lança-se no nuclear

Nos últimos dois anos, pelo menos 13 países do Médio Oriente anunciaram planos nucleares. A proliferação está às portas de Portugal

O “Átomo Sorridente” criado pela organização Nuclear Power? Yes please

A perspectiva de um Irão nuclear não deixa o mundo árabe indiferente. Segundo um relatório do International Institute for Strategic Studies (IISS), de Londres, entre Fevereiro de 2006 e Janeiro de 2007, pelo menos 13 países do Médio Oriente anunciaram novos projectos ou recuperaram planos antigos para se dotarem de capacidade nuclear. No Magrebe, Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia foram contaminados por esta súbita aspiração.

A escassez de recursos hídricos e o interesse económico em reservar para exportação uma parte considerável da produção nacional de petróleo e gás são duas das razões que ‘empurram’ os países do Norte de África para a opção nuclear. Na próxima segunda-feira, em Lisboa, a conferência ‘O Mediterrâneo, o Norte de África e a ameaça nuclear’ discutirá este fenómeno às portas de Portugal. O ex-director-geral da Agência Internacional de Energia Atómica Hans Blix marcará presença no Instituto de Estudos Superiores Militares e falará do impacto regional e internacional dos programas nucleares mediterrânicos.

Segundo o relatório do IISS, a Argélia é o caso que suscita mais receios. Possui dos programas nucleares mais avançados do mundo árabe e é um país onde a Al-Qaeda está particularmente activa. “A sua situação pode ser comparada à do Paquistão: um Estado islâmico dominado por militares com um sério problema com o terrorismo, que goza de boas relações com os EUA, recebeu assistência nuclear da China e tem ligações próximas ao Irão”.

Ameaça ou oportunidade?

Vizinho da Argélia, com quem vive uma animosidade latente, Marrocos também está na corrida ao nuclear. Se tudo correr como previsto, em 2017, Rabat terá o seu primeiro reactor, em Sidi Boulbra. O consumo de electricidade cresce 8% ao ano e o país não tem grandes reservas de petróleo.

Na conferência no Instituto de Estudos Superiores Militares, Francisco Galamas apresentará a perspectiva lusa. “Portugal deve precaver-se contra as prováveis ameaças e aproveitar possíveis oportunidades. As ameaças podem ser definidas a nível do terrorismo e de acidentes nas centrais nucleares. Por outro lado, caso a ligação entre as redes eléctricas europeias e as do Norte de África se concretizar, poderemos beneficiar da energia eléctrica produzida nesta região”, afirmou ao “Expresso”.

À semelhança da Argélia, também a Líbia assinou com a França, em 2007, acordos de cooperação nuclear. Khadafi renunciou à produção de armas nucleares, mas persegue o nuclear para fins civis, designadamente para dessalinizar água do mar.

Na Tunísia, o processo está embrionário, ao nível de estudos preliminares para a construção de um reactor. Como refere o relatório do IISS, “novos projectos sustentados de reactores no Médio Oriente estão, pelo menos, a 10, 15 anos de distância da sua realização”. O efeito-dominó é já, porém, uma realidade.

Artigo publicado no Expresso, a 15 de novembro de 2008