Rania é “fixe”

A Rainha Rania da Jordânia e o ex-Presidente Jorge Sampaio foram galardoados com o Prémio Norte-Sul. Hoje, o Parlamento português foi o palco desse reconhecimento

Rainha Rania, durante a cerimónia de atribuição do Prémio Norte-Sul, no Palácio de São Bento, a 17 de março de 2009 SITE DA RAINHA RANIA

Quando a Rainha Rania se dirigiu para o púlpito da sala do Senado da Assembleia da República, para agradecer o Prémio Norte-Sul que acabara de receber, um discreto funcionário do protocolo jordano entregou-lhe uma pasta com o discurso a proferir. Na verdade, aquelas folhas de papel mais não eram do que uma precaução, pois, à frente da monarca jordana, duas aparentes placas de vidro funcionavam como teleponto, orientando-a no discurso (pontuado por várias referências à História de Portugal) e dando-lhe dicas quanto à postura (sobre para onde olhar e qual o momento certo para sorrir).

Para grande parte dos presentes no hemiciclo — lotado de políticos, diplomatas e personalidades tão distintas quanto o Procurador-Geral da República, Pinto Monteiro, ou o Presidente do Comité Olímpico Português, Comandante Vicente de Moura —, Rania terá passado a imagem de uma mulher com uma capacidade de improviso brilhante. Mas os que se aperceberam do teleponto não terão ficado desiludidos: a monarca jordana é, definitivamente, uma mulher voltada para as novas tecnologias.

No ano passado, Rania lançou um canal no YouTube, onde presentemente uma música cantada por uma jovem portuguesa (Mia Rose) e um jovem árabe (Hanna Gargour) — “Waiting on the World to Change” (À espera que o Mundo mude) — é dos vídeos mais visitados. Rania serviu-se desse exemplo para explicar o que a move: “O meu objectivo foi tentar desconstruir os estereótipos negativos acerca da minha região, que minam a confiança entre nós. Os blogues e os ‘vlogs’ chegaram, para agrado do meu filho adolescente que, por momentos, pensou que a mãe era ‘fixe’!”, explicou ela, durante o discurso.

“Hoje, através da Internet, alcançamos o maior número de jovens na história. Em 2007, a utilização da Internet no Médio Oriente e em África cresceu mais do que em qualquer outra parte no mundo. Quero usar a Internet como alavanca para unir as pessoas, para sanar o fosso que separa o mundo muçulmano do Ocidente, para aumentar o diálogo digital, porque, hoje, uma viagem de 1000 quilómetros pode começar com um pequeno clique.”

Em Lisboa, Rania foi premiada pela sua dedicação às causas das crianças e das mulheres de meios mais desfavorecidos, através de instituições que fundou (Jordan River Foundation e Dar al-Aman). Em Lisboa, a soberana partilhou este reconhecimento público — e o Prémio Norte-Sul – com Jorge Sampaio, actual Alto Representante das Nações Unidas para a Aliança das Civilizações — que promove o diálogo entre culturas. “Um autor português (Miguel Torga), habituado a olhar para além do horizonte, escreveu que ‘o Universal é o local sem os muros’. Sigamos a sua lição e, na linha dos louváveis objectivos do Centro Norte-Sul, procuremos derrubar os numerosos muros que prejudicam os nossos deveres de solidariedade e tolhem possíveis caminhos de concórdia”, afirmou Sampaio.

Desde 1995 que o Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, sediado em Lisboa, atribui este galardão a duas personalidades que se destacam na cena internacional pela sua dedicação e desempenho em matéria de protecção de Direitos Humanos.

Os anteriores galardoados foram:

1995

– Vera Duarte e Peter Gabriel

1996

– Danielle Mitterrand e Mulheres da Argélia

1997

– Mary Robinson e Patricio Aylwin

1998

– Graça Machel e Lloyd Axworthy

1999

– Emma Bonino e Abderrahman Youssoufi

2000

– Marguerite Barankitse e Mário Soares

2001

– Maria da Nazaré Gadelha Ferreira Fernandes e Cornelio Sommaruga

2002

– Albina du Boisrouvray e Xanana Gusmão

2003

– Frene Ginwala e António de Almeida Santos

2004

– Nawal Al Sadawi e Embaixador Stéphane Hessel

2005

– Bogaletch Gebre e Bob Geldof

2006

– Mukhtaran Bibi e Padre Francisco Van Der Hoff

2007

– Simone Veil e Kofi Annan


Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de março de 2009. Pode ser consultado aqui

Frente-a-frente com os ‘bulldozers’

Jeff Halper luta contra a demolição de casas. Quiseram dar-lhe o Prémio Nobel da Paz

Pintura de Maria Imaginário, nome artístico da ilustradora portuguesa Edna Costa, num troço do muro da Cisjordânia junto ao campo de refugiados de Aida, em Belém EDNA COSTA

Sempre que se recolhe para uma noite de descanso, Jeff Halper não sabe a que horas será o despertar. “Às vezes, o telefone toca às cinco da manhã. Os palestinianos sabem que nós existimos e quando vêem os bulldozers aproximarem-se das suas casas, telefonam-nos. Vamos até lá, pomo-nos à frente das máquinas ou acorrentamo-nos dentro das casas. Empatamos tempo e impedimos que aqueles bulldozers se dirijam para outras casas. Enquanto isso, chamamos jornalistas e diplomatas e transformamos a situação num espectáculo público. Como Israel quer destruir as casas sem que ninguém veja, os bulldozers retiram-se”.

É um israelita que assim fala. Jeff Halper nasceu há 63 anos nos Estados Unidos, mas nos anos 1970, em busca da sua identidade judaica, instalou-se em Israel. Em 1997, fundou o Comité Israelita Contra a Demolição de Casas (ICAHD) — um grupo apolítico, não-violento, que luta contra a ocupação israelita dos territórios palestinianos — e com esse activismo foi proposto para Prémio Nobel da Paz, em 2006.

Recentemente, usufruiu de uns dias de descanso em Lisboa e conversou com o “Expresso” sobre o que considera ser “a essência do conflito” no Médio Oriente: a destruição de casas palestinianas pelas forças israelitas. E porquê? “Um povo diz para o outro: ‘Não têm o direito de estar aqui! Este não é o vosso país! Saiam!”, justifica o antropólogo.

Sem luz, há 60 anos

Segundo o ICAHD, desde 1967 Israel já demoliu mais de 24 mil casas nos territórios palestinianos. O problema é, todavia, bem mais antigo. “Em 1948, nem todos os palestinianos deixaram Israel”, conta Jeff. “Alguns desceram o vale ou foram para o monte ao lado para se esconderem. Fugiram para se proteger dos combates (Guerra da Independência, após a criação de Israel). Mas quando a guerra acabou, Israel não permitiu que regressassem às suas casas. Hoje, continuam a viver encurralados nos sítios onde, há 60 anos, encontraram refúgio”.

Cerca de 150 mil palestinianos e beduínos vivem, hoje, nestas “aldeias não reconhecidas”, sem direito a água, electricidade, ruas ou escolas. Sobre cada casa recai uma ordem demolição, por ilegalidade. É quando os “bulldozers” israelitas se aproximam que muitos palestinianos lançam o alerta a Jeff Halper.

Com um staff reduzido de cinco pessoas (dois pagos pelos Governos espanhol e austríaco), cerca de dez activistas permanentes e muitos voluntários, o ICAHD já recuperou mais de 160 casas. “Sempre que reconstruímos uma casa, reafirmamos: Esta terra pertence a dois povos e temos de viver juntos aqui!”, diz.

Jeff admite que, nas acções de resistência em que participa, o facto de ser israelita e judeu é, para ele, uma vantagem. “Sou preso a toda a hora e, às vezes, eles intimidam-me, mas não me magoam. Se fosse palestiniano, disparavam. Estou completamente protegido”. Mas nem sempre a cidadania israelita é, por si só, um porto-seguro. Um quinto da população de Israel é israelita-árabe. Segundo Jeff, “em 2009, Israel está a demolir casas de cidadãos israelitas que são árabes. Entre 20 e 40 mil casas estão identificadas para serem demolidas”.

Por outro lado, continua, “Israel não dá autorizações de construção a israelitas árabes. Eles possuem terras, mas não podem construir”. Jeff diz tratar-se de uma medida de “judaização de Israel”. E defende que a demolição de casas, nos territórios ocupados e em Israel, empurra os árabes para enclaves. “Isto é apartheid!”, acusa.

Boicote à Caterpillar

Até não há muito tempo, Israel também utilizava a demolição de casas como táctica de guerra. Se suspeitava que um palestiniano estivesse envolvido em actividades terroristas, destruía a casa da sua família — “punição colectiva”. Mas desde há quatro anos que o Exército deixou de o fazer. A estratégia era contraproducente: em vez de travar os militantes, as demolições dispersavam o ódio a Israel.

Porém, o boicote internacional à Caterpillar — a fabricante dos “bulldozers” blindados utilizados nas demolições — mantém-se. E só a Igreja de Inglaterra retirou da empresa investimentos no valor de 64 milhões de libras (quase 70 milhões de euros).

Jeff faz pelos palestinianos o que lhes é vedado. Ainda assim, não deixa de se surpreender pelos meandros palestinianos… A 23 de Agosto de 2008, o israelita foi um dos passageiros do primeiro barco “Free Gaza” (Libertem Gaza) a furar o bloqueio à Faixa de Gaza. Em terra, o Governo do Hamas, que governa o território, apressou-se a conceder a cidadania palestiniana aos tripulantes do barco. Em contactos posteriores com altos representantes da Fatah — a facção rival, que governa a Cisjordânia —, disseram-lhe que, por ter sido dada pelo Hamas, a sua cidadania palestiniana… não era oficial. “Mas eu recebi a cidadania do Governo eleito!”, reclama.

Pintura de Edna Costa, em 2013, cinco anos após a sua execução MARGARIDA MOTA

ACTIVISTAS LUSAS

No último Acampamento de Verão do ICAHD, à boleia da ONG espanhola Paz Ahora, duas portuguesas viveram, durante 15 dias, em Anata, perto de Jerusalém. “Foi uma experiência muito feliz, pois a ajuda do Governo espanhol possibilitou a construção de duas casas”, diz a mestranda em Antropologia Daniela Nunes, de 26 anos. “O Governo português devia ser mais activo quanto a esta questão”, refere a ilustradora Edna Costa, de 23 anos, autora de uma pintura num troço do muro junto ao campo de refugiados de Aida, em Belém. “Sabia o que se passava na Palestina, mas nada me preparou para tanta desigualdade e injustiça”, diz Andreia. Ainda assim, Daniela não hesita: “Voltar? Não pensava duas vezes. Partia ainda hoje!”

Artigo publicado no Expresso, a 14 de março de 2009