Enquanto milhares de iranianos pedem, nas ruas, a repetição do acto eleitoral, nos bastidores do regime trava-se uma luta pelo poder

Há quatro meses, órgãos de informação de todo o mundo recordavam como, há 30 anos, grandes manifestações populares em Teerão levavam à queda do Xá da Pérsia e ao fim de um regime com 2500 anos. Nos dias que correm, essa mesma imprensa tenta perceber qual o alcance dos protestos, igualmente gigantescos, que tomaram conta da capital iraniana desde o anúncio da vitória de Mahmud Ahmadinejad, nas presidenciais do dia 12.
Milhares de apoiantes do candidato derrotado — Mir Hossein Mousavi — perguntam: “Onde está o meu voto?” E decretam: “Morte ao ditador”. A quem se referem? A Ahmadinejad, creditado com 62,6% dos votos mas a quem acusam de ter feito um “golpe de Estado”? Ou a Ali Khamenei, o Líder Supremo que se apressou a confirmar a reeleição do Presidente, ignorando as denúncias de fraude? Está a Revolução Islâmica em causa após 30 anos de vida?
Os gritos “Allahu Akbar” (“Deus é grande!”) saídos das bocas de muitos apoiantes de Mousavi — a quem chamam “o Gandhi do Irão” — parecem desmentir qualquer tentativa de assalto à Revolução. De resto, o verde que o candidato escolheu para pintar a sua campanha é a cor mais exaltada pelos muçulmanos, por ser a preferida do Profeta Maomé.
Por outro lado, não há dúvidas quanto ao compromisso de Mousavi com a Revolução de 1979. Tido como um conservador moderado—apesar de ter apoios reformistas —, Mousavi angariou grande popularidade quando foi primeiro-ministro numa das épocas mais difíceis da História recente do país: a guerra Irão-Iraque (1980-1988), em que morreu um milhão de iranianos.
O factor perturbador da sua candidatura situa-se, porém, à retaguarda. Mousavi é apoiado por aquele que é considerado a “eminência parda” do regime iraniano — o ayatollah Akbar Hashemi Rafsanjani, de 75 anos, Presidente do Irão entre 1989 e 1997 e antigo confidente do ayatollah Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica do Irão. Na pirâmide do poder, Rafsanjani detém a presidência de duas instituições (ver infografia), sendo considerado a segunda figura mais poderosa do país. Tal não impediu, porém, que, esta semana, a Justiça proibisse dois dos seus filhos de saírem do país, por “incitamento e organização de manifestações ilegais”, anunciou, na quinta-feira, a agência iraniana Fars.
Rafsanjani é um conservador pragmático que se aproximou do campo reformista após ter sido derrotado por Ahmadinejad nas presidenciais de 2005. Dono de uma das maiores fortunas do Irão e detentor de uma grande capacidade intelectual, dele diz-se que daria um Líder Supremo à altura do cargo…
Esta aparente batalha pelo poder entre Ali Khamenei e Rafsanjani — no coração da Revolução — não ilude a questão imediata que muitos iranianos querem ver esclarecida: houve ou não fraude nas eleições presidenciais?
Milagre da reprodução dos votos
A vitória de Ahmadinejad não estava fora das conjecturas. Ele conta com uma ampla base de apoio, sobretudo nas áreas rurais, onde costumava distribuir dinheiro vivo durante as visitas que efectuava. Ahmadinejad governa para os pobres e, entre o povo, pela sua simplicidade e populismo, rapidamente se transforma num entre iguais.
A surpresa da sua vitória reside, antes, na vantagem em relação ao seu opositor. Mousavi, que teve 33,7%, vinha captando o eleitorado com uma dinâmica de vitória, em especial nas grandes cidades, porém, segundo os resultados oficiais, nem na sua província natal (Azerbaijão Oriental) Mousavi venceu: teve 42% contra 57% de Ahmadinejad que, em 2005, conseguira apenas 10%.
O mapa dos resultados é, de resto, fértil em proezas por parte de Ahmadinejad. Também Mehdi Karubi, o candidato reformista, se deu mal na província onde nasceu, Lorestan: em 2005, “esmagara” Ahmadinejad com 55% contra 9%; agora, obteve 5% contra 71%. Outro volte-face deu-se na província de Ardabil, onde Ahmadinejad foi governador: em 2005, teve 7%; agora, 51%…
Os contestatários da vitória de Ahmadinejad, que pedem a repetição do sufrágio, alegam ainda que num país tão vasto como o Irão é impossível concluir a contagem de 42.036.078 de votos no próprio dia das eleições.
Ontem, numa rara aparição pública, o Líder Supremo Ali Khamenei fez o sermão da oração do meio-dia na Universidade de Teerão. Com Ahmadinejad na primeira fila, Khamenei confirmou os resultados eleitorais, disse que eventuais dúvidas devem ser investigadas através dos canais legais e apelou aos apoiantes dos candidatos derrotados para que acabem com os protestos. “Caso contrário, serão responsáveis pelas suas consequência e pelas consequências de qualquer espécie de caos”. À hora de fecho desta edição, não era ainda conhecida a reacção de Mousavi.
Na quarta-feira, em Lisboa, perante a insistência dos jornalistas em obterem justificações acerca da repressão das autoridades sobre os manifestantes e as limitações ao trabalho dos repórteres, Mehdi Safari, secretário de Estado dos Assuntos Europeus do Irão, perdeu a paciência: “Mais de 40 milhões de pessoas num universo de 46 milhões de eleitores foram votar. Comparando com as eleições europeias, este número é mais do dobro. Isto mostra a democracia que há na Europa e na Ásia…” Mostra também que um regime com uma taxa de afluência às urnas a rondar os 85% não está moribundo. Já os protestos mostram que precisa de mudanças.
REACÇÕES
Barack Obama: “Ao ver violência contra manifestações pacíficas e protestos tranquilos a serem reprimidos, fico preocupado”
Benjamin Netanyahu: “Houve mesmo uma eleição no Irão? É um Estado totalitário que talvez tenha eleições de vez em quando”
Angela Merkel: “É preciso uma investigação transparente à alegada fraude”
Luís Amado: “É bom que haja um Presidente com total legitimidade (…) há grande expectativa de entrar numa nova fase de negociações”
REDES SOCIAIS
Protestos em 140 caracteres
Se muitos opositores já tinham blogues, foi nas presidenciais que o Twitter e o Facebook ganharam um papel relevante no Irão. O Twitter, rede social que permite trocar mensagens até 140 caracteres, é fácil de usar e pode ser alimentada através do telemóvel. Foi tal a adesão que o Twitter adiou uma paragem de manutenção, na passada segunda-feira, a pedido de inúmeros utentes e até da Administração Obama. O protesto alastra também no Facebook, onde centenas de páginas de apoio ao candidato opositor Mousavi reúnem mais de 100 mil adeptos. Há por toda a Net ícones verdes (cor associada ao movimento de protesto) que qualquer um pode adicionar ao seu site. Os cibernautas iranianos fintam a censura recorrendo a servidores estrangeiros e pedem aos utilizadores da Net em todo o mundo que indiquem o Irão como país de residência, para confundir os censores.
DISCURSO DIRECTO
Muitos governos preocupam-se com armas na mão do povo. O Irão teme os computadores!
#IranElection TwitterPor favor, façam uma lista de comentários sobre métodos contra software de filtragem no Irão
Mir Hossein Mousavi FacebookEsta noite às 10, 11 e 12, ‘Alá é Grande’ nos telhados
@mousavi1388 TwitterHoje, até os candeeiros de rua do Irão ficaram verdes!
@mialoponis525 Twitter
EM 29 ANOS, DEZ ELEIÇÕES, SEIS PRESIDENTES
JANEIRO DE 1980
Abolhassan Banisadr venceu as primeiras presidenciais realizadas no Irão, com cerca de 80% dos votos. As eleições foram as mais concorridas de sempre, com dez candidatos (número só igualado em 2001). Impugnado em Junho de 1981, pelo Parlamento iraniano, fugiu para Versalhes, onde ainda vive.
JULHO DE 1981
Mohammad Ali Rajai, primeiro-ministro durante a Presidência de Banisadr, sucedeu-lhe por apenas 28 dias. Morreu num atentado, que também vitimou o então primeiro-ministro Mohammad Bahonar, a 30 de Agosto, numa reunião do Conselho Superior de Defesa, em Teerão.
OUTUBRO DE 1981
Ali Khamenei conquistou 95% dos votos e tornou-se no primeiro clérigo a chegar à Presidência, onde esteve oito anos. Foi uma figura decisiva na Revolução Islâmica e um confidente do ayatollah Khomeini. É o Líder Supremo, desde 1989, e chefe das Forças Armadas.
AGOSTO DE 1985
Ali Khamenei foi reeleito com 85% dos votos. Teve um papel interventivo na guerra Irão-Iraque (1980-1988). Foi fotografado a apoiar militares iranianos na linha-da-frente e desaprovou a decisão do Líder Supremo Ruhollah Khomeini de entrar no Iraque em resposta à invasão sofrida.
JULHO DE 1989
Akbar Hashemi Rafsanjani foi um dos dois candidatos autorizados a concorrer às presidenciais, entre uma lista de 79. Exerceu dois mandatos e foi o primeiro chefe de Estado a cumprir o mandato até ao fim. Perdeu o terceiro, em 2005, para o actual Presidente Mahmud Ahmadinejad.
JUNHO DE 1993
Akbar Hashemi Rafsanjani concorreu contra o conservador Ahmad Tavakkoli (ex-ministro do Trabalho) e foi reeleito com 62,9% dos votos. Com os cofres do Estado cheios, levou à prática políticas de liberalização económica. Durante o seu mandato, a inflação atingiu o máximo histórico de 49%.
MAIO DE 1997
Mohammad Khatami, quinto Presidente do Irão, manteve-se no cargo até 2005. Atraiu as atenções internacionais ao arrecadar 70% dos votos. Durante os dois mandatos lutou pela liberdade de expressão e pela tolerância e consolidou relações diplomáticas com a Ásia e a UE.
JUNHO DE 2001
Mohammad Khatami foi o mentor do Ano do Diálogo entre Civilizações, declarado pelas Nações Unidas, em 2001. Visto como o primeiro Presidente reformista, defensor da democracia, foi acusado pelos próprios apoiantes de ter falhado o objectivo de tornar o Irão mais livre e democrático.
JUNHO DE 2005
Mahmud Ahmadinejad disputou a segunda volta com o ex-Presidente Akbar Hashemi Rafsanjani e venceu, protagonizando uma viragem dos resultados conseguidos na primeira volta (19,43% contra 21,13% de Rafsanjani). Obteve 61,69%, mas não se livrou de suspeitas de fraude eleitoral.
JUNHO DE 2009
Mahmud Ahmadinejad volta a vencer as eleições, com quase o dobro dos votos do opositor Mir Hossein Mousavi (62,63% contra 33,75%). A União Europeia e vários países ocidentais expressaram preocupação pela denúncia de irregularidades e questionaram a autenticidade dos resultados.
Artigo publicado no “Expresso”, a 20 de junho de 2009




