
Aung San Suu Kyi estava a escassas duas semanas de cumprir os seis anos de prisão domiciliária a que fora condenada pela Junta Militar. A entrada ilegal do norte-americano John Yettaw na sua propriedade originou, na terça-feira, a extensão da pena em 18 meses. A líder da oposição está, assim, impedida de participar nas eleições previstas para 2010. “Yettaw queria ajudar Suu Kyi, mas, na verdade, ajudou a Junta”, afirmou ao Expresso Aung Zaw, editor da revista “The Irrawaddy”, feita por birmaneses no exílio. Membro da Geração 88, o movimento estudantil que, já em 1988, desafiou o regime como nunca antes, diz que “se não fosse o caso Yettaw, um outro qualquer teria sido fabricado para justificar a sua prisão”. Baptizada de Myanmar pelos generais, a antiga Birmânia permanece um enigma.
O VAGABUNDO
John Yettaw, aparentemente, só queria ajudar Aung San Suu Kyi, mas acabou por se tornar o homem mais odiado pelos seus apoiantes. Nascido em Detroit, em 1955, este veterano da guerra do Vietname vivia tomado por fantasmas do passado: stresse pós-traumático, instabilidade familiar — casou quatro vezes —, asma e a angústia decorrente da morte de um filho de 17 anos, num acidente de moto, que lhe fora oferecida pelo pai. Em Maio de 2008, este mormon partiu para a Ásia, para desenvolver pesquisas sobre o perdão e a resiliência, com vista à escrita de um livro. Em Novembro, tentou, pela primeira vez, abordar Suu Kyi. No início deste ano, confidenciou a familiares sentir-se escolhido por Deus para proteger a vida de um “querido líder estrangeiro”. Imbuído nesse espírito missionário, a 3 de Maio, lançou-se ao lago Inya, nadando dois quilómetros até à casa de Suu Kyi. Exausto e com cãibras, passou duas noites à porta da casa, ignorando o pedido de Suu Kyi e das duas criadas para que se afastasse. No percurso de regresso, foi “pescado” pela polícia. Acusado de invasão de zona restrita, foi condenado a sete anos de prisão — quatro de trabalhos forçados. “Nos últimos anos, temos visto várias pessoas como ele a colaborar com o movimento pró-democracia”, diz Aung Zaw. Em 1999, os britânicos Rachel Goldwyn e James Mawdsley tornaram-se famosos. Ela foi detida após cantar temas apelando à democracia e ele por distribuir panfletos contra o Governo. “São loucos e estúpidos. Provocam danos irreparáveis ao movimento. Temo que alguns sejam interesseiros. Querem fama, escrever um livro e visibilidade nos seus países”. Foi assim com James Mawdsley: já escreveu dois livros e candidatou-se a deputado pelos conservadores.
A DAMA
Aung San Suu Kyi estava prestes a ver a luz do dia. A sentença da Junta condenando-a a seis anos de prisão domiciliária cumpria-se a 26 de Maio. Eis senão quando John Yettaw lhe bateu à porta, dando um pretexto oportuno aos militares para continuarem a trancá-la em casa. “Se não fosse o caso Yettaw, um outro qualquer teria sido fabricado para justificar a sua detenção. Foi um golpe político”, diz Aung Zaw. Nos últimos 20 anos, a “Dama de Rangum” — como lhe chamam — viveu 14 em regime de prisão domiciliária. Nascida em 1945 e filha de Aung San — que negociou, com os britânicos, a independência da Birmânia, sendo assassinado em 1947 —, ela emergiu como uma voz contestatária ao regime no âmbito da histórica rebelião estudantil 8888, que começou a 8 de Agosto de 1988 e que culminaria numa repressão policial sangrenta. A 15 de Agosto, numa carta aberta ao Governo, Suu Kyi fez a primeira intervenção política, pedindo a realização de eleições multipartidárias. A primeira prisão domiciliária chegaria quase em Julho de 1989, mas já não foi a tempo de impedir que o seu partido ganhasse as eleições, no ano seguinte. A comunidade internacional solidarizou-se com ela e foram-lhe atribuídos três galardões de vulto em matéria de direitos humanos: os Prémios Rafto e Sakharov em 1990 e o Nobel da Paz em 1991. Budista convicta, Aung San Suu Kyi defende a resistência não-violenta. Essa áurea pacifista combinada com a sua frágil aparência têm-lhe granjeado uma forte simpatia internacional. “Qualquer pessoa rapidamente se apaixona por ela”, diz Aung Zaw. “Ela é uma senhora pequena, mas ‘de ferro’. É muito bonita e magnética: atrai milhares de admiradores, birmaneses e estrangeiros. E pessoas como Yettaw”.
O VILÃO
Than Shwe, o general que preside à Junta desde 1992, tornou-se, por estes dias, alvo de chacota em Myanmar. Momentos após um juiz ter condenado Aung San Suu Kyi a três anos de prisão e trabalhos forçados, o ministro do Interior irrompeu na sala de audiências e anunciou a comutação da pena, decidida por Than Shwe, para ano e meio de detenção domiciliária. Afinal, tratava-se da filha de um herói da independência e havia que “assegurar a paz e a tranquilidade”… Sobrepondo-se à justiça dos tribunais, o general reafirma os seus intentos — impedir a participação de Suu Kyi nas eleições previstas para 2010. Nas últimas eleições que se realizaram no país, em 1990, a Liga Nacional para a Democracia, de Suu Kyi, ganhou com 59% dos votos. Os militares não reconheceram o resultado e não deixaram que ela tomasse posse como primeira-ministra. “Eles são muito espertos, manipuladores e repressivos. Não sairão do poder facilmente. São muito corruptos. Não querem reformar a economia para não partilharem o seu quinhão”, diz Aung Zaw. Também não é segredo que os generais depositam uma confiança cega na astrologia, no ocultismo, na numerologia e no yadaya, uma forma birmanesa de vudu. As datas importantes e os valores monetários não são estipulados sem o parecer dos astrólogos. Em 1989, os generais mudaram o nome do país para Myanmar. Em 2005, transferiram a capital de Rangum para Naypyidaw, construída no interior. A extravagância acentuou o isolamento do regime em relação ao mundo e ao povo. Isso foi evidente quando da passagem do ciclone “Nargis”, em 2008. Protegidos na capital, os generais retardaram a entrada da ajuda humanitária vinda do exterior. Morreram 146 mil pessoas.

O PADRINHO
O Governo da China não se poupa na cobertura diplomática a Myanmar, quase que dando razão a quem se refere ao país como “a 24ª província da China”. Enquanto membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, a China tem vetado condenações maiores ao regime militar. Em contrapartida, faz dinheiro com a venda de armas aos generais e tem um acesso privilegiado aos recursos naturais e ao mercado de Myanmar. Só em 2007, o comércio entre os dois países aumentou 40%. Inversamente, a União Europeia aprovou, na quinta-feira, um novo pacote de sanções. A UE puniu Myanmar, pela primeira vez, em 1990, na sequência da repressão à rebelião 8888. As sanções começaram por um embargo à exportação de armas e foram-se estendendo a outros domínios. Presentemente, há cerca de 500 dirigentes políticos, ou respectivas viúvas, com restrições de circulação e 1207 empresas de madeiras exóticas e pedras preciosas proibidas de exportar para a UE. Mas, apesar da unanimidade dos 27, as sanções a Myanmar têm alguns limites… A França, por exemplo, sempre bateu o pé à inclusão da Total no pacote de empresas a punir. A petrolífera francesa é um forte investidor no campo de Yadana… “Ninguém quer as sanções”, diz Aung Zaw. “Queremos ter prosperidade económica. Mas as sanções são aprovadas devido à natureza deste governo. Temos 2100 prisioneiros políticos e, nas regiões das minorias, registam-se violações aos direitos humanos. Paralelamente às sanções, deverá haver um maior envolvimento diplomático”, conclui. À semelhança de muitos outros dissidentes birmaneses, Aung Zaw vive e trabalha na Tailândia. Ironicamente, é lá também — e não na China — que os generais têm segundas casas.
REACÇÕES À CONDENAÇÃO DE AUNG SAN SUU KYI
Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos: “Esta decisão injusta recorda os milhares de presos políticos na Birmânia a quem foi negada liberdade por desejarem um governo que respeite direitos e aspirações”
Gordon Brown, primeiro-ministro britânico: “É uma sentença puramente política que visa impedi-la de participar nas eleições planeadas pelo regime para o próximo ano”
Presidência da França: “O Presidente exige que a União Europeia adopte novas sanções contra o regime birmanês, que deverão visar os recursos de que lucra, nas áreas da exploração da madeira e dos rubis”
Luís Amado, ministro português dos Negócios Estrangeiros: “Dada a natureza do regime, nada nos fazia esperar outra decisão”
Jiang Yu, ministro dos Negócios Estrangeiros da China: “Relativamente a esse caso doméstico, a comunidade internacional deveria respeitar totalmente a soberania judicial de Myanmar”
CRONOLOGIA
1945 — A 19 de Junho, em Rangum, nasce Aung San Suu Kyi
1948 — A Birmânia torna-se independente do Reino Unido
1962 — Um golpe militar depõe o governo do nacionalista U Nu
1988 — Em Agosto, protestos estudantis contra a opressão política contagiam o país. A repressão policial provocou 3000 mortos. Uma Junta passa a governar o país. A lei marcial é imposta, dias antes da criação da Liga Nacional para a Democracia (LND). Suu Kyi é secretária-geral
1989 — A Junta declara a lei marcial e muda o nome do país para Myanmar. Aung San Suu Kyi é detida por “ameaça ao Estado”
1990 — A LND vence as eleições de 27 de Maio, com 59%. A Junta impede Suu Kyi de tomar posse como primeira-ministra
1991 — Aung San Suu Kyi ganha o Prémio Nobel da Paz
1992 — O general Than Shwe torna-se o líder da Junta militar
1995 — Aung San Suu Kyi é libertada da prisão domiciliária
2000 — A Prémio Nobel volta a ser colocada em prisão domiciliária, por violar a proibição de viajar
2002 — Aung San Suu Kyi é libertada
2003 — Apoiantes de Suu Kyi são atacados. Suu é posta em “custódia protectora”
2006 — O Governo transfere a capital desde Rangum para Naypyidaw, uma cidade construída de raiz
2007 — Em Agosto, o encarecimento dos combustíveis origina as maiores manifestações desde 1988. Os monges budistas associam-se — Revolução de
Açafrão. Os protestos adoptam slogans pró-democracia. Suu Kyi é vista à porta de casa, pela primeira vez desde 2003. A polícia reprime com violência
2008 — Em Maio, o ciclone “Nargis” provoca inundações no delta do Irrawaddy. Morrem 146 mil pessoas. A Junta estende a prisão domiciliária de Suu Kyi
2009 — A LND diz que participará nas eleições de 2010, se a Junta libertar os presos políticos, mudar a Constituição e permitir
Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de agosto de 2009

