Desarmar o ensino

Nas escolas israelitas e palestinianas, que reabrem esta semana, os mesmos factos são interpretados de forma diferente. Uns manuais inovadores agora publicados tentam promover a reconciliação

Na coluna da esquerda, a narrativa israelita. À direita, a interpretação palestiniana

Num pequeno número de escolas israelitas e palestinianas, a conturbada história entre os dois povos é ensinada através de manuais sui generis. Cada página está dividida em três colunas: na da esquerda, explica-se a versão israelita de um determinado facto histórico; na da direita, o ponto de vista palestiniano sobre o mesmo acontecimento; a coluna do meio é deixada em branco para que os alunos façam anotações.

“Nesse espaço, encontramos todo o género de comentários, desde alunos que têm uma atitude de rejeição e de completa negação em relação ao outro até àqueles que tentam encontrar semelhanças e diferenças entre as duas narrativas”, afirmou ao Expresso Sami Adwan, professor na Universidade de Belém (Cisjordânia) e um dos fundadores do Instituto de Investigação da Paz no Médio Oriente (PRIME), a organização que elaborou os manuais. “Um dos objectivos deste projecto é levar as crianças israelitas e as palestinianas a aprenderem a narrativa histórica do outro. A educação tem sido usada para perpetuar o conflito. Queremos torná-la parte da solução”, diz.

Manual na língua inglesa

Nos manuais oficiais israelitas, os imigrantes judeus que rumaram à Palestina ainda antes da criação de Israel são chamados “pioneiros”; nos palestinianos, são “gangues” e “terroristas”. Por outro lado, poucos estudantes israelitas sabem que na sequência da criação do Estado de Israel (1948), cerca de 750 mil palestinianos foram expulsos dessas terras e tornaram-se refugiados (ver no fim). Da mesma forma, o Holocausto é ignorado no currículo palestiniano. De uma maneira geral, quem é terrorista para uns é herói para os outros.

No ano lectivo passado, cerca de 30 professores, israelitas e palestinianos, usaram os manuais do PRIME. A adesão dos docentes ao projecto é voluntária e decorre à revelia dos respectivos ministérios da Educação. “Nós abordamos alguns professores e tentamos cativá-los para o projecto. Outros são abordados por colegas e outros ainda contactam-nos após ouvirem falar do projecto nos media”, explica Sami Adwan. “Tentamos recrutar os professores directamente. Não solicitamos aprovação às escolas ou aos ministérios para que os manuais façam parte dos currículos oficiais”. Segundo o palestiniano, seria pura perda de tempo, uma vez que não há condições políticas para que a resposta fosse positiva…

“Recordo-me de um professor palestiniano que, um dia, foi mandado parar num checkpoint israelita e sujeito a situações humilhantes durante duas horas. Depois dessa experiência abandonou o projecto”, diz. Nas aulas, a tarefa dos professores chega mesmo a ser irreal… Como explicar aos alunos que ‘o outro’ é igualmente sofredor ou é uma vítima à luz da História quando a realidade quotidiana o apresenta como o ocupante ou o terrorista? “Os alunos perguntam aos professores: ‘Porque nos ensina a narrativa do inimigo? Está a trair a nossa identidade nacional…’ Alunos e pais questionam a honestidade dos professores. Não é nada fácil, sobretudo porque estamos a lidar com emoções.”

Manual na língua hebraica

Até ao momento, o PRIME já publicou três manuais, que resultaram do trabalho conjunto de docentes e historiadores israelitas e palestinianos. “Para alguns professores palestinianos, é muito duro escrever as narrativas em conjunto com os israelitas, e vice-versa. Neste projecto, as pessoas sentam-se lado a lado e trabalham de uma forma simétrica. É muito diferente da política ou do quotidiano da rua, que são realidades completamente assimétricas…”

Sami Adwan admite sofrer pressões políticas no sentido de desistir do projecto, mas elege o financiamento como o grande desafio à sua continuidade. Um ano de actividades custa entre 250 e 300 mil dólares (entre 175 e 210 mil euros) e todas as ajudas são bem-vindas. A 20 de Julho passado, o PRIME foi galardoado — juntamente com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados — com o Prémio Internacional Calouste Gulbenkian. “Estamos muito gratos! Este dinheiro [50 mil euros] vai ajudar-nos muito no próximo ano, na organização de reuniões e na elaboração dos livros.”

Manual na língua árabe

Criado para aproximar israelitas e palestinianos, este projecto está a servir de inspiração noutras zonas em conflito. Na Macedónia, a Universidade de Skopje publicou um manual de história albano-macedónio seguindo o mesmo método. Sami Adwan espera que, um dia, essa seja a regra nas escolas israelitas e palestinianas.

ISRAEL MANDA APAGAR ‘NAKBA’

Em Julho, o Ministério da Educação de Israel ordenou que a palavra nakba fosse apagada dos manuais escolares usados pelas crianças árabes. Em árabe, nakba significa catástrofe e é desta forma que os habitantes da Palestina se referem à guerra de 1948 que se seguiu à expulsão de 750 mil palestinianos das suas terras e à independência de Israel. “A integração desta ideia nas aulas dos israelitas árabes (um quinto da população), há uns anos, constitui um erro que será corrigido nos próximos manuais”, afirmou o ministro Gideon Saar. “Não há razão para falarmos da criação de Israel como uma catástrofe. O objectivo do sistema educativo não passa por negar a legitimidade do nosso Estado nem por promover o extremismo entre israelitas e árabes”.

Artigo publicado no Expresso, a 12 de setembro de 2009