Uma mulher incómoda

Tem a cabeça a prémio no Afeganistão. Malalai Joya veio a Portugal dizer que a libertação do seu país é “uma grande mentira”

Malalai Joya de visita a uma escola feminina, na província de Farah, oeste do Afeganistão, em 2007 AFGHANKABUL / WIKIMEDIA COMMONS

Dizem que é a mulher mais corajosa do Afeganistão. Chama-se Malalai Joya, tem 31 anos e o facto de não se calar torna-a incómoda dentro e fora do seu país. “O meu povo está encurralado. De um lado, estão os criminosos da Aliança do Norte e os bárbaros dos talibãs que nos matam em terra; do outro, as forças dos Estados Unidos e seus aliados que nos bombardeiam do ar. Se as tropas estrangeiras retirarem, ficamos com um inimigo a menos”, afirmou em entrevista ao “Expresso” esta deputada afegã, suspensa desde 2007.

Contrariamente ao que se quer fazer crer no Ocidente, “a ocupação não libertou o povo, mas antes os senhores da guerra. Antes, eles fugiam dos talibãs que nem ratos; agora, transformaram-se em lobos”. Homens como Mohamad Fahim e Karim Khalili, destacados senhores da guerra, serão vice-presidentes se Hamid Karzai for reconduzido na presidência do país — a segunda volta das eleições será a 7 de Novembro.

Essa eventualidade não torna Malalai apoiante de Abdullah Abdullah, o rival de Karzai. “São iguais! Ambos servirão a Casa Branca. No Afeganistão, costumamos dizer: é o mesmo burro com outra sela”.

Oito anos de guerra não acabaram com os talibãs, que continuam activos em 80% do território, e transformaram o país num narco-estado. Quase erradicado durante a governação talibã, o cultivo da papoila aumentou 4500%… No léxico afegão, a expressão “poppy palaces” (palácios da papoila) passou a designar as excêntricas mansões que proliferaram em Cabul e que se estima terem sido financiadas com dinheiro do narcotráfico.

“O Afeganistão produz 93% do ópio mundial. Foi o presente dos EUA e da NATO ao meu país…”, ironiza. “Um dos principais traficantes é Ahmad Wali Karzai, irmão do Presidente!”.

Há muito que Malalai perdeu o medo de falar. Em 2006, no Parlamento, pôs o dedo na ferida ao afirmar que havia ali muitos deputados com “as mãos sujas de sangue do próprio povo”. Foi suspensa, ameaçada de morte e de violação e mergulhou na clandestinidade. Num país em que as mulheres são obrigadas a cobrirem-se da cabeça aos pés, a burqa passou a ser um aliado, protegendo-a quando sai à rua.

Muda de casa com frequência — já a tentaram matar por quatro vezes — e enceta uma aventura sempre que quer ir ao Ocidente divulgar a sua mensagem. Sem passaporte diplomático, cruza a fronteira de carro, para apanhar um avião no Paquistão.

No passado fim-de-semana, esteve em Portugal a convite do Bloco de Esquerda, para sessões de esclarecimento em Lisboa e no Porto. Falou de pobreza, de corrupção, de como se compra um bebé afegão por dez dólares (€6,7) e do pesadelo que é ser mulher no seu país. “Matar uma mulher custa-lhes tanto como matar um pássaro. As violações, os raptos, os ataques com ácido e a violência doméstica estão a aumentar muito”.

Em 2005, Malalai fez história ao tornar-se o membro do Parlamento mais jovem de sempre. Mulher e nova, servia na perfeição a ideia de que a guerra libertara as afegãs. Para provar o contrário, invoca uma lei recentemente aprovada, em tudo consentânea com a era talibã, visando as xiitas. Num artigo, proibe-se as mulheres de saírem de casa para trabalhar ou simplesmente ir ao médico sem a autorização dos maridos. “Apesar da condenação internacional, Karzai assinou o diploma”,

Malalai também não poupa Barack Obama por este querer fazer passar por ‘moderados’ o mullah Omar (líder talibã) e Gulbuddin Hekmatyar (líder mujahedin). “Está claro para o povo que os EUA não tencionam destruir os talibãs e a Al-Qaeda. Vão mantendo a situação perigosa para continuarem no Afeganistão em nome dos seus interesses estratégicos e económicos”. Por isso, Malalai sonha com o dia seguinte à saída das tropas estrangeiras. “Muitos dizem que depois virá a guerra civil. E que temos agora?”

ELEIÇÕES & SUBORNOS

  • A 7 de Novembro, Hamid Karzai e Abdullah Abdullah, seu antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, disputam a segunda volta das presidenciais
  • O Governo italiano negou ter subornado os talibãs para que não alvejassem as suas tropas. Segundo o “Times”, quando os franceses renderam os italianos em Sarobi, foram surpreendidos pela violência. Dez franceses morreram num único incidente
  • O Afeganistão ocupa o 181º e penúltimo lugar do Índice de Desenvolvimento Humano 2009 das Nações Unidas
  • Um quarto dos lugares do Parlamento afegão (68) está reservado às mulheres
  • Site oficial de Malalai Joya: www.malalaijoya.com
“A Jóia Afegã” foi publicado em Portugal, em 2010, pela editora Quidnovi

Artigo publicado no Expresso, a 24 de outubro de 2009