Em 1960, a ONU consagrou o princípio da autodeterminação dos povos. Recentemente, uma conferência em Argel denunciou “as novas formas de colonialismo” do século XXI. Reportagem na Argélia

“No Gana, 70% dos trabalhadores agrícolas são mulheres. Elas são as grandes contribuintes para a economia do país. Porém, isso não se reflete nos centros de poder”. Por lei, 10% dos 230 lugares no Parlamento do Gana deveriam ser ocupados por mulheres, mas a quota não preenche.
Samiya Nkruma falava durante um pequeno-almoço de trabalho, no âmbito da Conferência Internacional de Argel, comemorativa do 50º aniversário da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais (Resolução 1514, da Assembleia Geral da ONU), que se realizou a 13 e 14 de dezembro.
Na plateia, pontuavam antigos chefes de Estado, como o argelino Ben Bella, nacionalistas do passado e do presente, como Marcelino dos Santos (Frelimo) e Mohamed Abdelaziz (Frente Polisário), dirigentes de organizações internacionais, como Amr Mussa (Liga Árabe), e ilustres da sociedade civil, como a Prémio Nobel da Paz guatemalteca Rigoberta Menchú Tum e o antigo futebolista argelino e embaixador da UNESCO Rabah Madjer. O Expresso participou a convite do Governo argelino.

Cinquenta anos após a aprovação da resolução – que reconhece que “todos os povos têm o direito à autodeterminação” —, mais de 100 territórios viram concretizado o sonho da emancipação colonial. O mapa-mundo redesenhou-se, mas, no Palácio das Nações de Argel, questionou-se a qualidade das independências…
“Será que em pleno século XXI, os Estados soberanos são verdadeiramente independentes?”, interrogou-se a ex-Vice-Presidente do Vietname, Ngueyen Thi Binh. “A forma de exploração cínica do passado é substituída hoje por outra dominação subtil, não menos pérfida: o domínio tecnológico, económico, comercial…”
Escutados com especial atenção, ex-Presidentes africanos revezaram-se no púlpito discorrendo sobre os principais desafios dos países menos desenvolvidos. “Temos de analisar a qualidade das nossas lideranças”, afirmou o sul-africano Thabo Mbeki. “Não podemos continuar cativos dos imperativos e dos interesses económicos dos outros.” Já o nigeriano Olusegun Obasanjo referiu-se à tecnologia como “um novo instrumento de dominação e exploração”.
Porém, seria o zambiano Kenneth Kaunda quem mais primou pela originalidade. Recuperando uma célebre música que o próprio compôs em tempos para mobilizar o povo no combate a uma das maiores epidemias africanas, Kaunda subiu à tribuna e, com voz afinada e palmas a compasso, cantou: “Devemos lutar e conquistar a sida” (“We shall fight and conquer aids”).

16 TERRITÓRIOS POR DESCOLONIZAR
Segundo a ONU, subsistem 16 territórios por descolonizar: um na Europa (Gibraltar), outro em África (Sara Ocidental) e os restantes 14 no Atlântico, Caraíbas e Pacífico. Na primeira década do século XXI, apenas Timor Leste acedeu à independência (2002), após realizar um referendo de autodeterminação (1999).
Em Argel, a questão do Sara — juntamente com a da Palestina — quase que monopolizou as discussões. Francesco Bastaglia, ex-enviado especial da ONU para o território, disparou críticas sobre o modelo de abordagem internacional à questão sarauí: “Os acontecimentos recentes revelam que não está a resultar. Há muita deferência em relação ao papel da ONU. A União Africana tem de reclamar um papel mais igualitário”.

PORQUÊ TIMOR E NÃO O SARA?
O português Pedro Pinto Leite, da Plataforma Internacional de Juristas por Timor-Leste, traçou as semelhanças entre os casos sarauí e timorense. “Não há qualquer alternativa à autodeterminação”, concluiu.
Longe de qualquer envolvimento apaixonado com estas questões, Abdul G. Koroma, um dos 15 juízes do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), apontou o caminho a seguir: “Há que pedir à Assembleia Geral e ao Conselho de Segurança da ONU que apliquem as decisões do TIJ sobre o Sara (1975) e sobre a Palestina (2004)”. O juíz serraleonês defendeu que o Sara nunca foi parte integrante de Marrocos nem da Mauritânia. Impõe-se, por isso, duas conclusões: Marrocos é o ocupante ilegal; Espanha é a responsável pela descolonização do território.
“Da mesma forma que os muçulmanos vão a Meca, os movimentos de libertação vão a Argel”, proclamou o ministro sarauí dos Negócios Estrangeiros, Uld Salek. A capital argelina é um marco na história dos movimentos de libertação e vários conferencistas prestaram-lhe homenagem. O jornalista norte-americano David Ottaway, que aterrou em Argel em 1962 para cobrir, para o “The New York Times” e para a “Time”, “a confusão” aquando da independência, recordou a passagem de Humberto Delgado pela capital argelina. O “general sem medo” seria o único português invocado pelo plenário. Mas outros políticos portugueses viveram exilados na Argélia: Manuel Alegre e, mais longínquo no tempo, o ex-Presidente Manuel Teixeira Gomes, que acabaria por falecer em Bougie (Cabília), em 1941.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de dezembro de 2010. Pode ser consultado aqui





