A bonança, depois da tempestade

Após dois dias de violência entre facões anti e pró-Mubarak, a praça Tahrir recuperou a tranquilidade. Mas na “sexta-feira da partida”, Mubarak não partiu. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

Hosni Mubarak não foi embora, como os manifestantes pediram na manifestação da “sexta-feira da partida”. Mas a sua continuação no poder deixou de ser uma opção. “Deve haver um processo de transição. E isso deve começar agora”, afirmou ontem Barack Obama, Presidente dos EUA. A seguir a Israel, o Egito é o país que mais ajuda recebe dos EUA — 1,5 mil milhões de dólares no total (€1,1 mil milhões), 1,3 mil milhões (€950 milhões) para fins militares — o que atesta da sua importância para os norte-americanos.

Como habitualmente, a praça Tahrir encheu-se de manifestantes e respirou um ambiente “domingueiro” — nos países muçulmanos, a sexta-feira é o último dia do fim-de-semana. Muitas famílias circulavam tranquilamente. Entre os manifestantes, havia centenas de feridos da violência vivida nos dois dias anteriores, entre fações anti e pró-Mubarak.

Palavra aos feridos 

Cabeças ligadas, braços ao peito, rostos inchados, expressões de grande cansaço. Em vários pontos da praça, pequenos hospitais improvisados continuavam a prestar assistência aos feridos, sempre que uma dor apertava ou o curativo precisava de ser mudado. Oito pessoas morreram nos confrontos entre fações: “Morreram de todo o tipo de ferimentos: balas, pedradas, gases…”, diz um homem, que está de serviço num desses “hospitais”.

Em conversa com alguns feridos, consegue-se perceber melhor o contexto em que deflagrou essa violência. “Eu apanhei um miúdo que nos estava a apedrejar. Ele estava no cimo daquele edifício. Entramos lá, apanhámo-lo e batemos-lhe. Ele disse que recebeu 10 libras egípcias (LE) (€1,2) para atirar pedras. Outros disseram que receberam 50 LE (6,2)”, conta Mohamed Fahti, com a cabeça cheia de adesivos.

“Mubarak usou esta gente contra os manifestantes. Outro que foi apanhado tinha 300 LE (€37) no bolso, em notas novinhas em folha. E a guarda presidencial também esteve envolvida. Capturamos duas das motas que eles costumam usar.”

Um ator na ‘manif’

Sexta-feira foi também o dia aproveitado por destacadas figuras da sociedade egípcia marcarem presença na praça. Amr Moussa (Presidente da Liga Árabe), Ayman Nour (líder do partido El-Ghad, que desafiou Mubarak nas eleições de 2005) — ambos possíveis presidenciáveis —, alguns “sheiks”, outras figuras políticas e da sociedade civil, como Amr Waked, o ator mais famoso do Egito, que irrompe pela praça agarrado ao seu iPad e rodeado por uma multidão de fãs que o quer fotografar.

“Vim aqui para pedir a alteração do sistema de poder no Egito, que está nas mãos de uma única pessoa. Estamos todos fartos disto”, diz ao Expresso o ator. “Quero uma distribuição de poder, quero que as autoridades possam ser responsabilizadas e que o cidadão da rua possa questionar e beneficiar disso.”

O exército abandonara a sua posição de passividade que tinha nos dias anteriores e começou a colaborar com os manifestantes nos “checkpoints” de segurança, nas entradas da praça, que desde ontem estão protegidas com arame farpado.

Catapulta artesanal

Na entrada junto à ponte Qasr al-Nil, os manifestantes construíram uma catapulta com uma barra de madeira e, nas pontas, duas grandes pedras e um cesto plástico onde colocar as pedras. A praça Tahrir parece uma fortaleza. Um soldado pede o passaporte para controlo: “Bem vinda ao Egito!”, diz.

Ao longo do dia, em apenas duas ocasiões registaram-se desacatos, em duas ruas adjacentes à praça. Numa delas, um jovem, alegadamente pró-Mubarak, foi evacuado por soldados. Ia meio despido e com a cabeça a jorrar sangue. Esteve a um passo de ser linchado.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui

DOSSIÊ CRISE NO EGITO NO SITE DO “EXPRESSO”

Será hoje que Mubarak abandona o poder?

Os manifestantes anti-Mubarak organizam hoje mais uma demonstração de força. Esperam que o Presidente abandone o poder de vez. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Baião

Depois da “manifestação do milhão”, o movimento de contestação a Hosni Mubarak vai organizar, esta sexta-feira, a “marcha da partida”. Com mais esta demonstração de força e unidade, os manifestantes esperam que Hosni Mubarak dê o passo final para sair do poder.

Nas ruas de acesso à praça Tahrir, está tudo organizado para conter eventuais tentativas de infiltração por parte de manifestantes pró-Mubarak. Na rua que liga a praça à ponte Qasr el-Nil, perto da sede da Liga Árabe, foram montadas barricadas com tábuas de madeira, chapas em alumínio e todo o tipo de estruturas que possam ajudar à criação de uma barreira defensiva.

Atrás dessas barricadas, há pequenos montes de pedras, para serem usadas como “munições” na eventualidade de um ataque. À frente das barricadas, os manifestantes despejaram grandes quantidades de lixo, a toda a largura da estrada, para “saudar” — de forma provocatória — os manifestantes pró-Mubarak que se aventurem ao seu encontro.

checkpoint foi guardado durante a noite por dezenas de pessoas, com capacetes brancos na cabeça. Hoje vão voltar a dizer a Mubarak, a plenos pulmões, que está na hora de se ir embora.

Os manifestantes esperam que a manifestação de hoje faça Mubarak sair do poder JORGE SIMÃO

De acordo com a edição de ontem, quinta-feira, do “The New York Times”, os Estados Unidos discutem com responsáveis egípcios uma possível partida imediata do presidente Hosni Mubarak e a transferência do poder para um governo de transição dirigido pelo Vice-Presidente Omar Suleimane.

Embora Mubarak recuse apresentar demissão do cargo que ocupa há quase 30 anos (ver vídeo), responsáveis norte-americanos e egípcios estudam um cenário em que Suleimane, apoiado pelos militares, iniciaria imediatamente um processo de reforma constitucional, acrescenta o “The New York Times”.

O diário norte-americano cita responsáveis da administração do presidente norte-americano Barack Obama e diplomatas árabes.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui

DOSSIÊ CRISE NO EGITO NO SITE DO “EXPRESSO”

Intifada no Cairo

Fações pró e anti Mubarak confrontaram-se esta tarde no centro do Cairo, perante a passividade do exército egípcio. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

Cedo se adivinhou que ia haver problemas. Por volta do meio-dia, grupos compactos de pessoas empunhando fotografias do Presidente, bandeiras do Egito e gritando “Mubarak sim!” começaram a dirigir-se à praça Tahrir, que, nos últimos dias, tem funcionado como o quartel-general do movimento de contestação a Hosni Mubarak.

A reunião com os opositores ao Presidente foi rápida. Mesmo ao lado do Museu Egípcio, as duas facções encontraram-se face-a-face e, separadas por escassos metros, começaram a arremessar pedras ininterruptamente.

À retaguarda, no campo dos opositores a Mubarak, não tardou a organizar-se o apoio à linha da frente. Havia pessoas a fragmentarem grandes pedras em pedaços mais pequenos e outras a transportá-las até aos que estavam na frente. Num canteiro, improvisou-se um hospital de campanha. Os feridos não tardaram a aparecer, pelo próprio pé, a cambalear, apoiados no ombro de outro ou levados em braços.

Cabeças rachadas, olhos feridos, lábios rasgados, tudo era tratado com água, algodão e mercuriocromo JORGE SIMÃO

“Mubarak, estás feliz?”

Cabeças rachadas, olhos feridos, lábios rasgados, tudo era tratado com água, algodão e mercuriocromo. “Mubarak, estás feliz agora?”, gritava um ferido.

Nas bermas, as pessoas procuravam todo o tipo de superfície em ferro — tapumes das obras, barreiras ao trânsito ou as bases dos candeeiros públicos — para baterem nelas com pedras compassadamente, provocando uma sensação semelhante ao rufar do tambor antes da guerra. “É uma mensagem para Mubarak. Só saímos daqui quando ele se for embora”, explicava um jovem.

“Eles podem gostar de Mubarak e também têm o direito de se manifestar. Mas porque é que vieram ao nosso encontro? Porque não escolheram outro sítio?”, questionava-se um jovem. “Mubarak quer o caos!” Num momento particularmente dramático, homens montados em cavalos e camelos, vindos do lado pró-Mubarak, irromperam pela multidão quase chegando à praça Tahrir.

“Não tenho provas do que lhe vou dizer, mas aqueles homens têm falsa identidade. São os prisioneiros libertados por Mubarak, contratados para causar agitação”, dizia um jovem. Ao lado, outro acenava: “Sou licenciado em Física. Sei manifestar-me de forma civilizada, não preciso de atirar pedras. Mubarak está a tentar que nos matemos uns aos outros. Foi ele que mandou para aqui estes terroristas.”

Mubarak, o amado

À margem dos confrontos, algumas gruas começam a remover as carcaças de carros da polícia queimados pelos manifestantes anti-Mubarak, que ali estavam desde a semana passada. Um jovem com lágrimas nos olhos diz: “Tantas pessoas morreram por nada. Vê o que está ali a acontecer? Estão a limpar as ruas para que amanhã tudo volte à normalidade, como que se nada se tivesse passado”.

Entre os manifestantes pró-Mubarak, muitos diziam “amar” o “rais”. Outros pareciam apenas ansiosos pelo regresso do país à normalidade. “A economia está em baixo. Protestar sim, mas não deitem o país abaixo. Quem assume a responsabilidade por tudo isto?”, questionava um apoiante do Presidente. “Eles têm direito a manifestar-se, mas Mubarak já disse que se vai embora. Vamos seguir com a vida agora”, dizia outro.

Um homem vestido com fato e gravata e um pin da Universidade do Cairo na lapela dizia: “Todos os egípcios que têm formação gostam de Mubarak. E não gostam dos grupos islâmicos. Com Mubarak, o país desenvolveu muito.” Outro acrescentava: “É impossível agradar a 85 milhões de egípcios. Mas antes disto que se está a passar, pelo menos o Egito era seguro”.

Tudo acontecia perante a passividade dos militares JORGE SIMÃO

Jornalistas como espiões

Tudo acontecia perante a passividade dos militares cujos tanques, à semelhança dos dias anteriores, continuavam estacionados nas ruas adjacentes à praça. Hoje, com uma nuance: em vez de estacionados na horizontal, fazendo com que o acesso à praça Tahrir fosse feito a conta gotas, hoje, estavam paralelos à rua, ajudando à fluidez da multidão. “Está a ver como estão os tanques? Porque não estão atravessados como nos outros dias?”, apontava um jovem.

Ao nono dia de manifestações no Cairo, os jornalistas tornaram-se subitamente alvo de desconfiança, dos dois lados. “O que estão aqui a fazer? Limitem-se a relatar os factos”, insinuava um manifestante pró-Mubarak à passagem da reportagem do Expresso. “Espiões”, gritava outro.

Entre os opositores a Mubarak, o acolhimento que caracterizou os dias anteriores — dadas as dificuldades de comunicações, os jornalistas eram muito procurados pelos manifestantes na esperança de transmitirem a sua mensagem para o exterior — começou a abrir algumas brechas.

Um jovem tentou roubar o bloco de notas da reportagem do Expresso e dois outros tentaram impedir o fotógrafo do Expresso de aceder à linha da frente dos confrontos. Subitamente, cada repórter começou a ser olhado por alguns manifestantes como agentes ao serviço de Mubarak.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui

DOSSIÊ CRISE NO EGITO NO SITE DO “EXPRESSO”

Objetivo: um milhão de pessoas na praça Tahrir

Manifestantes egípcios querem reunir hoje um milhão de pessoas na praça Tahrir. O desafio a Mubarak sobe a fasquia como nunca antes. Reportagem no Egito, com fotos de Jorge Simão

A noite vai ser longa na praça Tahrir. Ao escurecer, nos espaços verdes, foram montadas tendas de campismo, onde alguns milhares de pessoas se preparam para pernoitar. Terça-feira será um dia importante para o sucesso do movimento de contestação ao Presidente Hosni Mubarak: os manifestantes querem reunir na praça um milhão de pessoas.

Por indicação do Governo os comboios estão paralisados. A medida visa impedir que afluam à capital egípcia pessoas vindas de todo o país. “Estão enganados”, diz um manifestante. “Não só vamos conseguir juntar um milhão nesta praça, como um milhão em muitos outros sítios do Egito.”

Com as comunicações quase totalmente cortadas — a única operadora de Internet a funcionar foi silenciada esta noite e os sms não chegam ao seu destino —, os manifestantes empenham-se no passa a palavra para organizar as ações de protesto.

Uma jovem com a voz que mal se ouve, gasta pelas palavras de ordem, explica o que está combinado: “Amanhã, encontramo-nos aqui às 9h00. Às 11h00 partimos até ao edifício da televisão pública. E depois seguimos para a residência presidencial, em Habtin. Se o Exército não nos deixar passar é porque não quer a mudança”.

Viver na praça

Entre as tendas, um mar de pessoas conversa tranquilamente, lê o jornal ou simplesmente dormita. Convidam os jornalistas a juntarem-se aos piqueniques improvisados e desfiam sem se cansarem as suas razões de queixa em relação ao regime de Mubarak.

“Eu vivo aqui há três dias”, diz Mohamed, um médico de 40 anos. “O Governo tenta fazer truques, dizendo que há uma evolução, mas nós não acreditamos nisso.” As pessoas mostram-se indiferentes às alterações governativas promovidas por Mubarak. Dizem que só haverá verdadeira mudança quando ele cair.

Dir-se-ia que o “ensaio geral” para a megamanifestação de terça-feira correu bem. Os caças da Força Aérea que ontem voaram sobre a praça de forma ameaçadora não apareceram — apenas um helicóptero sobrevoou quase ininterruptamente o local. Tanques do Exército continuam estrategicamente estacionados nas ruas de acesso à praça.

A Polícia continua desaparecida e os populares dão mostras de estarem a lidar melhor com as ameaças de assalto às suas casas, que nasceram após a Polícia abandonar as esquadras e deixar à solta centenas de presos.

“Ontem tentaram atacar a minha casa”, conta Abrahman, funcionário do Banco Nacional do Egito. “A minha mulher estava sozinha em casa. Mas os meus irmãos e os meus vizinhos protegeram-na”. Abrahman vive na praça desde sexta-feira.

Um homem com uma fotografia de Mubarak, pintada com um pequeno bigode preto e com a legenda “o novo Hitler”, mostra-se confiante: “Isto é uma questão de tempo. Estamos muito seguros disso. Vai ser um dia importante.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de fevereiro de 2011. Pode ser consultado aqui

DOSSIÊ CRISE NO EGITO NO SITE DO “EXPRESSO”