NATO acelera formação de tropas locais. Mas entre os recrutas pode haver rebeldes. Reportagem no Afeganistão
“Está a ver aquela montanha? Os talibãs costumam disparar lá de cima.” A meio caminho entre Cabul e Jalalabad, Said Muhammad aponta para o topo de um desfiladeiro, igual a tantos outros que ficaram para trás. “E está a ver aquela viatura?”, aponta para o que resta de uma carrinha queimada. “Passei aqui quando estava a ser atacada. Estive seis horas sob fogo”, diz este pashtune natural de Kunar, que gere uma escola na província de Nangarhar, junto ao Paquistão.
Com apenas uma via em cada sentido os 150 km de estrada entre Cabul e Jalalabad são o paraíso dos insurgentes. Diariamente, passam centenas de camiões de mercadorias que abastecem os 150 mil militares estrangeiros e são um alvo tentador para quem se opõe à reconstrução do Afeganistão na era pós-talibã.
“Havia de ver esta estrada há uns seis anos. Era só terra e buracos. Demorávamos 10 horas a fazer o mesmo percurso”, continua Said. Desde 2002, a coligação internacional já pavimentou 2900 km de estradas e melhorou outros 7000 km. O asfalto facilita a circulação, diminui distâncias e, acima de tudo, dificulta a colocação de explosivos artesanais sob montes de pedras. lixo ou animais mortos.
“As estradas do Afeganistão são pedregosas, acidentadas, poeirentas, difíceis de percorrer. Não podemos ter pressa. Até nisso se assemelham ao processo de crescimento das forças de segurança afegãs”, diz o general Joseph Blotz, porta-voz da Força Internacional de Assistência à Segurança (ISAF).
Até 2014, a NATO quer formar 400 mil militares e polícias afegãos. Os EUA gastam com o programa cerca de 12 mil milhões de dólares por ano [8,2 mil milhões de euros]; Portugal contribui com equipas de instrutores. Durante seis meses, o capitão Fausto Campos chefiou a equipa portuguesa de formação e mentoria no Centro de Treino Militar de Cabul. Sentiu na pele a pressão “das datas e dos números”. “Quando me reunia com os norte-americanos dizia-lhes: ‘Preciso de armas, de rádios…’ Eles respondiam: ‘Ok, ok. Então e quantos vais formar e até quando?”
Comandar em casa e no exército
Quase todos os dias há ações de recrutamento no país. Os homens entre os 16 e os 35 anos, oriundos das áreas rurais, são o público-alvo. Entre os critérios a cumprir pelos candidatos estão exames ao consumo de narcóticos e a apresentação de duas cartas de anciãos. atestando a identidade do recruta, a sua vontade em servir no exército e de honrar a sua aldeia e tribo.
Integrar as forças de segurança é motivador para a maioria dos afegãos. Em províncias como Helmand e Kunduz, os recrutas ganham 240 dólares (163 euros) por mês. Em Cabul e Herat, a tabela fixa-se nos 210 dólares (143 euros). Nas regiões mais pacíficas paga-se menos. Ainda assim, a taxa de deserção nas forças afegãs é preocupante: 27% no exército e 12% na polícia.
“Os afegãos trabalham para o exército mediante contratos”, explica o general Qadhamsha, comandante da Kabul Capital Division que, em julho, receberá da NATO a responsabilidade pela segurança na capital. “Talvez as famílias não queiram que eles continuem ou talvez eles queiram regressar às terras para casar. Outros desistem porque são mandados para zonas onde os combates são muito duros”, diz.
“Queremos que eles sejam soldados, mas eles querem ser oficiais. Comandam em casa e querem comandar no exército.” O general afegão não o referiu, mas, segundo a ISAF, os talibãs pagam mais por mês: entre 250 e 350 dólares (170 e 238 euros).
Paralelamente às deserções e à iliteracia — cerca de 80% dos recrutas não sabem ler nem escrever —, outro fenómeno tem revelado a vulnerabilidade das forças afegãs: os infiltrados. Na quarta-feira, oito militares e um civil, todos norte-americanos, foram mortos por um militar afegão durante uma discussão num centro de formação da Força Aérea, no aeroporto de Cabul.
Interessados em semear a dúvida entre as forças da coligação com o fantasma dos “agentes adormecidos” — militantes infiltrados que um dia podem atacar —, os talibãs reivindicaram o ataque. A ISAF investiga o que terá levado o afegão a alterar o comportamento.
O segredo é passar despercebido
Embora só esteja há três meses no Afeganistão, o capitão Artur Mesquita sabe o que pode despertar atitudes agressivas nos afegãos. À entrada de Camp Warehouse, onde está aquartelado o contingente português, observa a saída de uma coluna de humvies franceses. O veículo da frente atravessa-se na estrada para que os restantes passem e a coluna siga compacta. Com metade do corpo fora do veículo, o apontador direciona a metralhadora na direção dos automóveis civis imobilizados, alguns com famílias dentro. O português revolta-se com o que vê: “Não sabem conduzir. Cortam o trânsito, gritam, apontam armas às pessoas… A forma mais fácil de trabalhar aqui é passar despercebido.”
Parte do trabalho do capitão Mesquita passa por andar, à civil, entre a população para captar sensibilidades e ajustar a mensagem da NATO ao contexto sócio-cultural. “No início, os afegãos aceitavam melhor a presença da ISAF porque queriam ver-se livres dos talibãs. As mortes de civis levam a que a ISAF perca aceitação. Por exemplo o atropelamento de mulheres e crianças por um humvie é um caso muito difícil de gerir. Ninguém está a disparar sobre nós. Não há desculpa para que tal aconteça.”
PRESOS EM FUGA, GUARDAS NA PRISÃO
Quase 500 reclusos escaparam, no domingo, da prisão de Sarposa, em Kandahar — um dos bastiões talibãs —, no sul do país. A fuga realizou-se a coberto da noite, sem despertar a atenção dos guardas. Durante quatro horas e meia, os presos fugiram através de um túnel de 320 metros que passava por baixo da autoestrada Cabul-Kandahar. Zabiullah Mujahid, porta-voz dos talibãs, explicou que o túnel demorou cinco meses a ser construído. Na quinta-feira, o Governo de Cabul anunciou a detenção de dez funcionários da prisão. Em 2008, 1000 presos escaparam de Sarposa após a explosão de um camião-bomba no exterior do edifício. Tradicionalmente, mal chega o bom tempo da primavera, os talibãs desencadeiam uma ofensiva contra as forças da NATO. Joseph Blotz, porta-voz da ISAF, explica como, em Kandahar e Helmand, os talibãs recrutam jovens de forma coerciva. “Se eles resistirem, as famílias serão ameaçadas. Muitos jovens aderem aos talibãs em regime de part-time. De dia, têm um emprego normal; à noite, por 10 dólares, colocam engenhos explosivos ou realizam ataques.”
FORÇAS DE SEGURANÇA AFEGÃS
400 mil militares e polícias constituirão, em 2014, as forças de segurança afegãs: o exército terá 240 mil soldados e a polícia 160 mil agentes
27% é a taxa de deserção no exército afegão. Na polícia, desertam 12%
230 militares portugueses ensinam, treinam e assessoram nos cursos de formação. Com 15 formadores, a GNR chegou, pela primeira vez, ao teatro afegão a 17 de abril
(Foto: Pashtunes, tadjiques, hazaras… todos os grupos étnicos integram o novo exército afegão MARGARIDA MOTA)
Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de abril de 2011






