“Haverá mais baixas. Mas não temos alternativa!”

O porta-voz das tropas da NATO no Afeganistão garante que a ISAF está mais forte do que nunca. Ainda assim, para o general Josef Blotz, muitas das áreas libertadas ainda não são “paraísos como Sintra ou Cascais”. Entrevista

O ataque às Nações Unidas em Mazar-e-Sharif, a 1 de abril, e na semana passada a tentativa de ataque suicida contra a base norte-americana Phoenix, em Cabul, revelam uma deterioração da segurança nestas duas regiões?
As estatísticas relativas à violência dizem-nos que essas duas áreas nunca antes foram tão seguras. Em Cabul, vivem cerca de cinco milhões de pessoas, ou seja, um sexto da população do Afeganistão. Em agosto de 2008, em Cabul, as forças de segurança afegãs assumiram a responsabilidade pela segurança da região à volta de Cabul. Desde então, a segurança aumentou muito. As pessoas apreciam o nível de segurança e prosperidade, é só vermos a quantidade de carros a circular pela cidade, o que não acontecia há muitos anos. O mesmo se aplica a Mazar-e-Sharif, uma cidade vibrante em termos de economia e de estabilidade.

As duas áreas fazem parte do primeiro grupo de províncias e distritos a transitar para responsabilidade afegã, já em julho. Essa transição está em causa?
Quando o Presidente Hamid Karzai decidiu que essas áreas transitariam na primeira fase do processo reconheceu a sua estabilidade. O que aconteceu em Mazar-e-Sharif [sete funcionários da ONU foram assassinados por uma multidão que protestava contra a queima do Alcorão nos EUA] foi muito trágico, mas não vai impedir a transição.

À espera da “ofensiva da primavera”

Quem lidera o processo de transição?
A ideia de uma transição concluída até ao fim de 2014 partiu dos afegãos. É uma das visões que o Presidente Karzai descreveu no início do seu segundo mandato, em novembro de 2009. Ele pediu apoio internacional para este processo. E obteve-o. Tendo em vista a necessidade de se fazer uma análise sobre as áreas geográficas que deveriam integrar este primeiro grupo, foi instituído um grupo de transição conjunto NATO-Afeganistão que propôs recomendações. Mas a decisão final pertenceu ao Presidente. Este tem de ser um processo liderado pelos afegãos.

Com a chegada da primavera, normalmente, recrudescem os ataques talibãs. Já tem uma percepção em relação às capacidades dos insurgentes este ano?
A chamada “ofensiva da primavera” por parte dos insurgentes é já uma espécie de tradição. Passado o inverno rigoroso, eles retomam os combates. E este ano não será exceção. Nos últimos dez meses, eles perderam imenso: combatentes, armas, munições, explosivos e mesmo drogas que são uma importante fonte de financiamento. Paralelamente, em 2010, a ISAF (Força Internacional de Assistência à Segurança) — a coligação composta por forças da NATO — reforçou-se muito. Só os EUA aumentaram as suas tropas em 30 mil. Várias outras nações contribuíram com mais 5000. Este esforço, somado ao crescimento das forças de segurança afegãs e uma melhor coordenação das atividades civis e militares afastaram os talibãs de algumas áreas — incluindo no coração da sua luta, na província de Kandahar —, e enfraqueceram as suas estruturas de comando, logística e abastecimento. Paralelamente, avançou-se com o programa da reintegração social de insurgentes. Por isso, é expectável que na primavera de 2011, eles tentem reconquistar o que perderam.

ISAF está mais forte do que nunca!

E como vai responder a ISAF?
Nós estávamos à espera desta ofensiva, por isso, durante o inverno, nunca deixamos de combater e mantivemos uma grande pressão sobre os insurgentes. Não fizemos uma pausa nos combates e isso alterou todo o panorama estratégico. Quando os talibãs voltarem a atacar enfrentarão uma situação completamente diferente daquela que se viveu há um ano. Acreditamos que a insurgência está enfraquecida em termos quantitativos e qualitativos. Mas sabemos que eles tentarão. Haverá mais combates e violência e haverá mais baixas. Mas não temos alternativa. A ISAF tem cerca de 150 mil tropas oriundas de 49 países. Está mais forte do que nunca. Paralelamente, as forças de segurança afegãs cresceram. Estamos numa posição muito boa para aguardarmos pela ofensiva.

General Josef Blotz, porta-voz da ISAF MARGARIDA MOTA

Os afegãos necessitam de ganhar a vida. E se os talibãs continuarem a pagar-lhes melhores salários?
Os insurgentes estão a recrutar combatentes não apenas dando-lhes dinheiro, mas também intimidando as populações. Sobretudo em Kandahar e Helmand, recrutam jovens de forma coerciva e violenta. Se estes jovens resistirem, as suas famílias serão ameaçadas. Por isso, muitas vezes, eles aderem às fileiras talibãs em regime de part-time. Isto dificulta muito a definição do que é um talibã. Há casos em que, durante o dia, um jovem tem o seu emprego normal e à noite, por 10 dólares, coloca engenhos explosivos ou realiza ataques. E depois, na manhã seguinte, volta ao seu trabalho normal. O caminho a seguir é a reintegração social dos insurgentes. Ássim poderemos visar as diferentes categorias de talibãs.

Marjah ainda não é Sintra nem Cascais

Um dos grandes focos de tensão entre a ISAF e as autoridades de Cabul prende-se com as baixas civis. Morrem tantos civis porque esta é uma guerra ou a ISAF também comete erros?
Ambas as situações. É talvez impossível combater uma insurgência num país com 35 milhões de pessoas sem causar danos em pessoas, casas ou aldeias. É uma zona de guerra. É muito difícil evitar baixas civis em Kandahar ou Helmand. Por vezes, os insurgentes usam civis como escudos humanos. Oitenta por cento das vítimas civis são provocadas pela insurgência, um aumento de cerca de 35% em relação ao ano passado.

E em relação às baixas provocadas pela ISAF?
O número de baixas civis provocadas pela ISAF diminuiu 26% em relação a 2010. E isto aconteceu paralelamente ao reforço adicional de cerca de 35 mil tropas. Ainda assim, conseguimos diminuir as baixas civis. Mas de tempos a tempos acontecem incidentes trágicos, com mortes de mulheres e crianças. Quando isso acontece, destacamos equipas de investigação conjuntas, compostas por afegãos e elementos da ISAF, para obtermos informação de uma forma transparente. Pagamos compensações e, cada vez mais, revemos os nossos procedimentos. E já houve casos em que levamos soldados diante de um tribunal marcial por erros cometidos. Foram condenados e sentenciados. Talvez seja impossível, numa guerra, reduzir o número de baixas civis até zero, mas é nossa função proteger as populações e darmos-lhes cobertura contra a insurgência.

Também morrem cada vez mais soldados da coligação…
Em parte, é o preço que pagamos por querermos libertar determinadas regiões. Por exemplo, em Marjah, no centro de Helmand, a bandeira talibã esteve hasteada durante muitos anos. Era uma área completamente inacessível, onde os talibãs atuavam como queriam. Era um centro de tráfico de drogas, onde a “sharia” (lei islâmica) estava em vigor, as meninas não podiam ir à escola, os telemóveis estavam proibidos, etc. Num esforço conjunto, sob liderança afegã, conseguimos libertar e reocupar a área. Hoje, Marjah não é propriamente um paraíso como Sintra ou Cascais, mas, pelos padrões afegãos, está livre da influência perversa dos talibãs e está a prosperar em termos de infraestruturas, educação e saúde. Neste processo, temos de assumir riscos e sofrer baixas. Mas, repito, não temos alternativas. Precisamos de ir a estes sítios. Se não formos nunca atingiremos o nosso objetivo: um Afeganistão que não é mais usado como um porto de abrigo para o terrorismo.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

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