Trabalhar no Afeganistão? E porque não?

É portuguesa, tem 30 anos e não pensou duas vezes quando lhe ofereceram trabalho no Afeganistão. Para quem opera na área do desenvolvimento, é dos países mais interessantes. Reportagem no Afeganistão

Quando lhe acenaram com uma proposta de trabalho no Afeganistão, Ana Carina, 30 anos, natural de Torres Vedras, não se deixou vencer pelo medo. Tinha acabado de trabalhar em Madagáscar, na área do desenvolvimento, e a vontade de continuar mundo fora falou mais alto do que os receios de viver num país em guerra.

“Não pensei muito, para ser sincera. Já tinha tentado vir duas vezes para o Afeganistão. Na área do desenvolvimento é dos países mais interessantes para se trabalhar. Há muito para fazer aqui”, diz.

Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova, Ana Carina é funcionária da ONG francesa MADERA (Missão de Ajuda ao Desenvolvimento das Economias Rurais do Afeganistão). “Implementamos projetos nas áreas do desenvolvimento rural, florestas, ambiente, artesanato e desenvolvimento comunitário.”

A organização está presente no território desde 1988 e Carina, que partilha uma “guest-house” com outros expatriados, vive em Cabul desde há nove meses. Na MADERA, é responsável pela gestão de contratos, preparação de propostas de projetos e relatórios para os doadores.

Chegar onde o Governo não consegue

“A minha organização está muito bem infiltrada nas comunidades. Mesmo nas alturas mais difíceis, em que não há produção de atividade, arranjamos forma de continuar a pagar salários a essa rede de funcionários. Desta forma, temos acesso a locais onde o Governo, os militares e muitas outras ONG não conseguem ir, sobretudo nas montanhas do leste.”

Em Cabul, Ana Carina trabalha para a ONG francesa MADERA MARGARIDA MOTA

Um dos mais recentes projetos desenvolvidos pela MADERA foi uma campanha de vacinação de animais. A organização vendeu vacinas a preços subsidiados a comerciantes locais que, ao fim de algum tempo de atividade, começaram a ter lucro. Depois, apareceu na região uma outra organização que distribuiu vacinas gratuitamente. “As pessoas deixaram de ter necessidade de ir comprar e o mercado deixou de existir…”

A MADERA tem mais de 600 funcionários e apenas 15 são expatriados. “Os ‘managers’ são expatriados. E embora queiramos afeganizar os nossos quadros é extremamente difícil encontrar pessoas qualificadas com capacidade de gestão. Já encontrei alguns afegãos excelentes, mas são muito poucos e geralmente vão trabalhar para ONG que pagam muito melhor. As ditas ‘empresas humanitárias’, pagam mais a um afegão do que a Madera a um expatriado. Torna-se difícil manter as pessoas.”

Vida dupla para enganar os talibãs

Ana Carina encontrou-se com o Expresso no “Flower Street Cafe”, um restaurante frequentado por funcionários internacionais — e onde no menu não consta comida afegã —, situado na área de Taimani, em Cabul. Terminado o almoço, instintivamente, colocou o lenço na cabeça para voltar à rua.

Para qualquer estrangeira, manda o bom senso (e a insegurança no país) que se ande sempre acompanhada, preferencialmente, na companhia de alguém conhecedor do terreno, que garanta um mínimo de segurança.

Carina tem à espera o motorista. “Só me posso movimentar com motoristas e em carros da organização, quer vá para o trabalho e no caso de saídas pessoais, à noite e ao fim-de-semana. Não posso andar sozinha na rua, não tanto por causa das bombas mas mais pelo risco de rapto.”

O Expresso regressou a Camp Warehouse na companhia de um dos tradutores em serviço para o contingente português. Enaiatollah (nome fictício) trabalha para os militares portugueses desde 2006. A mulher sabe o que faz para ganhar a vida e a sogra também, mas o resto da família e os vizinhos pensam que ele é médico. “Se os talibãs descobrem que eu trabalho para a ISAF (coligação internacional) cortam-me a cabeça!”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

“Haverá mais baixas. Mas não temos alternativa!”

O porta-voz das tropas da NATO no Afeganistão garante que a ISAF está mais forte do que nunca. Ainda assim, para o general Josef Blotz, muitas das áreas libertadas ainda não são “paraísos como Sintra ou Cascais”. Entrevista

O ataque às Nações Unidas em Mazar-e-Sharif, a 1 de abril, e na semana passada a tentativa de ataque suicida contra a base norte-americana Phoenix, em Cabul, revelam uma deterioração da segurança nestas duas regiões?
As estatísticas relativas à violência dizem-nos que essas duas áreas nunca antes foram tão seguras. Em Cabul, vivem cerca de cinco milhões de pessoas, ou seja, um sexto da população do Afeganistão. Em agosto de 2008, em Cabul, as forças de segurança afegãs assumiram a responsabilidade pela segurança da região à volta de Cabul. Desde então, a segurança aumentou muito. As pessoas apreciam o nível de segurança e prosperidade, é só vermos a quantidade de carros a circular pela cidade, o que não acontecia há muitos anos. O mesmo se aplica a Mazar-e-Sharif, uma cidade vibrante em termos de economia e de estabilidade.

As duas áreas fazem parte do primeiro grupo de províncias e distritos a transitar para responsabilidade afegã, já em julho. Essa transição está em causa?
Quando o Presidente Hamid Karzai decidiu que essas áreas transitariam na primeira fase do processo reconheceu a sua estabilidade. O que aconteceu em Mazar-e-Sharif [sete funcionários da ONU foram assassinados por uma multidão que protestava contra a queima do Alcorão nos EUA] foi muito trágico, mas não vai impedir a transição.

À espera da “ofensiva da primavera”

Quem lidera o processo de transição?
A ideia de uma transição concluída até ao fim de 2014 partiu dos afegãos. É uma das visões que o Presidente Karzai descreveu no início do seu segundo mandato, em novembro de 2009. Ele pediu apoio internacional para este processo. E obteve-o. Tendo em vista a necessidade de se fazer uma análise sobre as áreas geográficas que deveriam integrar este primeiro grupo, foi instituído um grupo de transição conjunto NATO-Afeganistão que propôs recomendações. Mas a decisão final pertenceu ao Presidente. Este tem de ser um processo liderado pelos afegãos.

Com a chegada da primavera, normalmente, recrudescem os ataques talibãs. Já tem uma percepção em relação às capacidades dos insurgentes este ano?
A chamada “ofensiva da primavera” por parte dos insurgentes é já uma espécie de tradição. Passado o inverno rigoroso, eles retomam os combates. E este ano não será exceção. Nos últimos dez meses, eles perderam imenso: combatentes, armas, munições, explosivos e mesmo drogas que são uma importante fonte de financiamento. Paralelamente, em 2010, a ISAF (Força Internacional de Assistência à Segurança) — a coligação composta por forças da NATO — reforçou-se muito. Só os EUA aumentaram as suas tropas em 30 mil. Várias outras nações contribuíram com mais 5000. Este esforço, somado ao crescimento das forças de segurança afegãs e uma melhor coordenação das atividades civis e militares afastaram os talibãs de algumas áreas — incluindo no coração da sua luta, na província de Kandahar —, e enfraqueceram as suas estruturas de comando, logística e abastecimento. Paralelamente, avançou-se com o programa da reintegração social de insurgentes. Por isso, é expectável que na primavera de 2011, eles tentem reconquistar o que perderam.

ISAF está mais forte do que nunca!

E como vai responder a ISAF?
Nós estávamos à espera desta ofensiva, por isso, durante o inverno, nunca deixamos de combater e mantivemos uma grande pressão sobre os insurgentes. Não fizemos uma pausa nos combates e isso alterou todo o panorama estratégico. Quando os talibãs voltarem a atacar enfrentarão uma situação completamente diferente daquela que se viveu há um ano. Acreditamos que a insurgência está enfraquecida em termos quantitativos e qualitativos. Mas sabemos que eles tentarão. Haverá mais combates e violência e haverá mais baixas. Mas não temos alternativa. A ISAF tem cerca de 150 mil tropas oriundas de 49 países. Está mais forte do que nunca. Paralelamente, as forças de segurança afegãs cresceram. Estamos numa posição muito boa para aguardarmos pela ofensiva.

General Josef Blotz, porta-voz da ISAF MARGARIDA MOTA

Os afegãos necessitam de ganhar a vida. E se os talibãs continuarem a pagar-lhes melhores salários?
Os insurgentes estão a recrutar combatentes não apenas dando-lhes dinheiro, mas também intimidando as populações. Sobretudo em Kandahar e Helmand, recrutam jovens de forma coerciva e violenta. Se estes jovens resistirem, as suas famílias serão ameaçadas. Por isso, muitas vezes, eles aderem às fileiras talibãs em regime de part-time. Isto dificulta muito a definição do que é um talibã. Há casos em que, durante o dia, um jovem tem o seu emprego normal e à noite, por 10 dólares, coloca engenhos explosivos ou realiza ataques. E depois, na manhã seguinte, volta ao seu trabalho normal. O caminho a seguir é a reintegração social dos insurgentes. Ássim poderemos visar as diferentes categorias de talibãs.

Marjah ainda não é Sintra nem Cascais

Um dos grandes focos de tensão entre a ISAF e as autoridades de Cabul prende-se com as baixas civis. Morrem tantos civis porque esta é uma guerra ou a ISAF também comete erros?
Ambas as situações. É talvez impossível combater uma insurgência num país com 35 milhões de pessoas sem causar danos em pessoas, casas ou aldeias. É uma zona de guerra. É muito difícil evitar baixas civis em Kandahar ou Helmand. Por vezes, os insurgentes usam civis como escudos humanos. Oitenta por cento das vítimas civis são provocadas pela insurgência, um aumento de cerca de 35% em relação ao ano passado.

E em relação às baixas provocadas pela ISAF?
O número de baixas civis provocadas pela ISAF diminuiu 26% em relação a 2010. E isto aconteceu paralelamente ao reforço adicional de cerca de 35 mil tropas. Ainda assim, conseguimos diminuir as baixas civis. Mas de tempos a tempos acontecem incidentes trágicos, com mortes de mulheres e crianças. Quando isso acontece, destacamos equipas de investigação conjuntas, compostas por afegãos e elementos da ISAF, para obtermos informação de uma forma transparente. Pagamos compensações e, cada vez mais, revemos os nossos procedimentos. E já houve casos em que levamos soldados diante de um tribunal marcial por erros cometidos. Foram condenados e sentenciados. Talvez seja impossível, numa guerra, reduzir o número de baixas civis até zero, mas é nossa função proteger as populações e darmos-lhes cobertura contra a insurgência.

Também morrem cada vez mais soldados da coligação…
Em parte, é o preço que pagamos por querermos libertar determinadas regiões. Por exemplo, em Marjah, no centro de Helmand, a bandeira talibã esteve hasteada durante muitos anos. Era uma área completamente inacessível, onde os talibãs atuavam como queriam. Era um centro de tráfico de drogas, onde a “sharia” (lei islâmica) estava em vigor, as meninas não podiam ir à escola, os telemóveis estavam proibidos, etc. Num esforço conjunto, sob liderança afegã, conseguimos libertar e reocupar a área. Hoje, Marjah não é propriamente um paraíso como Sintra ou Cascais, mas, pelos padrões afegãos, está livre da influência perversa dos talibãs e está a prosperar em termos de infraestruturas, educação e saúde. Neste processo, temos de assumir riscos e sofrer baixas. Mas, repito, não temos alternativas. Precisamos de ir a estes sítios. Se não formos nunca atingiremos o nosso objetivo: um Afeganistão que não é mais usado como um porto de abrigo para o terrorismo.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

O truque da garrafa e a mania dos mais novos

Em Camp Warehouse, há paletes de garrafas de água espalhadas com regularidade junto aos aposentos dos militares portugueses. A “culpa” é do enfermeiro Westermann… Reportagem em Cabul

Packs de garrafas de água, junto a alojamentos de militares portugueses, em Camp Warehouse MARGARIDA MOTA

Tinha acabado de me sentar no refeitório português de Camp Warehouse quando um rosto sério se plantou à minha frente: “Como é que abriu a garrafa de água que tem aí no seu tabuleiro?” Fiquei sem reação. Só me ocorria responder o óbvio: “Peguei na garrafa e desenrosquei a tampa! Fiz mal?”

Não obtive resposta imediata e ali fiquei a digerir — o bacalhau que os cozinheiros filipinos prepararam, naquela noite, para o contingente português e o mistério à volta de uma vulgar garrafa plástica com água. Uns dias depois, procurei esclarecer-me junto do militar que me interpelara e percebi que, na verdade, fizera mal!

Seringas tóxicas a meio caminho

Desde que em 2009, igualmente em missão no Afeganistão, ouvira nas notícias que entravam no país toneladas de inseticidas e fertilizantes para fins agrícolas, o enfermeiro Westermann tem vindo a tentar mudar alguns hábitos dos militares a quem presta assistência. “As garrafas de água são transportadas para Camp Warehouse em camiões de caixa aberta”, diz. “Durante o percurso, facilmente podem ser picadas com seringas com tóxicos…”

Para atestar a qualidade da água impõem-se, pois, um truque: pegar na garrafa, virá-la com a tampa para o chão e apertá-la. Se dela sair o mais pequeno esguicho de água, é de todo aconselhável a deitar a embalagem ao lixo. A preparação da cafeteira do café ou do gelo do bar português, por exemplo, obedecem a esta técnica.

Paletes de água ao dobrar da esquina

Num passeio pelo “bairro” português de Camp Warehouse saltam à vista várias paletes com garrafas de água dispersas pelos passeios e pelos corredores junto aos dormitórios. O sargento-ajudante Westermann aconselha os militares a lavar os dentes com água engarrafada e, depois do duche, a fazerem o mesmo na zona dos genitais.

Em final de missão, Westermann refere que pela sua enfermaria — onde trabalhou com dois socorristas — não passaram casos de saúde complicados: no verão assistiu sobretudo diarreias e sangramentos nasais e no inverno gripes, amigdalites e diarreias esporádicas.

“Os militares portugueses são conscienciosos”, diz. Ainda assim, há determinados hábitos, praticados sobretudo pelos mais jovens, que o incomodam. “Fazem do quarto uma dispensa! Levam sumos, bolachas… Deve ser para comerem durante a noite, mas é um mau hábito. Depois não se queixem se apareceram ratos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 12 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

Afegãos: Histórias de sobrevivência

Fawzia desafiou os códigos sociais para ser algo mais do que mera esposa. Enaiat foi abandonado pela mãe para não ser usado como moeda no pagamento de uma dívida. Dois relatos de vida do Afeganistão para o mundo

Fawzia Koofi, a 17 de fevereiro de 2012, em Londres, durante uma conferência na Chatham House, intitulada “Como irá a retirada das forças internacionais afetar o Afeganistão?” CHATHAM HOUSE / WIKIMEDIA COMMONS

Ela chama-se Fawzia Koofi, tem 36 anos, é tajique e quer ser Presidente do seu país. Ele chama-se Enaiatollah Akbari, tem “mais ou menos” 22 anos, é hazara e sonha reencontrar a mãe. Ambos são afegãos, nascidos num contexto sociocultural que os transformou em ‘filhos de um Deus menor’: Fawzia, por ser mulher, nasceu destinada a uma vida subserviente; Enaiatollah, por ser hazara, cresceu com o estigma da discriminação.

Fawzia e Enaiatollah nunca se cruzaram, nem mesmo em Lisboa, onde estiveram recentemente, com poucos dias de intervalo, para promover as respetivas biografias.

Fawzia viajou acompanhada pelas filhas — Shaharzad (12 anos) e Shuhra (11 anos)  —, para quem escreveu “Às Minhas Filhas com Amor…” (ASA). No livro, conta como os seus primeiros anos de vida foram moldados pela tradição que estipulava que nas casas de família existissem divisões reservadas aos homens, que obrigava as mulheres casadas a tornarem-se ‘invisíveis’ na presença de homens que não fossem seus parentes, que não previa a comemoração dos aniversários das raparigas e que, na vida conjugal, justificava os maus-tratos como uma prova de amor.

“As raparigas, para a cultura da minha aldeia, não tinham valor. Mesmo hoje em dia, as mulheres rezam para ter rapazes, porque só um rapaz lhes confere estatuto e garante a felicidade dos maridos”, comenta Fawzia. Quando ela nasceu, a mãe ficou desalentada com o sexo do recém-nascido. “Virou a cara para o lado e recusou-se a pegar em mim”, conta. “Embrulharam-me num pano e deixaram-me ao sol abrasador. Fiquei lá fora quase um dia inteiro, a gritar.”

Fawzia sobreviveu a esse atentado, facto que lhe vincou a personalidade. Pediu à família para ir à escola, trabalhou como professora de inglês, resistiu a usar burqa, não abdicou de pintar as unhas e de usar saltos altos durante o regime dos talibãs e enfrentou-os sempre que prendiam o marido sem razão.

Até que em julho de 1998, com 23 anos, foi mãe. “Quando a minha primeira filha nasceu, toda a família ficou feliz. Quando ela tinha seis meses, fiquei grávida pela segunda vez. Não se esperava que nascesse outra rapariga, mas nasceu. O meu marido não me falou nos momentos a seguir ao parto. A pessoa que ficou mais infeliz foi a minha irmã.”

Num país adverso às mulheres, como é o Afeganistão, Fawzia Koofi quis transformar a sua experiência de vida num alerta para as duas filhas: Shaharzad, de 12 anos, e Shuhra, de 11

Na origem deste tratamento dado às mulheres está, segundo Fawzia, todo um sistema social que reconhece o homem como “o proprietário da família”. “Mas tudo está a mudar. Eu nunca alterei o meu nome mesmo quando era casada [hoje é viúva]. As minhas filhas têm o meu nome de família. Sobretudo nas cidades, há cada vez mais mulheres a ir à escola, a trabalhar e a ganhar dinheiro.”

Fawzia reconhece que as afegãs são vítimas. “Mas ao mesmo tempo somos lutadoras, contribuímos para a mudança, dentro da própria família.” Por experiência própria, garante que “os afegãos tendem a confiar cada vez mais nas capacidades das mulheres.”

Filha de um membro do Parlamento e neta de um chefe tribal, Fawzia transporta nos genes o dever e a honra de prestar serviço público. Em 2005, foi eleita deputada por Badakhshan — a província mais setentrional e uma das zonas mais pobres e conservadoras — e em 2010 foi reeleita. “O estatuto da mulher é a minha maior batalha. Fui a primeira mulher da história do Afeganistão a ser vice-presidente. Nas eleições de setembro passado, fui a mulher mais votada [atualmente, há 69 deputadas]. Fui a primeira mulher da minha família a estudar e a seguir a política. Sinto que abri o caminho para outras…”

Fawzia não quer ficar por aqui. Em 2014, quer candidatar-se à presidência do Afeganistão. O país está em guerra, mas considera a ambição realista. “As pessoas votam em quem trabalha para que haja mudanças e melhorias na vida quotidiana: clínicas e escolas, por exemplo, para que as crianças não tenham de andar horas a pé para ir às aulas.”

Abandonado aos 10 anos

Durante oito anos — após ser abandonado pela mãe numa estalagem de Quetta, no Paquistão, e assim ficar só no mundo —, Enaiatollah Akbari massacrou os pés de tanto andar. “No Mar Há Crocodilos” (Objectiva) descreve a sua odisseia desde a aldeia natal — Nava, na província de Ghazni, onde um dia viu o professor ser executado pelos talibãs por se recusar a fechar a escola onde, acusavam os talibãs, eram ensinadas “coisas que Deus não quer que sejam ensinadas” —, até Turim, na Itália, onde hoje vive como refugiado político.

O pai de Enaiat trabalhava como camionista e, por ser hazara — xiitas, como os iranianos —, ficou incumbido de transportar mercadorias para o Irão. Um dia, foi assaltado e assassinado. O patrão, exigindo ser ressarcido pelos prejuízos sofridos, exigiu que a viúva lhe entregasse um dos filhos. Por ser o rapaz mais velho, Enaiat era o mais vulnerável. Para o proteger de um futuro como escravo, a mãe optou por abandoná-lo, longe dali.

Enaiat ficou entregue a si próprio “mais ou menos aos dez anos”. Em Ghazni, “não havia registo civil nem nada que se parecesse” para que saiba com rigor o dia em que nasceu. Fabio Geda, o autor da biografia, explica como foi possível reconstituir toda a viagem. “No início, tentei reavivar-lhe a memória. Ele recordava-se de algumas coisas, mas não de forma cronológica. A internet facilitou o trabalho. Há fotos, filmes, mapas, imagens de satélite dos sítios que ele percorreu.”

Fabio Geda ajudou Enaiat a reconstruir a sua viagem solitária de oito anos através do Afeganistão, Paquistão, Irão, Turquia, Grécia e Itália e quer acompanhá-lo no reencontro com a mãe

Aos poucos, Enaiat recordou-se como, no Paquistão, trabalhou como vendedor ambulante, dormindo na rua e lavando-se nas mesquitas. Depois seguiu para o Irão, onde trabalhou três anos na construção, dormindo no estaleiro. Um dia, a polícia apareceu de surpresa para prender os ilegais e Enaiat foi repatriado para Herat, uma cidade afegã “cheia de traficantes à espera de repatriados” para os levar de volta ao Irão.

Para cruzar fronteiras, Enaiat colocava-se à mercê de traficantes a quem pagava com o dinheiro que ganhava a trabalhar. Viajou em autocarros, furgonetas de caixa aberta, camiões — escondido entre as mercadorias ou esmagado num fundo falso — comboios, ferrys e mesmo num bote insuflável. Mas foi a pé que atravessou as montanhas entre o Irão e a Turquia, juntamente com 76 afegãos, curdos, paquistaneses, iraquianos e bengaleses, andando de noite e dormindo de dia. Ao 18º dia viu “pessoas sentadas”, mortas por congelamento. Ao 26º dia, a montanha finalmente acabou. Dos 76 companheiros, 12 tinham morrido pelo caminho.

Os crocodilos do Mediterrâneo

Enaiat recorda ainda como viveu em parques de Atenas à mercê de pedófilos e de como, durante a travessia do Mediterrâneo a caminho da Grécia, com mais quatro crianças, a bordo de um bote de borracha, surgiu o medo dos crocodilos… “Naquele dia em que aqueles miúdos tiveram medo dos crocodilos — que não existem no Mediterrâneo — recordei-me dos meus tempos de infância, quando eu tinha medo que dentro do armário ou debaixo da cama houvesse um monstro”, explica Fabio Geda. “Os meus pais diziam-me que o monstro não existia e explicavam-me quais eram os verdadeiros perigos da vida. Naquele dia, aqueles miúdos enfrentaram, verdadeiramente, muitos perigos: as polícias turca e grega, os barcos grandes… Mas o que os assustava era o monstro dentro do armário…”

Para Enaiat, “todos os dias foram difíceis”, porque “não tinha identidade, bilhete de identidade ou passaporte”. “Era um estranho para toda a gente. Quando a polícia grega nos bateu na esquadra e começamos a fugir, parecíamos os maus da fita, após termos feito algo de errado. Mas não era assim! Tinham-me dito que na Grécia, mal nos prendessem, tiravam-nos as impressões dos dedos e a partir desse momento qualquer clandestino estava lixado, pois não podia pedir asilo político noutro país da Europa.”

Para passar do Irão para a Turquia, Enaiat andou 26 dias a pé. Viu pessoas sentadas, congeladas pelo frio. Eram 77 homens, mas 12 morreram no caminho

Em Itália, Enaiat foi acolhido por uma família e enfrentou o processo de legalização como o início de uma nova vida. Começou a ir à escola e investiu nas aulas de italiano para lidar com as autoridades por boca própria. “Daniele Mastrogiacomo, um jornalista italiano, fora raptado pelos talibãs e o seu intérprete afegão fora degolado por um rapaz de 13 anos. A fotografia desse miúdo foi publicada num jornal. No dia em que a comissão ia decidir o meu futuro, levei esse jornal. Começaram a fazer perguntas para me colocar em dificuldades. Então, mostrei-lhes a foto: ‘Se eu tivesse ficado no Afeganistão, talvez me tivesse tornado neste rapaz’. Tenho pena do intérprete que foi morto, mas tenho quase a certeza que fiquei em Itália em grande parte por causa da sua história.”

Com a legalização, Enaiat volta a pensar na mãe. “Foi muito difícil aceitar o abandono da minha mãe, sobretudo nos três primeiros meses. Tive de começar tudo do zero e estava só num mundo que eu não conhecia. Mas isso fez-me bem. Ao não ter uma família que me acolhesse não corria o risco de ficar o dia todo enfiado num quarto a pensar: ‘Mamã, porque é que me abandonaste?’ Tinha de trabalhar, tinha de pensar em formas de resolver os meus problemas. E seguir em frente.”

Ao longo do livro, o leitor questiona-se várias vezes se o encontro com a mãe acontecerá. A resposta chega na última página. Enaiat chega à fala com a mãe, ainda que do outro lado do auscultador escute “apenas uma respiração”, recorda. “Percebi que também ela estava a chorar.”

Desde então, telefonam-se uma vez por semana. O reencontro está dependente de burocracias. Como refugiado político, Enaiat não pode regressar ao seu país. Teoricamente, poderia viajar até ao Paquistão, onde a família vive. “Mas não me dão visto. Teria de corromper alguém”, diz. A lei italiana prevê a figura da reunião familiar, mas os dois irmãos de Enaiat teriam de ficar para trás.

Ao telefone, Enaiat e a mãe nunca falaram do dia fatídico em que ela o abandonou. “Nem eu quero falar disso”, diz. “Ao lembrar-se desse momento, a minha mãe iria sentir-se muito pior do que eu.”

Artigo publicado no Expresso Online, a 9 de abril de 2011

Afeganistão