Nível elevado de ameaça em Cabul

A capital do Afeganistão vive dias tensos, com um nível de ameaça elevado. Dentro dos hummer do exército português, a concentração é total. Reportagem no Afeganistão

Em Camp Warehouse um soldado português limpa o vidro de um hummer MARGARIDA MOTA

No interior do hummer não há disposição para dizer piadas nem tão pouco para comentar as prestações das equipas portuguesas nas provas europeias. Circula-se nas ruas traiçoeiras de Cabul, onde, por estes dias, o nível da ameaça foi colocado num “estado alto, muito credível”.

Durante a tarde de ontem, uma reunião no quartel general da ISAF (forças da NATO) em que o comando português deveria ter participado foi mesmo cancelada por razões de segurança.

Às primeiras horas da manhã, à chegada ao aeroporto de Cabul, o Expresso tinha à sua espera uma escolta de dois hummer para o transporte até Camp Warehouse — onde está sedeada a Força Nacional Destacada, composta por 175 homens, e em fase de rotação.

Ainda Terry Jones…

A capital afegã vive dias de grande tensão, desde que, em Mazar-e-Sharif, no norte — que integra o primeiro lote de províncias e cidades a transitarem para a responsabilidade afegã, em julho —, três funcionários da ONU e quatro gurkas, que faziam segurança, foram assassinados por uma multidão enfurecida, em protesto contra a queima do Alcorão por seguidores do pastor evangélico norte-americano Terry Jones.

No hummer português, o condutor, o chefe de viatura e o apontador da metralhadora (com o corpo fora da viatura, dirigindo a metralhadora paralelamente ao seu olhar) seguem silenciosos passando a estrada a pente fino, à procura do mais pequeno indício estranho.

“Buracos com estrada dentro”

Para evitarem a Autoestrada 7, onde, ainda esta semana, três insurgentes tentaram atacar a base norte-americana de Phoenix, seguem por um percurso alternativo, muito acidentado, onde em vez de estrada “há buracos com estrada dentro”, graceja o chefe de viatura.

Na berma da estrada, há crianças que acenam à passagem das viaturas na esperança de serem correspondidas. Os militares portugueses não se deixam distrair. No tablier da viatura, há uma lista colada com algumas dezenas de marcas, tipos, cores e matrículas de carros — a maior parte Toyotas e Land Cruiser — procurados por serem suspeitos.

Explica o chefe de viatura: “Carros com crianças dentro dificilmente representam perigo. Já carros com muitas pessoas vestidas com burca são de desconfiar. Alguns podem ser homens. Eu, muitas vezes, olho para as pessoas e fixo-me na sua mão esquerda, para ver o que transportam. Os muçulmanos fazem tudo com a mão direita. Cumprimentam, comem, acenam. Com a mão esquerda fazem coisas menos dignas.” Limpam-se com a mão esquerda após fazer as necessidades, por exemplo. É a mão amaldiçoada que, quem sabe um dia, bem pode matar.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

Mão de vaca, camisolas do Benfica e o que mais houvesse

À boleia do Expresso, chegou a Cabul material desportivo para decorar os espaços de convívio dos militares portugueses e as escolas onde prestam assistência. E nem faltou um autógrafo do CR7. Reportagem no Afeganistão

Confesso que nunca tinha sentido tantas dificuldades em fazer uma mala como na véspera da minha partida para o Afeganistão. Não que o destino fosse especialmente exigente em termos de vestuário. Não era a primeira vez que viajava para um país muçulmano e, sempre que o faço, por norma, levo sobretudo calças e túnicas largas e compridas para disfarçar os contornos do corpo.

E, claro, lenços para cobrir a cabeça, na eventualidade de querer visitar uma mesquita ou fazer uma incursão num ambiente mais conservador. Apesar de nunca ter estado no Afeganistão, a preparação da mala, aparentemente, não requeria cuidados especiais.

Cantinho tuga na ISAF

O meu drama começou assim que recebi “luz verde” do Expresso e do Estado-Maior General das Forças Armadas para fazer a viagem. Contactei um amigo em missão no teatro de operações afegão e, após dizer-lhe que iria, perguntei-lhe se precisava que lhe levasse algo que estivesse a fazer falta.

Respondeu-me: “Podias tentar arranjar umas camisolas da seleção nacional ou dos clubes de futebol para nós afixarmos nas paredes. Estamos a preparar um espaço de convívio para os militares portugueses aqui no quartel-general da ISAF (força da NATO no Afeganistão) e para recebermos visitas, e gostávamos de o decorar. Se trouxeres, até podemos oferecer algumas camisolas às escolas onde estamos a prestar assistência. Que dizes?”

Dar ânimo às tropas

Não esperava este tipo de solicitação, mas concordei que chegar a Cabul com motivos alusivos ao futebol seriam sempre do agrado das tropas. Numa tarde, disparei pedidos para os três grandes do futebol, Federação Portuguesa de Futebol e a Gestifute, de Jorge Mendes, o empresário de Cristiano Ronaldo. E reincidi junto do meu amigo: “E para ti, não estás a precisar de nada mesmo?”

Afinal precisava. “Se não te custar muito, traz-me umas caixas de Biolimão 3 em 1, por favor. É um regulador gastro-intestinal. Não vou a casa tão cedo e os que trouxe já estão a acabar. Olha, e já que falamos nisto, podias tentar arranjar uns posteres do Turismo com imagens de Portugal para pendurarmos nas paredes e matarmos saudades. Que dizes?”

Não fosse por isso. Contactei o Turismo de Portugal e, como em todos os outros contactos anteriores, recebi promessas entusiastas de colaboração.

Tem de ser da Nobre, está bem?

Porém, continuava frustrada por não aproveitar a minha deslocação a Cabul para apoiar mais o meu amigo. “Tens a certeza que não precisas de mais nada?” Parecia uma conversa de surdos… Diz ele: “Olha, sabes o que é que o pessoal ia adorar? Umas latinhas de mão de vaca com grão. Da Nobre! Em Portugal, é banal, mas aqui é ouro!”.

Comecei a ver no que me tinha metido quando resolvi tirar o peso à mão de vaca: meio quilo cada lata. Como o contingente português no quartel-general da ISAF se resume a oito pessoas, achei que ficaria mal não levar pelo menos uma lata para cada um. A minha mala tinha já garantidos quatro kg só à custa da mão de vaca.

E eis que começam a chegar as respostas das instituições desportivas. FCPorto: “Quando quiser pode vir levantar três bandeiras e três camisolas autografadas pelos jogadores.” Boa!, pensei. Gestifute: “Infelizmente, não temos um armazém com material, mas temos aqui uma camisola do Cristiano Ronaldo e outra do Nani, ambas autografadas, que podemos oferecer.” Que luxo!

Benfica e Sporting, uns mãos largas

Do Estádio da Luz, saí com um caixote de camisolas autografadas, bandeiras, cachecóis, pins e porta-chaves. No Alvalade XXI, deram-me um grande saco com material escolar, uma camisola e uma bola autografadas. Só pensava onde ia levar a bola!… Da Federação, recebi bandeiras e posters. E da Nike, onde procurei, à última da hora, algum merchandising do Cristiano Ronaldo, trouxe três camisolas da seleção nacional.

Não queria deixar nada para trás, mas como iria transportar tudo aquilo? Quase arranquei cabelos quando do Turismo de Portugal me garantiram duas coleções de posters promocionais de Portugal. “São mais ou menos de que tamanho? A3?”, perguntei. “Não, não, são bem maiores!”, responderam-me, para meu desespero.

Nas mãos do comandante

Faltavam meia dúzia de horas para o meu voo e ainda andava às voltas com a mala, fazendo e refazendo a divisão dos artigos por vários e pesados volumes. Em Camp Warehouse, entreguei os bens ao Coronel Salgueiro, comandante do contingente nacional no Afeganistão, para que distribuía segundo os critérios que achar mais adequados. Separei as latas de mão de vaca e o Biolimão para entregar ao meu amigo. “Olha, a inauguração do nosso espaço vai ser durante a tua estadia aqui. Estás convidada, ok?”, disse-me ele. Lá estarei, sim! E se necessário for, até ajudo a pendurar camisolas e bandeiras na parede!

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui