Aprender a escrever numa aula sem teto

Quem disse que só se aprende em escolas de pedra e cal? Reportagem no Afeganistão

Em Pol-e-Charki, há aulas que decorrem no recreio MARGARIDA MOTA

Não são mais do que 25. Mas no Afeganistão, 25 famílias é o suficiente para se formar uma aldeia. Vivem protegidas por uma muralha quadrangular de adobe, perdidas num planalto de Kalakan, a norte de Cabul. A aldeia de Gagarachina é da etnia pashtune, logo permeável à influência talibã. Por determinação do comando da base militar afegã de Pol-e-Charki, este lugar foi escolhido para beneficiar da ajuda humanitária angariada em Portugal. No dia combinado, representantes de cada família — homens — reúnem-se a cerca de 500 metros da entrada da aldeia. As mulheres ficam em casa. De cócoras, os aldeãos escutam o tenente-coronel Rahmatullah referir-se à pobreza da aldeia. “É por isso que vos trouxemos esta ajuda!”, conclui.

De lista na mão, outro militar começa a chamar, um a um, os representantes das famílias. À vez, aproximam-se do camião de carga e recebem um caixote com roupa, calçado, material escolar, brinquedos e um cobertor. Há militares portugueses presentes, mas o protagonismo é dado aos soldados afegãos. Para a NATO, atividades como esta conquistam “os corações e as mentes” dos locais, tornando a presença das tropas internacionais mais aceitável; para o exército afegão é uma “operação de charme” para criar confiança e ganhar simpatizantes na aldeia.

Uma dúzia de crianças aproxima-se timidamente. Fixam os forasteiros como quem olha para extraterrestres. Algumas assustam-se quando alguém que não conhecem as aborda. Terminada a distribuição de bens, os homens da aldeia abraçam os militares em sinal de agradecimento. E fazem um pedido: “Precisamos de uma mesquita, de um poço e… de uma escola”.

No Afeganistão, os militares da NATO respiram de alívio sempre que há crianças a brincar nas bermas das estradas que têm de percorrer. (A experiência diz-lhes que os insurgentes não costumam atacar onde há crianças ou mulheres.) As ruas em terra, sujas e esburacadas, são o parque de diversão das crianças afegãs. Mesmo nas escolas, raramente, há espaços lúdicos.

Situada a leste de Cabul, a escola secundária de Pol-e-Charki é o exemplo perfeito de como, no Afeganistão, ter aulas numa sala com paredes pintadas, portas e janelas é um verdadeiro luxo. A escola tem cerca de 6300 alunos e alunas — a esmagadora maioria dos quais tem aulas… no recreio.

Dois edifícios recuperados com verbas disponibilizadas pelo contingente português (num custo total de 50 mil euros) dotaram a escola de 32 salas de aula. Na cerimónia de inauguração do segundo edifício, a 16 de abril, o diretor da escola desfez-se em elogios à generosidade portuguesa e fez um pedido: “Precisamos de mais 40 salas de aula. Se vos for possível, ajudem-nos! Os nossos alunos aprenderiam mais!”

Na sala, estão presentes militares portugueses e afegãos, alunos, professores, anciãos, um líder religioso e representantes do ministério da Educação e da empresa afegã que fez as obras na escola. Um aluno do 12º ano começa a discursar em língua dari e continua em inglês: “As escolas foram fechadas e os afegãos ficaram mais pobres. Os portugueses provaram que estão aqui para nos ajudar. Que Alá esteja com Portugal e o abençoe”.

Lá fora, no recreio, as aulas não param. Há um burburinho permanente em fundo que os professores procuram ignorar. Duas filas de mesas e cadeiras estão dispostas no meio do recreio. Um aluno sai do seu lugar e dirige-se para a frente dos colegas, como que se tivesse sido ‘chamado ao quadro’. Abre um livro e começa a ler a lição, sob o olhar atento do professor.

A escola de Pol-e-Charki serve uma região carente com uma grande densidade populacional. Atualmente, o contingente português estuda a possibilidade de efetuar outras intervenções, tais como a construção de um campo de voleibol e a realização de um rastreio sanitário. Na inauguração, o diretor pediu “um computador e uma impressora”.

Na região de Jalalabad, junto à fronteira com o Paquistão, outra escola beneficia de apoio português. A escola é privada, mas gerida como que se fosse uma escola pública, sem cobrar um afegani aos cerca de 500 alunos.

Já leva três anos de funcionamento e regista algumas conquistas: nos seis níveis de escolaridade, há mais raparigas do que rapazes e há professores do sexo masculino a dar aulas a turmas femininas, o que não é a regra no país. De seis em seis meses, a escola dá tecido aos alunos para que as mães lhes façam um uniforme novo. Assim, não rompem a roupa que usam em casa.

Aproveitando a visita do Expresso, Ajmal, o diretor da escola, fala da principal carência da escola, na esperança que a mensagem chegue à AMI — entidade que financia o projeto desde o início: “Precisamos de erguer ainda mais o muro à volta da escola. As meninas estão a crescer e a comunidade não gosta que sejam vistas da rua…”

Rodeada de planícies verdes e de montanhas inóspitas, a escola situa-se próximo de Tora Bora, a famosa cadeia de montanhas de cujas grutas Osama bin Laden fugiu, acossado pela tropa americana após o 11 de setembro de 2001.

Na região, há muita atividade insurgente pelo que, dos quadros da escola, fazem parte também dois seguranças armados. Para Mina Wali, a dona da escola, o futuro das crianças da zona não passa pelo jihadismo. “Nesta região, vão desabrochar lindas flores. Queremos formar enfermeiros, professores, donas de casa bonitas e bons maridos”. Na turma feminina do 4º ano, as alunas começam a dar corpo ao sonho de Mina. Said, o manager da escola, pergunta para a sala: “Que querem ser quando forem crescidas?” “Médica!” “Professora!” “Engenheira!”…

‘PROTEGER ESCOLAS’ NAS NAÇÕES UNIDAS

“As crianças são as primeiras vítimas dos conflitos armados. Necessitam e merecem ter a maior proteção possível, assim como os lugares que cuidam delas e lhes prestam assistência — as escolas e os hospitais.” Com estas palavras, a 11 de maio, Peter Wittig, representante permanente da Alemanha no Conselho de Segurança da ONU, lançou a campanha “Protect my school” (Proteja a minha escola). No segundo semestre de 2011, a Alemanha vai presidir ao Conselho de Segurança e, em julho, quer submeter uma proposta de resolução visando a proteção de escolas e hospitais durante os conflitos armados. A campanha apela ao envio de fotos, desenhos ou ficheiros áudios, que sublinhem motivos pelos quais as escolas merecem mais proteção. Mais informações em: www.protectmyschool.diplo.de

Artigo publicado no Expresso, a 28 de maio de 2011

“Bin Laden nunca usou mulheres nas suas batalhas”

Ferida no raide de Abbottabad, a quinta esposa de Bin Laden está sob custódia do Paquistão. Homem que arranjou o casamento alerta para o perigo de ser entregue aos EUA

A família de Osama bin Laden INFOGRAFIA DAILY MAIL

“Pia, zelosa, nova, de boas maneiras, oriunda de uma família decente e, acima de tudo, paciente. Ela terá de assumir as minhas circunstâncias excecionais.” Quando Osama Bin Laden decidiu casar-se pela quinta vez, não se inibiu de discriminar as características desejadas para a sua futura esposa.

A ‘encomenda’ foi feita a um sheikh iemenita, residente em Cabul e próximo do líder da Al-Qaeda. Estava-se em setembro de 1999 e Bin Laden, com 44 anos, vivia no Afeganistão, a coberto do regime talibã que governava o país. Rashad Mohammed Saeed Ismael, o tal sheikh iemenita, pregava na capital afegã.

O pedido chegou um dia por telefone. Rashad logo identificou o par ideal para Bin Laden: Amal Ahmed al-Sadah, de 17 anos, filha de um operário da construção civil. Fora sua aluna e vivia na sua cidade natal: Ibb, no sudoeste do Iémen.

Casamento no coração da luta talibã

O iemenita procurou a rapariga, explicou-lhe quem era Bin Laden e descreveu-lhe o seu modo de vida saltimbanco. A jovem aceitou e a sua família recebeu um dote de 5000 dólares. Seguiu para o Paquistão onde, dias depois, Bin Laden acorreu para a levar para o Afeganistão. Casaram-se em Kandahar, ainda hoje o coração da insurgência talibã.

A 2 de maio de 2011, Amal ficou ferida durante o raide norte-americano à casa onde vivia, em Abbottabad, no Paquistão, juntamente com Bin Laden. Juntamente com Safiyah, a filha de 10 anos, está agora sob custódia das autoridades paquistanesas.

Rashad, que se afirma como um forte apoiante da Al-Qaeda no Iémene, exige que Amal regresse ao país onde nasceu. “No Islão, temos uma prática chamada ardth [honra familiar]. Quando uma mulher como Amal fica viúva, é dever de todos os muçulmanos cuidar dela e assegurar-lhe segurança. O povo do Iémene quer que ela regresse a casa.”

Honra das mulheres é intocável

Rashad acredita que o destino da família de Bin Laden pode ter consequências mais gravosas do que a própria morte do líder da Al-Qaeda. “Nós [Al-Qaeda no Iémene] recebemos a notícia da morte de Bin Laden com felicidade porque sabíamos que ele queria morrer como um mártir às mãos dos americanos. Mas o destino da sua família é uma questão de honra das mulheres, algo que consideramos intocável.”

Há quem receie que se Amal voltar ao Iémene possa ser utilizada como peão, no âmbito da revolução em curso no país e ser entregue pelo contestado Presidente Ali Abdullah Saleh aos Estados Unidos.

Para Rashad, qualquer ação dos EUA contra Amal ou a sua família “causará uma explosão entre o ocidente e o mundo islâmico. As mulheres não são combatentes. A América sabia que Bin Laden nunca usou mulheres nas suas batalhas”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2011. Pode ser consultado aqui