Com armas e com coração

Dez anos após o início da guerra, os afegãos preparam-se para receber da NATO a responsabilidade pela segurança nalgumas regiões. Em Cabul, os militares portugueses empenham-se em formar tropas competentes. Reportagem no Afeganistão

Para a maioria dos recrutas, analfabetos, a vida militar é a única forma de receberem salário MARGARIDA MOTA

No Aeroporto Internacional de Cabul, o dia de trabalho dos militares portugueses começa com uma espécie de ritual. No open space que funciona como escritório para os dez efetivos da Força Aérea, há também secretárias e computadores para três afegãos, com carreira militar feita durante a ocupação soviética. Chegam todos por volta das sete da manhã e perdem-se nos bons-dias. Um dos afegãos aproxima-se do tenente-coronel José Martins, que comanda a equipa portuguesa, e abraça-o demoradamente. O português fecha os olhos, num misto de satisfação e de… sufoco. À volta, todos sorriem. “É assim todos os dias”, explica o português. “Abraça-me com tanta força que quase me quebra os ossos.”

O abraço do veterano afegão ao comandante Martins é um espetáculo diário de que os militares portugueses não se privam. Prova o calor humano existente e é um fator de motivação para melhor cumprirem as tarefas, a 6800 quilómetros de casa.

Na parede por trás da secretária do tenente-coronel Martins, uma bandeira portuguesa e outra afegã, lado a lado, revelam a ausência de protagonismos dentro da sala. Todos ouvem e fazem-se ouvir com o mesmo objetivo. “Akimi, queres um cigarrinho?”, diz um militar em português. O jovem tradutor afegão sorri. Não fala português, mas percebeu o que lhe disseram. À semelhança do abraço ao comandante Martins, aquele cigarrinho já é uma rotina. “Nunca tinha visto um português”, diz Akimi. “Nunca esquecerei este trabalho, o melhor da minha vida. Muito obrigada pelo que fazem pelo meu povo!”

Nesta “ilha portuguesa” elaboram-se projetos de literacia visando a formação de sargentos afegãos. Mal comparado, explica o comandante Martins, “tem um bocadinho a ver com as nossas Novas Oportunidades”. Quase dez anos após o início da guerra no Afeganistão — a retaliação dos EUA ao 11 de setembro —, a prioridade da NATO passa por dotar o país de forças de segurança autossuficientes (240 mil soldados e 160 mil polícias, até 2014) que permitam aos afegãos serem donos do seu futuro e aos 130 mil soldados estrangeiros saírem do atoleiro afegão.

Respondendo ao apelo feito na Cimeira da NATO de Lisboa, em novembro de 2010, Portugal contribui com equipas de instrutores, oriundas dos três ramos das Forças Armadas e da GNR e circunscritas às províncias de Wardak (GNR) e Cabul. A capital integra a primeira fase do processo de transição — a transferência gradual da responsabilidade pela segurança da NATO para as autoridades afegãs —, com início previsto para julho.

“Preparamos estes homens para serem pequenos comandantes”, explica o capitão Fausto Campos, instrutor no Centro de Treino Militar de Cabul. Dentro de uma sala, uma turma com cerca de 200 recrutas — a maioria analfabetos — assiste a uma aula de primeiros socorros. O formador afegão pergunta quem sabe fazer ligaduras. Erguem-se dezenas de braços. Aleatoriamente, é escolhido um aluno para exemplificar.

O português observa o que se passa e escuta Maiwand, que traduz para inglês o que é dito na sala. Terminada a demonstração em língua pashtune, tudo se repete no idioma dari — uma pequena amostra das consequências do xadrez étnico que é o país. “Temos de ir ao ritmo deles”, comenta. “Não é possível mudar tudo de um momento para o outro.”

Pashtunes, tadjiques, hazaras, turcomenos… as novas forças afegãs refletem o xadrez étnico do país MARGARIDA MOTA

Yahya Momeni é um tenente-coronel afegão cujo mentor é o capitão português. Comanda duas companhias de 200 homens e tem de ser capaz de, em quatro semanas, garantir a formação de mais duas fornadas de homens. Na sombra, a intervenção do capitão Campos passa por coisas aparentemente tão insignificantes como sugerir a colocação de um estrado na sala para que os recrutas das últimas filas vejam melhor os formadores. O Afeganistão tem um passado guerreiro, mas nove anos de ocupação soviética e mais seis de governação talibã destruíram a instituição militar.

A escassos dias de terminar a sua missão, o capitão Campos circula pelo centro de treino acompanhado pelo tenente Vale e pelo primeiro-tenente Roldão, que fazem parte da equipa que o vai render. “Veja estas fotos”, diz Roldão, entusiasmado. “Estivemos a tomar o pequeno-almoço com os afegãos.” Nas fotos, os militares portugueses surgem sorridentes junto dos afegãos, tomando chá e mordiscando guloseimas. Sentem-se aceites por aqueles com quem vão trabalhar nos próximos seis meses. “Eles gostam de nós. Sentem que estamos aqui para os ajudar.”

Os portugueses sabem que, no Afeganistão, a comunicação é a chave. E comunicar pode passar, por exemplo… por deixar crescer a barba. Vale e Roldão têm a barba “de três dias” e assim tencionam continuar. Perceberam que há hábitos que ajudam a criar pontes. A maioria dos afegãos usa barba e não fica indiferente a um estrangeiro barbudo. Em circunstâncias normais, o capitão Artur Mesquita não é favorável a que os militares usem barba. “É mau para a disciplina, para a higiene…” Mas reconhece que num teatro de operações como este a barba pode ser uma arma. “É um tópico de conversa com os afegãos. É um bom pretexto para voltar e perguntar: ‘Então, está bem assim?’”

Aprender dari na Internet

Artur Mesquita trabalha nas operações psicológicas. Circula à civil entre a população — identificando-se como jornalista da rádio Bayan (Conversa) ou da revista “Sada-e-Azadi” (Voz da Liberdade), dois órgãos de informação da ISAF (a força da NATO no Afeganistão) —, tentando captar sensibilidades para melhor ajustar a mensagem das tropas internacionais sem ferir suscetibilidades.

Em três meses, compilou uma rede de 100 contactos, aos quais recorre para testar qualquer outdoor, anúncio de televisão ou de rádio — publicitando uma nova obra ou aconselhando a população a lavar as mãos com sabão —, antes de o produto ir para o ar. “No início, a população aceitava melhor a presença da ISAF. Queria ver-se livre dos talibãs. Com as baixas civis e a descredibilização do governo, essa aceitação está a diminuir.”

De forma autodidata, Mesquita procurou um curso de dari na Internet e aprendeu os níveis de conversação mínimos que facilitam a abordagem nas ruas. “É importante as pessoas confiarem em mim. A cultura afegã é muito voltada para o relacionamento”, diz. E essa confiança cria-se nos mais pequenos detalhes. Quando se cruza com um pedinte, o capitão Mesquita distribui afeganis generosamente. “Os afegãos dão sempre esmola”, justifica. Um bom muçulmano não faria melhor.

Homem de fé e participante no coro que anima a missa aos domingos à tarde na capela de Camp Warehouse — onde estão aquartelados os 230 efetivos do contingente português —, o sargento-chefe José Botelho aproxima-se. “Quer ouvir-me a rezar em dari?” Concentra-se e começa a debitar uma ladainha. Para ter a certeza de que não se enganou, repete-a. “Os afegãos ensinaram-me esta oração e apreciam quando a digo. Mas não gostam que ‘dê espetáculo’ para um grupo grande. Então, vou junto deles individualmente e mostro-lhes que já sei rezar em dari. Todos os dias querem ensinar-me palavras novas. Já lhes disse: ‘Tem de ser uma de cada vez!’”

Botelho deve ser bom aluno. Para além da oração, conta até dez sem gaguejar e não hesita nas saudações quotidianas. A maioria dos afegãos não fala inglês, pelo que o trabalho diário não se faz sem a intermediação de tradutores, por norma jovens com estudos universitários. Mas, sempre que podem, os portugueses expressam-se nas línguas locais: “salam” (olá), “tashakor” (obrigado), “khoda hafiz” (até logo) saem com naturalidade.

Antes de ir para o Afeganistão, o tenente-coronel João Godinho não era grande apreciador de chá. “Há tempos, esteve cá a SIC e apareci na televisão de copo na mão. A minha mãe telefonou-me: ‘Então tu agora bebes chá?’” Godinho recorda-se do episódio durante uma visita a um posto de vigia da guarnição de Pol-e-Charki, na área de Cabul, após Shukur oferecer-lhe uma caneca de chá. Os afegãos gostam de receber bem, e um chá predispõe para a conversa.

Três queques debaixo da cama

Neste posto — na realidade, um pequeno casebre isolado em cima de um monte — vivem três militares: Shukur, com 45 anos mas aparentando ter 60, é um antigo mujahedine de etnia tadjique que privou com o lendário comandante Massud; há ainda um pashtune da região de Kunar e um turcomeno de Mazar-e-Sharif. Não vão a casa há seis meses.

Sem que ninguém o solicite, o capitão Breda, que acompanha Godinho na ronda, acerca-se do turcomeno, às voltas com o colete antibala, e salva-o de dificuldades. À distância, dir-se-ia tratar-se de soldados de um exército só. As fardas são parecidas — há portugueses que optam por andar de camuflado intencionalmente para criar proximidade — e as cores das bandeiras quase coincidem.

Na guarnição de Pol-e-Charki, o capitão Breda ajuda um militar atrapalhado com o colete antibala. Os afegãos gostam dos portugueses: “Estão aqui para nos ajudar”, dizem MARGARIDA MOTA

Debaixo de uma cama há uma caixa de madeira com armas e munições. Em cima da caixa, três pequenos queques matarão a fome mal haja uma pausa na vigia. A seguir ao chá, Shukur oferece os bolos aos visitantes portugueses. “Os afegãos são generosos”, continua Godinho. “Foi uma grande surpresa para mim.” Não raras vezes, com um copo de chá na mão, portugueses e afegãos perdem-se à conversa sobre as famílias. “Falamos de trabalho, de questões pessoais, abrimos o coração”, comenta o tenente-coronel Paradelo. “Os americanos não percebem…”

A servir no Afeganistão pela segunda vez, Octávio Vieira tem experiência acumulada no relacionamento com os locais. “O afegão adora que o olhemos nos olhos, que o cumprimentemos, que confiemos nele, sem receio de tirarmos o colete ou a pistola. Adora que sejamos um amigo — e não um invasor.” Destacado no quartel-general da ISAF, em Cabul, este tenente-coronel trabalha rodeado por americanos. No dia em que Bin Laden foi morto, testemunhou, na primeira fila, a euforia dos colegas. “Parecia que tinham ganho um campeonato do Mundo. Não reagi, fiquei calado. Preocupa-me as reações hoje, amanhã, enfim, quando menos esperarmos…”

Artigo publicado na Revista Única do Expresso, a 18 de junho de 2011