A vingança pelo 11 de setembro serviu-se no Afeganistão. Iniciada a guerra, o regime talibã sobreviveu pouco mais de um mês, mas, dez anos volvidos, o país continua a acumular indícios de um Estado falhado. Seis militares portugueses recordam as suas missões
Enquanto milhões de muçulmanos participavam em ruidosas celebrações, um pouco por todo o mundo, assinalando o fim do Ramadão, a tradicional mensagem festiva divulgada pelo líder dos talibãs afegãos quase passava despercebida. Postada no website dos talibãs, a 28 de agosto passado, a comunicação foi, aos olhos de muitos observadores, a mais significativa em termos políticos que mullah Omar alguma vez enviou aos seus seguidores.
Ao estilo de uma espécie de “discurso da união”, o líder talibã não descartou a possibilidade de uma partilha de poder com o governo instalado em Cabul. E, pela primeira vez, admitiu que o movimento está em negociações com “algumas partes” (no que foi interpretado como uma referência aos norte-americanos) visando a libertação de prisioneiros.
A existência de conversações com os talibãs é um embaraço que, nos Estados Unidos, só se admite à boca pequena. Quase dez anos após o início da guerra no Afeganistão — desencadeada para vingar o 11 de setembro, punindo o regime que dava guarida a Osama bin Laden e à sua Al-Qaeda —, o inimigo de ontem tornou-se a secreta esperança para que, amanhã, o Afeganistão recupere alguma estabilidade e os EUA possam livrar-se do fardo afegão.
Uma cara fatura
Com o país assolado pela crise da dívida, para as autoridades norte-americanas é cada vez mais difícil justificar aos contribuintes os milhões gastos no Afeganistão. Cerca de 100 mil militares continuam no teatro afegão e, segundo estimativas da própria Administração norte-americana, o custo de cada militar destacado ascende a um milhão de dólares (704 mil euros) por ano. Em números redondos, a guerra já custou ao erário americano 450 mil milhões de dólares (318 mil milhões de euros).
Para muitos americanos, a morte de Osama bin Laden, em maio, veio esvaziar de sentido o esforço militar em solo afegão. Acresce que desde 2004, a cada novo ano, morrem cada vez mais militares. Com 69 baixas, agosto foi o mês mais mortífero para as tropas americanas. No total, desde o início da operação Liberdade Duradoura, a 7 de outubro de 2001, a coligação da NATO já perdeu mais de 2700 militares, entre os quais pelo menos 1756 americanos. Portugal, presente desde 2004, perdeu dois homens.
A pressão para retirar aumenta a cada baixa e reflete-se na predisposição dos EUA para continuar na guerra. Até 2014, a Força Internacional de Assistência para a Segurança (ISAF) — a coligação da NATO no país — quer formar 240 mil militares e 160 mil polícias afegãos, que receberão a responsabilidade pela segurança no território.
Um país falhado
Estatísticas da NATO revelam que no primeiro semestre de 2011 cerca de um em cada sete soldados afegãos desertaram. Queixam-se, muitas vezes, de não poderem ir a casa com regularidade. Num país onde, regra geral, a lei da tribo sobrepõe-se à lei do Estado, a vida longe do núcleo familiar é artificial. “No Afeganistão, há 7000 vales e cada vale tem a sua tribo, o seu clã e a sua língua ou dialeto”, diz um aforismo local.
Dez anos de guerra — a que se somam anos sombrios de dominação talibã (1996-2001) e a invasão soviética (1979-1989) — cansaram o povo e esgotaram o país. Hoje, o Afeganistão coleciona evidências próprias de um Estado falhado. Economicamente, depende de uma atividade criminosa — o tráfico de droga. É o pior país para uma criança nascer, denuncia a UNICEF. É o segundo país mais corrupto do mundo, revela a Transparência Internacional. No Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas não vai além do 155º lugar. E é o pior sítio para uma mulher viver — ou não fosse a surrada burqa azul a imagem de marca do país.
O Afeganistão é o pior país para uma criança nascer e o segundo mais corrupto do mundo
Em 1858 — tinham já os britânicos sofrido o primeiro de três desaires históricos no Afeganistão —, Frederick Engels assinava, na “The New American Cyclopaedia” uma descrição detalhada do país. “A posição geográfica do Afeganistão e o carácter peculiar do povo dota o país de uma importância política que dificilmente pode ser sobrestimada nos assuntos da Ásia Central”, lia-se. “Os afegãos são uma raça brava, destemida e independente.” (Etimologicamente, Afeganistão quer dizer “a terra dos pashtunes” e pashtune significa indomável.)
Mais de 150 anos após as constatações de Engels, as configurações geográfica e étnica do país — tido como um “cemitério de impérios” — continuam a ser um quebra-cabeças difícil de decifrar para qualquer invasor.

MILITARES PORTUGUESES NO TEATRO AFEGÃO
Serviram no Afeganistão, alguns mais do que uma vez. Concordam que a experiência foi difícil mas enriquecedora
António Rodrigues: Uma ponte entre culturas
Quando em 2008 o jornalista iraquiano Muntadar al-Zaidi arremessou um sapato contra George W. Bush, muitos ocidentais descobriram que, mais do que uma tentativa de agressão, o gesto constituía um dos piores insultos no mundo muçulmano. Quem quer que já tenha assistido às palestras de sensibilização cultural do sargento-ajudante António Rodrigues há muito que está consciente do cuidado a ter quando se levanta a perna em conversa com um muçulmano: exibir-lhe a sola do sapato é o mesmo que trata-lo como lixo. Este hábito cultural é particularmente sensível no Afeganistão, onde apontar o dedo pode ser visto como um gesto autoritário e olhar uma mulher nos olhos pode ser considerado assédio. “No Afeganistão, a barreira entre o que é Islão e o que é tribal é muito ténue. Vive-se o Islão de uma forma muito séria, mas há aspetos que são culturais, específicos de certas regiões. É um país com muitas assimetrias. Percebe-las, torna-se quase um puzzle.” António Rodrigues esteve seis meses no Afeganistão, em 2006. Fluente em árabe — e com conhecimentos de pashtu e dari, as principais línguas locais —, acumulava anos de estudo e viagens por países árabes e islâmicos quando surgiu a proposta para trabalhar como assessor cultural no quartel-general da NATO em Cabul. No primeiro dia de trabalho, o professor afegão com quem trabalharia em parceria transmitiu-lhe um adágio que haveria de o orientar nos contactos diários com os afegãos: “No primeiro dia em que nos encontramos somos amigos; no segundo dia já somos irmãos.” Por isso, nas reuniões de trabalho, em particular, ele alertava para cuidados a observar: evitar olhar para o relógio, por exemplo. “Os afegãos dizem que os ocidentais têm o relógio, mas que eles têm o tempo. É tudo feito com muita tranquilidade. Chegar-se atrasado a um encontro é normal.” O Ramadão e a grande peregrinação a Meca (hajj) eram épocas sensíveis. No mês do jejum, o militar aconselhava a que se evitasse comer e beber na presença de afegãos. E na época da hajj, desaconselhava o uso de cães nas operações de revista aos peregrinos. “É comum algumas organizações no terreno usarem cães para detetarem droga ou armamento. No Afeganistão, o facto de um cão poder tocar em alguém é um anátema. O afegão acredita que, por essa razão, quando morrer não irá para o céu. E é ostracizado pela família e pela tribo.” No Afeganistão, António Rodrigues sentia-se a “fazer a ponte” entre culturas. Em Portugal, sente um “enorme prazer” em fazer palestras para os militares que vão para os teatros islâmicos onde Portugal está presente — Líbano e Afeganistão. “Sinto que vão para as missões com outra preparação e outra sensibilidade.” E no Afeganistão, em especial, respeitar os costumes locais é “fundamental” para que a NATO seja vista como parceira e não como ocupante.
‘‘O Afeganistão tem muitas assimetrias. Percebê-las é quase um puzzle”
Carlos Barry: A adrenalina do perigo
No Afeganistão, um campo de papoilas tem tanto de bonito quanto de traiçoeiro. A 25 de maio de 2007, o sargento-ajudante Carlos Barry ficou a sabê-lo da pior forma. Integrado numa patrulha apeada, numa zona rural de Kandahar, foi alvo de uma emboscada. Atingido por estilhaços de uma granada lançada pelos insurgentes, foi, dos cerca de 30 militares da coligação emboscados, o único ferido que teve de ser evacuado. Após quatro dias de internamento, optou por retomar a missão. “Sentia-me bem. Não havia necessidade de regressar a Portugal.” O sargento cumpria a sua segunda missão no Afeganistão. A anterior, em 2005, fora passada também ao serviço da Força de Reação Rápida. Regressaria em 2009 e em 2011, para servir na força de proteção às equipas de mentores com que Portugal contribui para a formação das forças de segurança afegãs — presentemente, o principal pilar da estratégia da NATO. “Apesar do perigo, o Afeganistão é um teatro muito aliciante e com características muito próprias. O facto de estarmos em constante alerta puxa por nós e faz-nos crescer enquanto militares. É esse tipo de sentimento que me atrai. É um desafio constante.” A cada regresso, sente que o conflito está diferente. “Está em constante mutação. É uma espécie de jogo do gato e do rato. Os insurgentes criam uma nova forma de ataque, nós combatemo-los, eles alteram a forma de atuar e assim sucessivamente.” Sem sequelas físicas e psicológicas, confessa que o ferimento em Kandahar mudou-o enquanto militar. “As experiências moldam-nos. Uma coisa é sabermos que existe a ameaça, outra é, quando ela realmente se manifesta, agir de acordo com o lema ‘treina como combates, combate como treinas‘.” A emboscada em Kandahar não foi, porém, o seu dia mais difícil no Afeganistão. Esse aconteceu a 18 de novembro de 2005 quando o primeiro-sargento Roma Pereira tornou-se a primeira baixa do contingente português. (A 24 de novembro de 2007, num acidente de viação, viria a falecer também o soldado para-quedista Sérgio Pedrosa.) Roma Pereira estava prestes a terminar o patrulhamento numa zona de Cabul — a patrulha de Carlos Barry ia rendê-lo – quando a viatura foi atingida por um engenho explosivo de fabrico artesanal. Teve morte imediata. “Ele era do meu curso de comandos, era como um irmão para mim. Cada vez que saio para uma missão, faço questão de ir onde ele está enterrado. É um ritual.”
‘‘É um conflito em constante mutação, uma espécie de jogo do gato e rato”
Nuno Lemos Pires: Difícil vencer a saudade
Havia cinco meses que “Quem Quer Ser Bilionário?” conquistara Hollywood. Num avião com destino a Cabul, Nuno Lemos Pires cede à curiosidade e visiona o filme. A caminho do Afeganistão, para fazer o reconhecimento para o contingente nacional que se seguiria, não fica indiferente à pobreza extrema de Bombaim. “Se tivesse visto o filme em Portugal, se calhar, não tinha tido o mesmo efeito. Mas vê-lo a caminho do Afeganistão, fez-me pensar: Estas coisas têm de ser contadas!” E foi assim que, entre outubro de 2009 e abril de 2010, quase todos os dias, findo o trabalho de mentoria, abria um documento Word, relatava o dia a dia e o contexto social em redor. Escolhia algumas fotos e enviava tudo num e-mail — inicialmente para 20 a 30 pessoas, “esmagadoramente, família e amigos de longa data”. Graças ao efeito multiplicador dos reenvios, os leitores foram aumentando. De regresso a Portugal, as cartas haveriam de ser publicadas em livro — “Cartas de Cabul” (Tribuna, 2010). Em todas elas, uma dedicatória apaixonada aos três filhos e à mulher. “A missão custa mais à família. No Afeganistão, enfrentamos o perigo, mas quem fica tem a responsabilidade de gerir a família, passa por aqueles momentos em que tem de transportar um filho ao hospital, tratar das papeladas no banco… E, geralmente, nunca transmite a quem está na missão os problemas que se passam. É curioso, nós fazemos o mesmo do lado de lá.” Na véspera de operações de risco, Lemos Pires poupava a família a pormenores. Escrevia, mas não partilhava. Apesar da guerra, a maior dificuldade foi lidar com a saudade. “Não sentir o contacto físico da família, dos amigos é o mais difícil da missão.” As novas tecnologias ajudaram. “Bendito Skype! Era um ritual, perto da meia-noite. O meu filho tinha um ano e várias vezes foi atrás do computador ver se o pai lá estava.” Este tenente-coronel diz não esquecer aquele afegão que, num campo de refugiados, tentou vender duas filhas para comprar comida. Por isso, a missão portuguesa no país não deve ser posta em causa. “Portugal deve estar onde pode fazer a diferença. Não temos de fazer mais do que os americanos, nem menos do que os luxemburgueses. É à nossa dimensão e dentro das nossas possibilidades. Somos um aliado leal. É uma questão de princípio humanitário universal.”
‘‘ Não sentir o contacto físico da família, dos amigos é o mais difícil da missão”
António Martins: Militar mas desarmado
Aos seis meses de missão, António Martins não ganhou para o susto. Na madrugada de 28 de outubro de 2009, começou a ouvir disparos perto de casa, no centro de Cabul. Ficou com a sensação de que, não longe dali, decorria um ataque, e que se aproximavam perigosamente. Sem viatura nem arma, pensou num plano de fuga: “Só me restava fugir pelos quintais fora, o que seria um grande risco”. Os disparos terminaram e acabou por não o fazer. Mais tarde, soube o que acontecera: a 500 metros dali, três suicidas entraram na Backtar House, a maior guest house da ONU em Cabul, que albergava mais de 20 funcionários, e tinham morto cinco. “Foi o primeiro grande ataque às Nações Unidas no Afeganistão.” O tenente-coronel António Martins desempenhava funções de assessoria militar na missão da ONU no Afeganistão (UNAMA). “Fazia relatórios sobre o progresso da campanha militar para depois a organização avaliar se podia avançar com os seus projetos de apoio às populações.” Envergava uniforme militar, mas, como trabalhava para uma organização civil, andava desarmado. “Foi pedido a Nova Iorque que fosse revisto o nosso estatuto de forma a darem-nos, pelo menos, uma pistola para defesa pessoal, mas nada foi conseguido. Andávamos muito vulneráveis.” A situação tornou-se crítica a partir do momento em que a ONU, à semelhança do que acontecera no Iraque, por exemplo — a 19 de agosto de 2003, um ataque suicida matou Sérgio Vieira de Mello, chefe da missão da ONU em Bagdade, e 21 membros do seu staff — tornou-se um alvo da insurgência, por estar a colaborar na organização de eleições. “Houve momentos em que senti falta da arma.” O militar partilhava a casa com mais quatro funcionários da UNAMA. “Tínhamos três guardas afegãos à porta, armados com apenas duas metralhadoras, mal preparados e pouco motivados para a função.” Em Cabul, a organização tinha cerca de 70 guest houses semelhantes. “Eram posições frágeis e vulneráveis. O maior risco era sermos raptados, para pedirem resgates. As Nações Unidas eram um alvo fácil e mediático.”
Octávio Vieira: A educação como arma
Octávio Vieira é um bom exemplo de como, no Afeganistão, a componente militar é apenas uma das frentes para se vencer o conflito. Em janeiro de 2006, procurou Fernando Nobre para lhe apresentar um projeto de construção de uma escola na região de Jalalabad, junto à fronteira com o Paquistão. Uns meses antes, em Cabul, a ideia fora-lhe apresentada pela dona dos terrenos. Financiada pela AMI, a escola cresceu, e hoje, com cerca de 500 alunos — a maioria meninas —, é um modelo para o ministério da Educação local. “A educação é a grande arma para se vencer o desafio da paz. A falta de conhecimento foi uma característica do regime talibã. Só com acesso à educação é que as futuras gerações poderão ser críticas e melhorar a situação do país.” Este projeto educativo estaria na base da relação afetiva que este tenente-coronel desenvolveria com o Afeganistão, onde regressaria para mais três missões. “Em nenhuma outra criei tantos contactos e amizades tão genuínas.” Antes já servira no Kosovo, Timor-Leste e Iraque. “É a motivação das missões. Quando estava no Colégio Militar sempre tive essa vontade. É também o gosto de trabalhar em ambientes internacionais, de conhecer pessoas e de sentir que se faz parte da História. De poder dizer: Eu estive lá!” No dia em que Osama bin Laden foi morto, Octávio Vieira — que trabalha na área das Informações, no quartel-general da NATO em Cabul — soube da operação antes de ser noticiada. “Ligaram-me cedo a dizer que o tinham apanhado. Ainda não estava a trabalhar. Depois, assistimos em direto ao anúncio do Presidente Obama.” Seguiram-se as manifestações de rejúbilo dos colegas americanos. “Não me manifestei. A morte de alguém, nem que seja meu inimigo, não é motivo para eu festejar.” Diz já ter estado várias vezes sob fogo. Porém, prefere recordar os dias felizes que tem vivido em solo afegão. O último aniversário, por exemplo. “As prendas, ainda que simbólicas, têm mais importância. Somos todos família.” O próximo Natal será em Cabul. “Terá um sabor diferente, mais sentido, junto dos portugueses que ficarem. Ali sente-se o verdadeiro espírito de Natal.”
Carla Pinto: E Sayed sorriu…
A primeira tenente da Marinha recorda a luta para salvar um menino hemofílico
No dia em que parti para o Afeganistão, a 4 de novembro de 2009, travei uma “batalha de emoções”. Desempenhar funções num hospital internacional, como médica naval especialista em Medicina Interna, dirigindo uma força de 14 profissionais de saúde que representavam Portugal, era uma enorme responsabilidade profissional e militar. Mas tinha esperança de que a recompensa de poder ser útil num país em conflito me ajudasse a vencer o medo e a gerir a incerteza nos desafios que ia encontrar. Determinada, deixei um “até logo” confiante aos meus familiares e amigos, tristes por me verem partir não para uma missão humanitária mas… para a guerra! Face às características culturais da sociedade afegã, e sendo a nossa equipa de enfermaria maioritariamente feminina, esperava resistência à observação médica por parte dos homens e o oposto por parte das mulheres. Mas isso não se verificou, primeiro porque os homens logo constatavam que não tinham alternativa a serem vistos por uma equipa do sexo feminino; em segundo, porque as mulheres raramente tinham acesso aos cuidados de saúde. Por vezes, as afegãs vinham ao hospital acompanhadas por homens da família. Debaixo da burca, só começaram a ser revistadas no acesso ao hospital, tal como acontece com os homens, dois meses após a nossa chegada porque, só então, foi possível destacar mulheres militares para o efeito. No internamento, as mulheres não usavam burca. Resguardavam-se atrás de biombos e lenços e eram observadas, sempre que possível, por médicas. Os internamentos eram forçosamente curtos por pressão dos homens da família. Até as crianças do sexo feminino chegavam a ter de abandonar o internamento contra parecer médico. Mas houve exceções. Guardo na memória o agradecimento profundo de um militar afegão por ter tratado a sua esposa, grávida, vítima de uma explosão de gás, que apresentava queimaduras nas mãos e na face, tratada apenas na enfermaria por falta de vaga nos cuidados intensivos. O marido nunca pressionou a alta porque tinha noção do seu sofrimento. Uma das histórias que mais me marcou foi a de Sayed Fardien, um menino hemofílico de cinco anos. O remédio de que necessitava — fator VIII, constituinte do sangue que impede a hemorragia — estava esgotado no Afeganistão. Consciente de que o fator VIII era de uso exclusivo hospitalar e tinha um preço elevado, sabia que aquela criança, sem o medicamento, estava condenada à morte. Adquiri-lo era vital e teria de ser vitalício. Apresentado o caso clínico no hospital, foi enviado um pedido à Federação Mundial de Hemofilia e aos laboratórios internacionais que tinham programas de apoio a países necessitados. A resposta tardava e a probabilidade daquela criança chegar ao hospital com uma hemorragia grave incontrolável aumentava de dia para dia. Mas não podíamos desistir. Contactei a Direção-Geral de Saúde, em Portugal, que orientou o pedido para o Alto Comissariado da Saúde. Para poder executar contactos diretos, foi solicitada autorização ao chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas portuguesas. O despacho não podia ser mais encorajador: autorizadíssimo! Observei o menino a 19 de dezembro e quase não necessitava de análise laboratorial para confirmar a doença. A criança apresentava sinais externos de coagulopatia (problema de coagulação) com uma infeção respiratória associada. Ficou internado com prognóstico reservado, mas, depois de iniciar o antibiótico, melhorou e teve alta. Garantido o transporte do fator VIII pela Força Aérea Portuguesa, a 17 de fevereiro, recebi o fator de coagulação que poderia salvar aquele menino. Eu terminava a missão em meados de março e, para garantir a continuidade dos tratamentos, solicitei apoio aos médicos portugueses que me foram render e aos médicos franceses que continuariam em missão. O seguimento e acompanhamento no hospital ficaram garantidos sem restrições. Em conjunto, “um por todos e todos por um”, vencemos este desafio. Missão cumprida!
Artigo publicado na Revista Única do “Expresso”, a 10 de setembro de 2011






