Liga Árabe apresenta hoje no Conselho de Segurança da ONU um projeto de resolução que prevê o afastamento de Bashar al-Assad. O regime sírio conta com a proteção da Rússia
O Conselho de Segurança das Nações Unidas reúne-se, hoje à tarde, em Nova Iorque, para discutir um projeto de resolução sobre a crise na Síria, de iniciativa dos países árabes.
Nabil al-Arabi, secretário-geral da Liga Árabe, tem prevista uma intervenção para apresentar as grandes linhas da proposta, que passam pelo fim da violência, pela transferência de poderes do Presidente Bashar al-Assad para o seu vice-presidente e pela abertura de negociações com a oposição.
“A renúncia de Assad é a condição para qualquer negociação sobre a transição para um Governo democrático na Síria”, reagiu Burhan Ghalioun, líder do Conselho Nacional Sírio (CNS), que agrupa a oposição ao regime. No passado dia 3, Ghalioun esteve em Lisboa, onde foi recebido por Paulo Portas e solicitou apoio à diplomacia portuguesa.
Portugal é membro não-permanente no Conselho de Segurança para o biénio 2011-2012. O ministro dos Negócios Estrangeiros português estará presente hoje em Nova Iorque, tal como os homólogos dos EUA (Hillary Clinton), França (Alain Juppé) e Reino Unido (William Hague).
Em várias intervenções públicas, Paulo Portas tem-se mostrado favorável a uma “iniciativa árabe” no Conselho de Segurança como saída para a crise na Síria.
Objeções da Rússia
A Rússia tem sido, na comunidade internacional, o grande apoiante do regime de Assad e — por força do seu direito de veto no Conselho de Segurança — o grande obstáculo à sua condenação, desde que começaram as manifestações antirregime, há 11 meses.
Moscovo tem uma importante base naval na Síria, em Tartus — com origem num acordo de 1971 — que é uma peça importante do velho desígnio geoestratégico russo de estar presente nos “mares quentes”.
Hoje, o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Gennady Gatilov, escreveu no Twitter: “O projeto de resolução ocidental do Conselho de Segurança sobre a Síria não conduz a um compromisso. Defender esta resolução é meio caminho para a guerra civil”.
As objeções russas levaram o ministro francês dos Negócios Estrangeiros a admitir, ontem, que ainda não estavam reunidas as condições para que fosse adotada uma resolução condenatória do regime sírio. Mas para Alain Juppé sobram razões para ir à reunião no Conselho de Segurança: “Vou a Nova Iorque fazer a máxima pressão para que acabe esta matança”, disse.
Violência diária no terreno
A cada dia que passa, a situação na Síria assemelha-se a uma guerra civil. Hoje, o Conselho Nacional Sírio (CNS) apelou, em comunicado, para que seja realizado um “dia de luto e cólera”. A coligação opositora lamentou a ausência de “medidas rápidas”, por parte da comunidade internacional, “para proteger os civis com todos os meios disponíveis” e defendeu que o regime de Bashar al-Assad “se aproveita” das divisões internacionais para “acentuar a repressão”.
Com os jornalistas estrangeiros impedidos de entrar no país — na última edição do Expresso, o repórter Paulo Nunes dos Santos relata como correu perigo de vida durante sete dias em território sírio —, os relatos da repressão chegam, sobretudo, através do Observatório Sírio dos Direitos Humanos, com sede em Londres.
Segundo informações dos Comités Locais de Coordenação, só na segunda-feira terão morrido mais de 100 civis. Os ativistas acusam o regime de utilizar carros de combate e armas pesadas no bombardeamento a bairros onde, estimam, estão escondidos desertores do exército sírio.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de janeiro de 2012. Pode ser consultado aqui
A 25 de janeiro de 2011, os egípcios saíram, pela primeira vez, à rua para exigir o fim do regime de Hosni Mubarak. Um ano depois, a praça Tahrir continua a atrair manifestações
Um ano após a realização da primeira manifestação de contestação ao regime de Hosni Mubarak — convocada através do Facebook —, a mítica praça Tahrir, no centro do Cairo, continua a ser palco de protestos.
A grande reivindicação popular de há um ano foi conseguida — Mubarak cairia a 11 de fevereiro —, mas o regime continua (quase) intacto. Herdeiros do poder do Presidente, o Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF) tarda em transferir o poder para os civis, como prometeu.
Nas ruas, cresce a desconfiança em relação aos militares, outrora vitoriados pelo povo por se recusarem a disparar contra os manifestantes. Ainda assim, durante os 18 dias de protestos na praça Tahrir, morreram cerca de 850 mortos e 6000 feridos.
Acusado de ter ordenado os disparos contra os manifestantes, Hosni Mubarak — que está a ser julgado desde agosto de 2011 — incorre na pena de morte por enforcamento.
Islamitas no poder
As eleições legislativas realizadas para a câmara baixa do Parlamento, entre novembro de 2011 e janeiro de 2012, ditaram uma maioria islamita no Parlamento. Sem surpresa, a Irmandade Muçulmana (Partido Liberdade e Justiça) arrecadou 47,2% dos votos. Era a fação mais bem organizada, ainda que remetida para a clandestinidade durante a era Mubarak.
A grande surpresa eleitoral foi o segundo lugar conquistado pelo Partido An-Nour, salafita — uma interpretação integrista do Islão, inspirada no waabismo saudita —, que conquistou 24,3% dos votos. Esta formação política foi criada na sequência da revolução e é financiada pela Arábia Saudita.
O novo Parlamento começou a funcionar na passada segunda-feira. Terá como uma das principais funções nomear uma assembleia encarregue de elaborar uma nova Constituição.
ElBaradei fora da corrida
De acordo com o último calendário apresentado pelos militares, o Egito deverá realizar eleições presidenciais ainda durante o primeiro semestre de 2012.
O ex-secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, mantém-se na corrida. Mas Mohammed ElBaradei — antigo diretor da Agência Internacional para a Energia Atómica e Nobel da Paz — atirou a toalha ao chão, a 14 de janeiro.
“A minha consciência não me permite concorrer à presidência ou a qualquer outra posição oficial, a menos que seja dentro de um quadro democrático”, afirmou.
Tal como muitos egípcios, ElBaradei considera que os militares têm vindo a governar o Egito como que se a revolução não tivesse acontecido e o regime anterior estivesse ainda intacto.
Segunda fase revolucionária
Ontem, numa tentativa de conter a euforia que se adivinha para os protestos associados ao aniversário da revolução, o SCAF levantou, parcialmente, o estado de emergência que vigorava no país (quase ininterruptamente) desde 1967.
Esta legislação — que implica a suspensão de direitos constitucionais e confere às forças de segurança poderes adicionais na repressão de protestos, por exemplo — foi imposta durante a Guerra dos Seis Dias com Israel, levantada em 1980 e reintroduzida em 1981, após o assassinato do Presidente Anwar Sadat.
Num discurso transmitido pela televisão, o líder do SCAF, marechal Hussein Tantawi, disse que, apesar do fim do estado de emergência, as leis continuariam a ser aplicadas a “bandidos”.
Na terminologia do SCAF, “bandidos” são também os organizadores dos protestos anti-regime. Os mesmos que, um ano depois, dizem que a revolução precisa de entrar numa segunda fase.
A desconfiança reina no processo de paz para o Médio Oriente. O israelita Benjamin Netanyahu e o palestiniano Mahmud Abbas vieram à Europa pedir apoio. Fotogaleria
O assunto desapareceu das manchetes, mas as diplomacias israelita e palestiniana não estão paradas. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, e o Presidente palestiniano, Mahmud Abbas, estão na Europa para desenvolverem contactos e angariarem apoios. A desconfiança reina entre as partes e a paz não passa de um processo de intenções.
Na próxima terça-feira, na Sociedade de Geografia de Lisboa, José Salomão Ruah, da Comunidade Israelita de Lisboa, e Raúl Braga Pires, professor na Universidade de Rabat e coordenador do blogue “Maghreb/Machrek”, alojado no sítio do Expresso, irão debater “Perspetivas sobre o Processo de Paz no Médio Oriente”.
De visita à sinagoga portuguesa em Amesterdão (1675), o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, disse na quarta-feira que “um Irão nuclear é um perigo para Israel, a região e o mundo”Netanyahu defendeu “sanções afiadas” contra o petróleo e o Banco Central do Irão. O seu ministro da Defesa, Ehud Barak, disse que a opção militar contra Teerão é o “último recurso”Netanyahu mandou recados aos palestinianos: “Estou pronto para me encontrar com Abu Mazen (o Presidente) em qualquer lado e em qualquer altura. Apelo a que ele não fuja da paz”O rei da Jordânia, Abdullah II, que na terça-feira foi recebido por Barack Obama, promoveu um encontro israelo-palestiniano, na semana passada, em Amã. São “pequenos passos em frente”O diálogo foi suspenso após os palestinianos terem solicitado, na ONU, em setembro, o reconhecimento da Palestina independente. Uma reivindicação feita por estas mulheres bósniasOs palestinianos têm eleições gerais previstas para 4 de maio. O mandato do Presidente Mahmud Abbas terminou em janeiro de 2009. E as legislativas deveriam ter-se realizado no ano passadoA Fatah (do Presidente Abbas) governa a Cisjordânia, onde um muro separa palestinianos dos colonos judeus. Em Gaza, reina o Hamas. A reconciliação foi assinada em abril passadoNo domingo, o Presidente Abbas (Fatah) viajou até à Europa para visitar o Reino Unido, Alemanha e Rússia. Na foto, a sua mensagem no livro da visitas da presidência alemãO primeiro-ministro Ismail Haniyeh (Hamas) visitou, esta semana, o Egito, Sudão, Turquia e Tunísia. Aqui, falou para membros do Ennahda (islamita), vencedor das eleições pós-Ben AliNa quarta-feira, a aviação israelita bombardeou Beit Hanun, no norte da Faixa de Gaza. Morreram dois palestinianos que Telavive acusa terem colocado uma bomba junto à fronteira com IsraelIsrael vive em vigilância constante. Esta semana, decorreram exercícios militares em Amikon, no norte, visando corrigir erros cometidos durante a última guerra com o Líbano, em 2006Ocupados por Israel em 1967, os montes Golã são reclamados pela Síria. Por estes dias, muitos israelitas aproveitam o manto de neve que cobre os Golã para descontrairEm Israel, o inimigo surpreende de forma cada vez menos convencional. Na segunda-feira, um hacker saudita atacou os sítios na internet da Bolsa de Israel e da companhia aérea El AlAs ruas israelitas provocam, também, dores de cabeça às autoridades. Protestos populares de grande dimensão (como o da foto, em Kiryat Malachi, no sul) pressionam o governo de TelaviveNa quarta-feira, em Jerusalém, israelitas judeus de ascendência etíope protestaram, em frente ao Parlamento (Knesset), contra o racismo e a discriminaçãoNa véspera, na mesma cidade, mulheres participaram numa “flash-mob” (coreografia coletiva num local público), em protesto contra a segregação sexual defendida por judeus ultra-ortodoxosMuitos judeus-ortodoxos, como o da foto, em oração junto ao Muro das Lamentações, em Jerusalém, instigam as mulheres a ocuparem as partes traseiras dos autocarros, por exemploEntre os palestinianos, os protestos sobretudo a libertação de familiares, detidos nas prisões israelitas. Estima-se que cerca de 6000
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de janeiro de 2012. Pode ser consultado aqui
Aung San Suu Kyi está disposta a participar nas eleições de abril. Já se fala numa ‘primavera birmanesa’
Aung San Suu Kyi, a 22 de março de 2012, numa ação de campanha para as eleições de abril, em Kawhmu HTOO TAY ZAR / WIKIMEDIA COMMONS
A Dama de Rangum está de volta ao combate político. Vinte e dois anos após ter vencido as eleições legislativas em Myanmar — e de ter sido impedida de governar pela junta militar —, a Prémio Nobel da Paz apresentou, na quarta-feira, na comissão eleitoral birmanesa, uma lista de candidatos da sua Liga Nacional para a Democracia às eleições parciais de 1 de abril.
Em causa estarão apenas 48 dos 440 lugares da câmara baixa do Parlamento, deixados vagos por personalidades que entraram para o Governo. Suu Kyi será candidata pelo círculo de Kawhmu, uma zona pobre a sul de Rangum devastada, em 2008, pelo ciclone Nargis.
Ainda que o seu partido arrebate os 48 lugares, ficará com um poder reduzido num hemiciclo dominado ainda por militares e seus aliados. Mas só o facto de Suu Kyi ganharum palco para se fazer ouvir, no coração do poder, é uma conquista histórica. Recorde-se que a Nobel da Paz 1991, de 66 anos, passou 15 dos últimos 21 anos de vida numa “prisão” situada no número 54 da Avenida da Universidade, em Rangum — a sua própria residência.
O anúncio do regresso de Suu Kyi à política segue-se à libertação, fez ontem uma semana, de 650 prisioneiros políticos, entre os quais vários ativistas pró-democracia — entre os quais Min Ko Naing, o líder do movimento estudantil Geração 88 —, monges budistas que participaram na chamada ‘revolução de açafrão’ de 2007 e generais, agentes dos serviços secretos e um ex-primeiro-ministro, detidos na sequência de uma luta pelo poder, em 2004.
“Com a libertação de vários presos políticos proeminentes, a esperança está a substituir a dúvida em relação a um Myanmar mais livre e melhor. A libertação dos presos políticos injetou uma energia nova e impulsionou o espírito de reconciliação no país”, comentou, em editorial, o jornal “The Irrawaddy”, fundado em 1992 por birmaneses exilados na Tailândia.
O dedo do novo Presidente
Em entrevista publicada, na segunda-feira, no jornal francês “Libération”, Aung San Suu Kyi interpretou as razões destas mudanças. “Têm muito que ver com o Presidente Thein Sein e os outros reformadores no Governo, que se aperceberam da necessidade da mudança na Birmânia” (ver outras citações no fim do texto).
Desde março que o país tem um novo Executivo que cedo deu sinais de abertura. Paralelamente ao diálogo com Aung San Suu Kyi e à libertação de presos políticos, as novas autoridades assinaram um cessar-fogo com os rebeldes de etnia karen. Na quinta-feira, iniciaram conversações com os insurgentes da etnia kachin. Oficialmente, estão registadas no país 135 etnias.
Os EUA deixaram cair o rótulo de “pária” e anunciaram o envio de um embaixador para Myanmar — o que não acontecia há 20 anos. Há quem já fale numa ‘primavera birmanesa’, mas Suu Kyi é cautelosa: “Não estamos fora de perigo. Precisamos de mudanças suplementares. Não usarei a palavra ‘irreversível’, porque nada é irreversível”.
Citações de Aung San Suu Kyi
Concordo com a ideia de que as sanções devem ser levantadas passo a passo, seguindo de perto os progressos realizados
Faremos campanha pela resolução dos problemas com as etnias nacionais (…) e para que o maior número de pessoas saia da pobreza. Propomos projetos de microcrédito
NOS CINEMAS
“The Lady — Um Coração Dividido” revela o dilema de Aung San Suu Kyi entre viver com a família no Reino Unido e ir para Myanmar lutar pela democracia. O filme é realizado pelo francês Luc Besson. A atriz malaia Michelle Yeoh é Suu Kyi.
Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de janeiro de 2012
Ben Ali caiu há um ano. A Tunísia deu o mote e o mundo árabe entrou em convulsão
A foto não fez manchetes, mas é, porventura, das mais simbólicas de todo o portfólio da Primavera Árabe. Nela vê-se Zine El Abidine Ben Ali, então Presidente da Tunísia, de visita a um doente hospitalizado, com o corpo totalmente coberto por ligaduras. Trata-se de Mohamed Bouazizi, de 26 anos, que se imolara pelo fogo em protesto contra a apreensão da sua banca ambulante. O ato de desespero inflamou as ruas e Ben Ali viu o seu reinado de 23 anos tremer. A visita realizou-se a 28 de dezembro de 2010. Bouazizi morreria uma semana depois. O Presidente não lhe sobreviveria politicamente muito mais tempo.
Faz hoje um ano que Ben Ali foi deposto e que a Tunísia se tornou o farol dos levantamentos populares árabes. “A maioria dos analistas diz que a Tunísia era o país lógico para um movimento como o que ocorreu. A população era homogénea (há muitos berberes, mas a identidade nacional é coerente) e educada. E era o país da região com maior classe média. Havia, pois, massa crítica para exigir direitos políticos”, diz ao “Expresso” Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford. “Porém, tudo isto só se tornou evidente após os factos. Antes da revolução, ninguém falava nestes termos. Ficámos surpreendidos com que tudo tivesse começado num país moderado, calmo e um destino turístico seguro como a Tunísia.”
A Revolução de Jasmim contagiou o mundo árabe e abriu a porta da democracia ao Islão. As eleições já realizadas (Tunísia, Egito, Marrocos) catapultaram para o poder partidos islamitas. Sem surpresa, para Eugene Rogan. “Política é organização e os partidos islamitas, por terem estado na oposição, eram os mais bem organizados. A ironia é que as pessoas que começaram as revoluções não eram, na sua maioria, oriundas de partidos islamitas. Diziam-se seculares e liberais e tiveram sucesso pelo facto de não terem qualquer organização hierárquica. Se a tivessem, as ditaduras teriam prendido os líderes e acabado com o movimento.”
A loucura dos partidos
Os povos queixavam-se dos regimes, a Al-Jazeera ajudava a circular palavras de ordem e dicas de resistência e as redes sociais mobilizavam. Obras como “Da Ditadura à Democracia”, de Gene Sharp — que lista 198 formas de luta não violentas — ou a experiência do movimento Otpor!, que liderou a revolta estudantil sérvia de 2000, tudo foi importante quando se tratou de derrubar ditadores.
Mas esta fórmula não resulta para disputar eleições. “O que dificultou a vida dos laicos foi a quantidade de partidos que criaram. Na Tunísia, havia 160 partidos a participar nas eleições parlamentares. No Egito, eram 80 ou 90 partidos. É uma loucura! Se se quer concorrer contra a Irmandade Muçulmana não se pode fazê-lo com 80 partidos, basta um”, diz Rogan.
“Os acontecimentos na Tunísia e no Egito, marcam a entrada numa nova era: a relação Islão/democracia. Os partidos islamitas estão comprometidos com valores democráticos. Vão criar um novo tipo de democracia islâmica. Não é coisa única. A Malásia ou a Indonésia têm eleições regulares e mudanças de governo. Não está em causa a capacidade do Islão acomodar a alternância. Mas é novo no mundo árabe. A próxima década será marcada por uma nova forma do Islão na política.”
Um ano de despertar árabe leva este professor britânico a dividir a região em três grupos: os países que tiveram revoluções; as monarquias; e os Estados em guerra civil (Argélia, Sudão, Líbano, Iraque e os territórios palestinianos), onde “as experiências recentes de conflitos civis amedrontam as populações na hora de sair à rua”.
De todas as sublevações, Rogan considera a do Bahrain a mais sensível. “Acontece na linha de fronteira entre sunitas e xiitas e numa área de grande importância estratégica (é sede da V Frota dos EUA).” A situação na Síria é, porém, a mais terrível. “Se o problema não for resolvido em breve, pode degenerar numa agonia de meses ou anos. É uma luta de vida ou de morte para os dois lados. Não há espaço para um compromisso negociado. Julgo que a morte de Kadhafi, na Líbia, foi preocupante para Bashar al-Assad. Sentiu que o seu povo poderia fazer-lhe o mesmo.”
Em “The Arabs — A History”, Eugene Rogan descreve o que podemos considerar os alicerces históricos da Primavera Árabe. Esse conhecimento leva-o a olhar para o mundo árabe com otimismo. “Surpreendeu-me ver cidadãos a rebelarem-se contra regimes tão opressivos. Esperaria um levantamento popular no Egito apenas porque, nos últimos anos, temos assistido a muitos sinais de descontentamento por parte de trabalhadores, estudantes, opositores ao regime, mas que nunca alcançaram a massa crítica que vimos em 2011”, diz. “O mundo árabe restituiu a soberania aos povos, que ganharam um novo sentido de dignidade. Não prevejo que se torne um paraíso. Na Europa, sabemos como sistemas democráticos podem originar governos muito maus. Dar a soberania ao povo pode resultar em governos liderados por tolos. Mas é uma evolução em relação ao que existia. Sim, estou otimista!”
Lançado em 2009, este livro descreve as esperanças e desilusões dos povos árabes, desde a conquista otomana (século XVI) até ao pós-11 de Setembro e à guerra contra o terrorismo. “Por que estagnou o mundo árabe?”, questiona Eugene Rogan. Publicado pela Penguin, não está traduzido em português.
REVOLUÇÕES CONCRETIZADAS
TUNÍSIA
Ficou conhecida como a Revolução de Jasmim, embora os tunisinos não apreciem o nome. Preferem chamar-lhe Revolta de Sidi Bouzid (a pequena cidade onde os primeiros protestos e reivindicações sociais saíram à rua) ou Revolução da Dignidade. A Tunísia foi pioneira nas sublevações antirregime e, consistentemente, foi o primeiro país a encetar um processo democrático. A 23 de outubro de 2010, os tunisinos foram chamados a votar para a Assembleia Constituinte — um escrutínio ao qual o antigo partido de Ben Ali estava impedido de concorrer. (Ben Ali, 75 anos, fugiu para a Arábia Saudita no mesmo dia em que foi deposto e a sua União Democrática Constitucional seria dissolvida dois meses depois.) Os islamitas do Movimento Ennahda (Renascimento) — interdito na era Ben Ali — conquistaram uns expressivos 41% dos votos, confirmando a máxima segundo a qual eleições livres no mundo árabe conduzirão os islamitas (moderados, ou não) ao poder. À nova Assembleia caberá a tarefa de nomear o governo transitório e propor uma nova Constituição. A 13 de dezembro, Moncef Marzouki — um antigo dissidente, ativista dos direitos humanos e líder de uma formação política laica de centro-esquerda (Partido do Congresso para a República) — tomou posse como Presidente interino da Tunísia. No dia seguinte, nomeou Hamadi Jebali, do Ennahda, primeiro-ministro. Politicamente, a Tunísia cumpre o roteiro previsto. A nível económico, as dificuldades são maiores. Na última semana, em incidentes separados, quatro tunisinos imolaram-se pelo fogo — como Mohamed Bouazizi.
Conhecida fora de portas como a Revolução de Jasmim (a flor nacional), os tunisinos preferem a designação Revolução da Dignidade MFARES / WIKIMEDIA COMMONS
EGITO
À semelhança do tunisino Ben Ali, também o egípcio Hosni Mubarak sucumbiu à contestação popular numa sexta-feira. O dia santo para os muçulmanos é, no contexto da Primavera Árabe, o dia da semana em que os manifestantes estão mais motivados para sair às ruas, especialmente após a oração do meio-dia. Mubarak, 83 anos, abandonou o poder a 11 de fevereiro. Durante 18 dias, aquela tinha sido a principal exigência da praça Tahrir, no centro do Cairo. Mas onze meses depois, os egípcios sentem que a revolução está por concluir. Após Mubarak, o poder foi entregue ao Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF). A 19 de março, os militares submeteram um conjunto de alterações à Constituição a referendo. Depois, promoveram eleições legislativas, em três fases, que terminaram esta semana. A Irmandade Muçulmana saiu vitoriosa, seguida pelos salafitas ultrarradicais do Partido Nour. “No ocidente, diz-se que, no Egito, poderá nascer uma república islâmica de modelo iraniano, mas eu não acho provável”, diz Eugene Rogan. “A Irmandade sente-se muito mais confortável com seculares liberais do que com salafitas. O Nour não considera a Irmandade um partido islamita, não lhe tem respeito e diz que não segue o verdadeiro Islão.” Para Rogan, a grande incógnita no Egito continua a ser a promessa adiada de transferência do poder dos militares para os civis. “Essa é a batalha que a praça Tahrir ainda terá de vencer. O aspeto crítico vai ser conseguirem garantias de liberdade, relativamente ao controlo militar, quando for elaborada a nova Constituição. Se os militares usarem a Constituição como um meio para preservar o poder, então a revolução egípcia ficará incompleta. É necessário controlo civil sobre os militares e a subordinação destes ao poder saído de eleições. De outra forma, temo que os egípcios tenham de voltar à luta na praça Tahrir.” Mubarak desapareceu, mas não o mubarakismo.
As dores de cabeça de Muammar Kadhadi começaram a 15 de fevereiro quando — já com os “irmãos” Ben Ali e Mubarak fora de cena — protestos populares centrados na Praça Verde, em Tripoli, começaram a exigir o fim deste regime de 33 anos. As ruas dividiram-se entre opositores e lealistas ao coronel e cada cidadão passou a ser um combatente, de arma na mão. Numa decisão que não colheu a unanimidade na comunidade internacional — apesar de fundamentada numa resolução da ONU (de 17 de março) autorizando o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia —, forças da NATO desencadearam bombardeamentos a pretexto de proteger as populações civis. Durante meio ano, a Líbia viveu em clima de guerra civil. Tripoli caiu a 23 de agosto e Kadhafi, 69 anos, foi linchado a 20 de outubro, em Sirte, a sua cidade natal. O Conselho Nacional de Transição — criado em Bengasi, no leste, de onde partiu a rebelião contra Kadhafi — assumiu o poder, a título interino.
Muammar Kadhadi sonhou com um país à sua semelhança. A desobediência rebelde e os interesses económicos externos inviabilizaram-no CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS
IÉMEN
Ali Abdullah Saleh demorou mais de nove meses a ceder às manifestações populares, que começaram a 3 de fevereiro. E nem o facto de ter ficado gravemente ferido num ataque à bomba contra o palácio presidencial, a 3 de junho — obrigando-o a ir para a Arábia Saudita para ser tratado — o levou a abandonar a presidência do Iémen pelo seu pé. A 23 de novembro, sob mediação do Conselho de Cooperação do Golfo, Saleh aceitou finalmente transferir o poder para o seu vice-presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, recebendo garantias de imunidade relativas aos 33 anos em que esteve no poder — primeiro como Presidente do Iémen do Norte, depois como Presidente do Iémen unificado. Saleh, 69 anos, conserva o título de Presidente, mas é Al-Hadi o Presidente interino. A 21 de fevereiro próximo, estão previstas eleições presidenciais. Uma oportunidade para clarificar quem, de facto, manda no Iémen — um dos países mais pobres do mundo e porto de abrigo para um dos braços mais ativos da Al-Qaida, a AQPA.
Assim que a Praça da Pérola, em Manama, se encheu de protestos — começaram a 14 de fevereiro — a revolução no Bahrain ficou à mercê de interferências externas. O Bahrain é um caso particular: a maioria da população é xiita e a monarquia reinante é sunita. Os cidadãos xiitas aproveitaram os protestos para pedir igualdade e liberdades políticas. Por isso, a entrada de tanques da sunita Arábia Saudita, em apoio das autoridades do Bahrain — país que se situa em frente ao xiita Irão —, nas primeiras semanas de protestos, não foi uma surpresa. A perspetiva de uma revolução nas suas fronteiras é algo inaceitável para Riade. “A diplomacia saudita tem estado muito ativa para impedir que tal aconteça”, refere Eugene Rogan. “Contiveram os protestos laborais em Omã, encorajando o sultão a fazer concessões; intervieram militarmente no Bahrain lideraram as negociações no Iémen; e têm tentado conter o que veem como uma exploração, por parte do Irão, de levantamentos em países como o Iraque, Síria, Bahrain e Líbano. Estão a fazer tudo o que podem. Têm muitos recursos, mas também dissidência interna. Nos próximos anos, a pressão aumentará sobre Riade para que faça reformas. Não creio que os cidadãos sauditas se contentem em ter menos direitos do que os egípcios e os tunisinos.”
A contestação foi reprimida com a ajuda de armas sauditas, que cruzaram o Golfo Pérsico em socorro dos Al-Khalifa CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS
REVOLUÇÃO SANGRENTA
SÍRIA
Bashar al-Assad discursou à nação, na terça-feira, e anunciou uma reforma constitucional que abrirá a porta ao multipartidarismo. O novo texto irá a referendo em março. Acossado por protestos populares — que se massificaram a partir de 15 de março, na cidade de Daraa —, o Presidente sírio, 46 anos, parece apostado em segurar-se, a todo o custo, à cadeira do poder herdada do pai (Hafez al-Assad), ao estilo de uma república dinástica. “A diferença entre a Síria e as outras revoluções é que o exército, na sua maioria, ficou com o regime. Há deserções, mas na ordem das centenas. Enquanto metade não desertar, o exército vai ter sempre condições para esmagar o povo”, explica o professor Rogan. “Mas o povo vai continuar a manifestar-se. O conflito arrisca-se a tornar-se mais violento. E haverá mais ataques ao estilo da guerrilha, atentados terroristas, tudo o que acontece quando as pessoas não têm armas para lutar contra um exército. Talvez o exemplo do vizinho Iraque seja o terrível futuro da Síria.” Na quinta-feira, um jornalista francês foi morto durante uma visita promovida pelas autoridades à cidade de Homs. No terreno até ao próximo dia 19, a delegação da Liga Árabe — 160 pessoas, chefiadas por um general sudanês — não impede a violência. Só na quinta-feira, foram mortas 25 pessoas. Segundo a ONU, já morreram mais de 5000.
Mohammed VI soube ler os sinais das ruas e aos primeiros protestos — encabeçados pelo Movimento 20 de Fevereiro, que planeava ‘manifs’ para o dia 20 de cada mês — antecipou-se. A 9 de março, num discurso considerado histórico, anunciou uma profunda reforma constitucional, submeteu-a a referendo a 1 de julho e, a 25 de novembro, realizou eleições legislativas — ganhas pelos islamitas do Partido Justiça e Desenvolvimento, que conquistaram 107 dos 395 deputados. O seu líder, Abdelilah Benkiran, é o novo primeiro-ministro. “Os marroquinos foram confrontados com um processo político iniciado a partir de cima e mais rápido do que as exigências da rua”, diz o professor Rogan. “Chamemos-lhe o modelo marroquino. É único na Primavera Árabe e parece estar a dar à monarquia marroquina maiores perspetivas de preservação do poder do que as medidas repressivas tomadas por outros regimes.” No Norte de África, apenas a Argélia parece imune à vaga revolucionária. “Julgo que a Argélia vai sentir a pressão”, conclui Rogan. “Depois, ou segue o modelo marroquino ou vai pela via da Síria e da Líbia.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de janeiro de 2012
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.