As milícias que fizeram a revolução contra Muammar Kadhafi são as forças que hoje garantem a segurança do país. Em entrevista ao Expresso, o embaixador de Portugal em Tripoli, Rui Lopes Aleixo, mostra-se otimista em relação ao futuro da nova Líbia

A revolução líbia está refém das milícias?
Se a revolução está refém das milícias, as milícias também estão reféns da revolução. As milícias, com o decorrer do tempo, assumiram o papel de forças armadas e são, na prática, a polícia e o exército do país, neste momento. Não é possível dispensar as milícias sem criar um vazio de segurança. De certo modo, as milícias também estão reféns da revolução. Não é possível dissolve-las subitamente. O projeto do governo é, a pouco e pouco, desarmar, dissolver, dar formação a alguns elementos das milícias e integra-los no futuro exército e na futura polícia. Esse processo está a ser muito lento.
Estas milícias têm uma base tribal?
Não têm qualquer base tribal nem territorial. Em Tripoli, por exemplo, há duas brigadas. Uma tem origem em Zindan, que é uma cidade nas montanhas a ocidente de Tripoli, e a outra na cidade de Misurata, que fica a 200 quilómetros para leste de Tripoli. Elas integram pessoas oriundas de toda a Líbia, embora com alguma coincidência oriundas dessas áreas. Porque é que se chamam “de Zindan” e “de Misurata”? Porque os comandantes são daí. As brigadas englobam pessoas de várias origens e etnias, mas o comando é daquelas zonas. Presentemente, já há uma pirâmide hierárquica: há o ministro do Interior, o ministro da Defesa, o conselheiro nacional de segurança, o chefe de Estado-Maior das Forças Armadas… Os comandantes destas brigadas já estão enquadrados numa estrutura de comando. E quando desenvolvem ações, como por exemplo “checkpoints”, fazem-no em cumprimento de ordens que chegam dos seus chefes
Recentemente, o líder do Conselho Nacional de Transição (CNT), Mustafa Abdul-Jalil, admitiu alguma lentidão no processo de controlo das milícias…
Não estou certo que o processo pudesse ter sido mais rápido. Nós, ocidentais, temos uma visão das coisas à semelhança do que se passa nos nossos países. Nem sempre o ritmo, na Líbia, pode ser esse. Estamos a falar de um país muito extenso onde, por exemplo, as cidades do leste (a zona a que se chama Cirenaica) estão em paz há muitos mais meses do que Tripoli e as cidades do ocidente (da chamada Tripolitânia), onde a guerra acabou há pouco mais de quatro meses. A situação de segurança nestas regiões é muito diferente. Se formos a Bengazi (no leste), que foi o berço da revolução, a cidade está tranquila, a vida normalizou, iniciaram a recuperação e a integração de todas as grandes forças que participaram na revolução.
Ajustes de contas próprias do pós-guerra
Um relatório recente da Amnistia Internacional denunciou abusos a suspeitos kadhafistas por parte de milícias. Há zonas da Líbia onde a segurança ainda é vulnerável?
Há, efetivamente. Esses casos foram pontuais. Passaram-se numa prisão, em Misurata. O governo já reconheceu que houve abusos e está aberto à cooperação sobretudo com as ONG humanitárias internacionais. E até agradeceu publicamente o terem denunciado esses abusos. Por vezes, há conflitos localizados. Por exemplo, disputas relacionadas com reivindicações de casas, terras ou alguns ajustes de contas que são inevitáveis depois de um conflito interno. Não são generalizados, de maneira alguma. Infelizmente, causam vítimas com frequência, porque há um grande número de armas nas mãos da população.
O que querem as milícias?
A maior parte dos membros das milícias são muito jovens, têm entre 18 e 30 anos. O desemprego entre os jovens ultrapassava os 30%. Julgo que o problema relativo à integração não passa tanto pela sua distribuição pelo exército e pela polícia. É antes um problema de qualificação, de formação profissional e de criação de empregos para que estas pessoas tenham um futuro. Não digo que a revolução teve origem em questões sociais. Não foi, como noutros países, uma questão de marginalização social que levou à revolução. Acho que foi uma ânsia de liberdade e a vontade de criar um país moderno e aberto. Agora, há este problema de integração destas pessoas numa sociedade estável, em que todos tenham emprego e consigam sobreviver sem depender de subsídios estatais, que era o que acontecia antes.
Os saudosistas de Kadhafi são a grande ameaça à estabilidade da Líbia?
Haverá, com certeza, pessoas descontentes com a revolução. Mas não vejo uma massa significativa de gente que queira voltar atrás, se isso fosse possível. Por outro lado, também não há uma figura simbólica ou alguém que possa aglutinar alguns simpatizantes do antigo regime.
Nem mesmo o filho de Muammar Kadhafi que está no Níger, Saadi Kadhafi?
Não. Os filhos não tinham prestígio. O regime era o pai, não os seus descendentes.
Aprender com os erros dos outros
A 21 de junho, haverá eleições para a assembleia constituinte. Estão a ser criados partidos políticos?
Ainda não há uma lei dos partidos. Às eleições concorrerão listas nominais. As pessoas votarão em candidatos e não em partidos políticos. Essa assembleia, de 200 membros, vai aprovar a Constituição e um novo governo que terá como encargo, esse sim, publicar a lei dos partidos políticos e preparar as eleições parlamentares, que terão lugar cerca de um ano depois.
Será um sufrágio universal?
Toda a gente vota, mas nem toda a gente pode ser eleita. Estão excluídos de capacidade eleitoral passiva todos os colaboradores do regime anterior. É um dos pontos controversos deste processo eleitoral. Ainda não foi possível ao governo publicar uma lei de amnistia. Está em preparação e se vier a ser publicada, o número de excluídos será menor.
Quem é visado por este impedimento?
Todas as pessoas que foram ministros, governadores, membros das forças de segurança e de polícias secretas, pessoas que tiveram um papel ativo no regime anterior e que, nalguns casos, são culpados de repressão. Enquanto não começarem os julgamentos no âmbito daquilo que se designa por “justiça de transição” — ou seja os julgamentos de pessoas que estão presas e outras que podem vir a ser acusadas de crimes económicos ou políticos — não há um critério objetivo e claro de quem é culpado e de quem não é.
A nova Líbia está a funcionar de acordo com a estrutura administrativa anterior? Ou houve a tentação de, como no Iraque após a queda de Saddam, destruir as estruturas do regime anterior?
As autoridades líbias têm estado a evitar os erros cometidos noutros sítios. Houve mudanças de chefias, mas não houve uma desarticulação completa da administração. Gradualmente, as autoridades têm procurado que a administração funcione com outras pessoas à frente.
Momento é bom para as empresas portuguesas
O elemento islamita está a manifestar-se de alguma forma?
Há correntes islâmicas. Em geral, o Islão na Líbia é moderado. Haverá alguns elementos mais radicais. Uma vez que não há partidos, é difícil quantificar. Não me parece que haja o perigo de um movimento radical. Não tenho dúvidas de que vão aparecer partidos islâmicos. Mas julgo que não constituem um perigo para a abertura do país e para a democracia.
Dizia-se que a Líbia iria demorar muitos anos a recuperar os seus níveis de produção de petróleo…
A produção de petróleo recuperou muito mais depressa do que aquilo que se esperava. Há uma retoma da vida económica e social, o que é notável para um país que saiu de uma guerra civil há apenas quatro meses.
As empresas portuguesas a operar na Líbia já regressaram?
Já regressaram algumas empresas e praticamente todas as que aqui estavam já restabeleceram os seus contactos. Mas para começarem a trabalhar, em muitos casos, as condições ainda não estão completamente criadas. Mas o momento é bom. Portugal tem uma ótima imagem e, neste momento, a concorrência não é tão feroz como era antes. Há muitos países que ainda não voltaram. Não há razão nenhuma para as pessoas não virem. Às vezes, o discurso político e, sobretudo, as informações das agências noticiosas não coincidem com a situação real no terreno. Este é o momento para os empresários portugueses procurarem aqui contactos.
Muitas vezes, diz-se que a sociedade líbia, por ser tribal, vai ter dificuldade em fazer vingar um sentimento de unidade nacional…
Não concordo que a Líbia seja uma sociedade tribal. É um país onde há tribos, as pessoas sentem-se parte de uma tribo, mas as tribos estão dispersas por todo o país. Não há uma coincidência territorial. Eu acho que há um sentimento nacional e de unidade. E a revolução reforçou esse sentimento. Esse elemento tribal existe sobretudo como um laço de família e como um laço cultural, mas não como um elemento político que vá ter influência no desenvolvimento do país.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de fevereiro de 2012. Pode ser consultado aqui