Comunidade judaica reconhecida há 100 anos

A Comunidade Israelita de Lisboa foi oficialmente reconhecida em maio de 1912. Hoje, os judeus assinalam a data numa cerimónia especial na Sinagoga de Lisboa

Sinagoga de Lisboa ANTÓNIO PEDRO FERREIRA

Em Lisboa, quem sobe a Rua Alexandre Herculano em direção ao Largo do Rato mal se apercebe que no n.º 59 funciona a Sinagoga de Lisboa. Quando foi inaugurada, em 1904, a religião judaica era permitida em Portugal, mas não oficialmente reconhecida. Por isso, a fachada da Sinagoga ficou de costas para a rua, para permitir que a prática do judaísmo se fizesse de forma discreta, longe dos olhares reprovadores.

Tudo mudou em 1912 quando um alvará do Governo Civil com data de 9 de maio aprovou os Estatutos da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) — assim batizada e não Comunidade Judaica de Lisboa, porque, à época, a palavra “judeu” tinha uma conotação pejorativa.

Essa data histórica é hoje, quinta-feira, assinalada numa cerimónia que terá lugar na Sinagoga, às 19h, com a presença do secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, e do Presidente da Câmara de Lisboa, António Costa.

“O reconhecimento da CIL foi muito importante”, explica ao Expresso Esther Mucznik, vice-presidente do organismo. “Passou a ser possível aos cidadãos portugueses optarem por outra religião que não o catolicismo. Foi um passo em frente na liberdade religiosa e também na possibilidade de integração social dos judeus.”

“Até então, os cultos não católicos eram assimilados aos cultos estrangeiros”, continua Esther. “Falava-se em ‘colónia judaica’ como se falava na ‘colónia inglesa’ ou na ‘colónia alemã’. Ainda hoje, as pessoas mais antigas da Comunidade falam em ‘colónia judaica’. A própria palavra ‘colónia’ indica um corpo estranho que se veio implantar. Mas com o reconhecimento legal, passa a haver cidadãos portugueses de confissão judaica.”

Com o pensamento na Alemanha e na Polónia

Além da Sinagoga e dos cemitérios judaicos, a CIL dispõe de todo um conjunto de serviços de apoio à prática do judaísmo, como o serviço de alimentação kosher, por exemplo, e atividades de divulgação da religião e cultura judaicas bem como da língua hebraica, abertos a não judeus.

Esther Mucznik não tem dúvidas de que a II Guerra Mundial foi o período mais difícil dos 100 anos de vida da CIL. “A Comunidade não foi inquietada, no sentido de que Portugal não foi invadido por Hitler e também os judeus não sofreram essa ocupação. Mas muitos judeus que passaram por aqui e que estavam aqui tinham os seus familiares na Polónia, Alemanha, Áustria, etc.”, diz.  

“Foi talvez a época mais difícil, em que a comunidade desempenhou um papel muito importante. Era um interlocutor entre as organizações judaicas internacionais que financiavam a ajuda aos refugiados. Era a Comunidade que dava essa ajuda. E ao mesmo tempo, era também o interlocutor do regime. Foi uma época muito rica, mas também muito dolorosa – ainda que não comparável com as comunidades que foram ocupadas e dizimadas, como é óbvio.”

Yitzhak Rabin na Sinagoga

Para a dirigente da CIL, houve duas visitas à Sinagoga particularmente marcantes. Em 1993, Mário Soares tornou-se o primeiro Presidente da República a visitar o templo, quando de uma homenagem a Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português em Bordéus que, em 1940, desafiando as ordens do Governo de Lisboa, concedeu milhares de vistos a refugiados que queriam fugir da França ocupada.

Outra visita inesquecível aconteceria no ano seguinte tendo como protagonista o primeiro-ministro de Israel Yitzhak Rabin, que, nesse ano, receberia o Prémio Nobel da Paz e que seria assassinado, em Telavive, a 4 de novembro de 1995, por um judeu extremista que se opunha aos Acordos de Paz de Oslo (1993).

Hoje, Esther Mucznik considera que a comunidade judaica não é alvo de antissemitismo. “É evidente que na sociedade portuguesa continua a haver muitos preconceitos e estereótipos. E isso existe porque há uma grande ignorância sobre o que é ser judeu. Às vezes, sentimos isso de uma forma involuntária e inconsciente — mas não necessariamente porque as pessoas sentem ódio aos judeus.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de maio de 2012. Pode ser consultado aqui