Mais pequeno do que o Alentejo, o Qatar quer ter influência mundial. Tem por armas gás, petróleo, a Al-Jazira e a ambição do seu líder
Riyadh Hijab tornou-se, na segunda-feira, o mais alto oficial do regime sírio a passar-se para a oposição. Era primeiro-ministro há dois meses e justificou a deserção acusando Bashar al-Assad de genocídio. Hijab voou para a Jordânia, mas, segundo o seu porta-voz, o destino final é o Qatar. Antes dele, também os embaixadores sírios no Iraque e Emirados Árabes Unidos tinham assumido a rutura com Damasco e refugiado em Doha.
Mais pequeno do que o Alentejo e com uma população nativa inferior à da cidade do Porto — dos 1,7 milhões de habitantes, apenas 300 mil são qatarenses —, o Qatar é dos mais fortes aliados da oposição síria, financiando vários grupos em combate. Em julho de 2011, foi o primeiro país a encerrar a embaixada em Damasco. Em janeiro, o emir Al–Thani foi pioneiro ao defender uma intervenção militar estrangeira na Síria.
Desde a revolução na Tunísia que o Qatar tem vindo a surfar a onda da Primavera Árabe. A sua principal arma é… o livro de cheques. Na Tunísia, garantiu ajudas e investimentos às autoridades emergentes e pagou tratamentos médicos a revolucionários feridos. No Egito, foi um importante financiador da Irmandade Muçulmana e do An-Nur (salafita). “Só esperamos boas coisas do Qatar. É um verdadeiro parceiro na Primavera Árabe”, disse Rashid al-Ghannouchi, líder espiritual do Ennahda, o partido islamita que subiu ao poder após a revolução tunisina.
Na Líbia, o envolvimento de Doha foi bem menos discreto. O Qatar foi a primeira capital a reconhecer o Conselho Nacional de Transição e tornou-se o primeiro país árabe a participar — com caças Mirage — na campanha aérea liderada pela NATO contra Muammar Kadhafi. Forças qatarenses participaram também no assalto final a Bab al-Aziziya, o palácio de Kadhafi em Tripoli.
O apoio incondicional do Qatar às revoluções árabes foi posto em causa no Bahrain, onde Doha deixou vir ao de cima preocupações geoestratégicas. Quando eclodiram os protestos na Praça da Pérola — maioritariamente xiitas — contra a monarquia sunita, os qatarenses não hesitaram em escolher o lado do poder. Segundo a agência noticiosa do Qatar, um pequeno número de oficiais do país entrou no Bahrain paralelamente aos tanques sauditas, para ajudar na contenção dos protestos.

Entalado entre dois colossos rivais no Médio Oriente — a árabe e sunita Arábia Saudita e o persa e xiita Irão —, o Qatar parece ter nos EUA o seu seguro de vida. Desde 2002, o país acolhe o quartel-general avançado do Comando Central dos EUA (CENTCOM), crucial para a guerra no Afeganistão e, antes, no Iraque.
De bem com todos
Nos corredores diplomáticos ocidentais, o Qatar é, porém, alvo de desconfiança. Diz-se que à segunda-feira o emir é amigo e à terça financia terroristas. No poder desde 1995, após ter liderado um golpe contra o pai, Al-Thani, de 60 anos, ambiciona transformar o país numa ponte entre mundos. Em janeiro, no “60 Minutes” (CBS), disse: “Eles (EUA) não gostam da nossa relação com o Irão, Hamas ou Hezbollah. Talvez o Irão ou o Hamas também não gostem dos nossos contactos com Israel. Mas não é uma boa política para um país pequeno estar de bem com todos?”
Essa estratégia transformou Doha numa marca internacional. Meca de importantes reuniões — as negociações na OMC são as Doha Rounds —, é também porto de abrigo de personas non gratas, sejam familiares de Bin Laden ou opositores aos somalis da milícia Al-Shabaab. Khaled Meshaal, líder do Hamas, tem casa em Doha. E nos últimos anos, a capital recebeu visitas tão díspares quanto o israelita Shimon Peres, o libanês Hassan Nasrallah (Hezbollah) ou o iraquiano Muqtada al-Sadr (milícia radical Exército Al-Mahdi).
No início de 2012, foi notícia a possibilidade de os talibãs abrirem em Doha a sua primeira representação fora do Afeganistão. “Quando isso acontecer”, escreveu a revista alemã “Der Spiegel”, “generais americanos da base Al-Udeid poderão cruzar-se com estrategos do Hamas e talibãs de túnica preta no Clube Diplomático de Doha — numa atmosfera a lembrar o filme ‘Casablanca’.”
AL-JAZIRA É ESPADA DE DOIS GUMES
Entrevista a Gabriel G. Tabarani, autor do blogue ‘Middle East Spectator’
Qual é a agenda do Qatar para a Primavera Árabe?
Desde a revolução iraniana xiita (1979), os Estados árabes do Golfo — hoje coligados no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — e outros países árabes sunitas esforçam-se por criar um equilíbrio político e militar no Médio Oriente e Norte de África para fazer frente ao expansionismo xiita do Irão. Nesse pressuposto, o CCG apoiou Saddam Hussein na guerra contra o Irão (1980-1988). E é nesse contexto que devemos entender a agenda do Qatar. Por outro lado, uma vez que os principais Estados árabes sunitas (Arábia Saudita, Egito, Iraque, Argélia, Marrocos) estavam ocupados com a situação interna, foi criado um vácuo na política externa árabe. Um Qatar confiante, apoiado pela presença militar americana no seu território e uma abundância de dinheiro, além das ambições de liderança, preencheu esse vazio. Mas se os objetivos gerais são conhecidos, os imediatos são vagos, embora persista a imagem de oportunismo. O Qatar está a operar uma mudança na política árabe que o Ocidente terá de compreender: um Médio Oriente dominado por partidos islamitas sunitas, levados ao poder numa região mais democrática e cada vez mais conservadora, tumultuosa, antixiita e anti-Irão.
Está também empenhado no diálogo entre fações palestinianas e entre os talibãs e os EUA…
O Qatar ambiciona desempenhar um papel de liderança na diplomacia internacional, especialmente no que diz respeito aos problemas do chamado Grande Médio Oriente. A mudança importante que ajudou o Qatar a levar a cabo o seu novo papel é a adoção do “modelo turco”, que, no âmbito da política internacional, significa abrir horizontes nas relações com o Ocidente e com a própria região.
O Qatar substituiu a Arábia Saudita na promoção do waabismo na região e na Europa?
O waabismo é a doutrina oficial, mas o Qatar não é tão puritano quanto a Arábia Saudita. Vemo-lo no estilo de vida relativamente liberal da população. Não creio que esteja a espalhar a fação waabi como os sauditas fizeram. Há provas de que o Qatar apoia associações muçulmanas em todo o mundo, incluindo grupos que não estão ligados ao waabismo. Após a guerra de 2006 entre Israel e o Hezbollah, ajudou os xiitas no Líbano.
Há razões para o regime temer uma rebelião interna?
À superfície, as causas das revoltas árabes parecem políticas, mas são económicas. No Qatar, os cidadãos vivem confortavelmente. O rendimento per capita é o mais alto do mundo, rondando os 138 mil dólares por ano. Além disso, o Governo tomou medidas políticas. O Qatar está a evoluir de uma sociedade tradicional para outra baseada em instituições mais formais e democráticas. A Constituição consagra o poder hereditário da família Al-Thani, mas estabelece um órgão legislativo eleito e responsabiliza o Governo perante o Parlamento. O povo é representado pelo Conselho Consultivo, nomeado, que assiste o emir. As primeiras eleições para este órgão serão em 2013.
A região do Golfo é o calcanhar de Aquiles da Al-Jazira?
A Al-Jazira é uma ferramenta diplomática que Doha usa como lhe convém. Já criou vários problemas diplomáticos ao Qatar, especialmente com os governos da Arábia Saudita e do Bahrain. É melhor considerarmos a Al-Jazira como uma espada de dois gumes que pode ser usada para projetar influência, mas que deve ser responsabilizada à semelhança de qualquer agente diplomático qatarense.
RECURSOS: GÁS, PETRÓLEO E… AL-JAZIRA
Como qualquer país banhado pelo Golfo Pérsico, o Qatar cresceu sobre abundantes jazidas de gás e petróleo. Em 2011, o país exportou, em média, 588 mil barris de petróleo por dia e 113,7 mil milhões de metros cúbicos de gás natural. Porém, na sua estratégia de afirmação mundial, uma das principais armas é a Al-Jazira (que em árabe significa “a ilha”, uma analogia à Península Arábi
ca). Propriedade da família real, foi fundada em 1996 — um ano após o emir subir ao poder — e rapidamente se tornou a maior televisão do mundo árabe. Após o 11 de Setembro, era a única estação a cobrir a guerra no Afeganistão em direto com escritório montado em Cabul. A Al-Jazira seria também o canal privilegiado pelo líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, para divulgar as suas mensagens ao mundo. O serviço em língua inglesa só arrancaria em 2006, mas já a Al-Jazira era um ator incómodo no mundo árabe. Em visita à sua sede, o Presidente egípcio Hosni Mubarak afirmou: “Tantos problemas por causa desta caixa de fósforos”. Segundo os documentos revelados pela Wikileaks, o Presidente dos EUA George W. Bush, em 2004, com a guerra do Iraque em curso, chegou a equacionar o bombardeamento da sede da Al-Jazira, em Doha. Tal não chegou a acontecer, mas os escritórios da estação em Cabul e em Bagdade não escaparam ao fogo de guerra. A Primavera Árabe voltou a fazer da Al-Jazira notícia. As suas câmaras foram lestas a chegar a Tunis, ao Cairo ou a Tripoli e os revolucionários agradeceram-lhe. Mas tardou a reportar os protestos em Manama (Bahrain) e foi, por isso, acusada de ser tendenciosa.
2022
Neste ano, o Qatar organiza o Mundial de Futebol. Sepp Blatter, presidente da FIFA, disse: “O mundo árabe merece organizar um Campeonato do Mundo”. Mas a escolha foi envolta em suspeitas de corrupção. Indiferente, o Governo de Doha prevê gastar 10% do PIB com infraestruturas. Ainda no capítulo desportivo, o Qatar fez história ao permitir, pela primeira vez, a participação de mulheres nos Jogos Olímpicos de Londres: quatro, no tiro, atletismo, natação e ténis de mesa. Ironicamente, o país tem na sheik Mozah — que rivaliza em elegância com qualquer primeira-dama — a sua grande relações públicas.
Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de agosto de 2012


