As últimas medidas do Presidente Mohamed Morsi deixaram o povo confuso. Revolucionário ou ditador?

Os acampamentos de protesto regressaram à Praça Tahrir, as megamanifestações voltam a encher ruas no Cairo, a figura do Presidente é, de novo, alvo da ira popular e as imagens televisivas que chegam do Egito mostram batalhas campais. Tudo isto faz lembrar o prelúdio da queda de Hosni Mubarak, há quase dois anos.
O centro dos protestos transferiu-se da mítica praça da capital egípcia para as imediações do Palácio Al-Itihadiya, a residência oficial do chefe de Estado, na área de Heliópolis. Confrontos entre apoiantes e opositores do Presidente fizeram, na quarta-feira, cinco mortos e pelo menos 700 feridos (posteriormente, foi noticiada a morte de um jornalista egípcio que tinha abandonado o local dos confrontos gravemente ferido).
“Cheguei a casa. Estou safo, graças a Deus”, relatava ao Expresso, na quinta-feira de manhã, através do Facebook, Hisham Aly, um engenheiro de 30 anos apoiante da Irmandade Muçulmana. “Vi muitas pessoas feridas. Os cinco mortos eram todos apoiantes do Presidente. Os opositores estão a atacar a Irmandade com tudo. Há vídeos no YouTube que os mostram a disparar armas de fogo. Só Deus sabe o que vai acontecer nos próximos dias.”
Crítico da Irmandade, o bloguer Wael Eskandar relata factos totalmente diferentes. “Estava no local quando os confrontos começaram, na quarta-feira à noite”, disse ao Expresso. Depois, remete tudo o que viu para um artigo que publicou na revista digital “Jadaliyya” e onde se lê: “Não é a primeira vez que os apoiantes da Irmandade entram em conflito com os manifestantes. Mas foi a primeira vez que os vimos recorrer a armas de fogo para atacar civis de uma forma organizada. Parecem uma milícia em socorro do Presidente, sempre que ele está ameaçado politicamente.” Entre um e outro direto a partir do Cairo, a repórter da Al-Jazeera, Sherine Tadros. dizia no Twitter: “É o dia mais triste que já vi no Egito.”
Remetido ao silêncio — na terça-feira, teve mesmo de abandonar o palácio, após alguns manifestantes terem tentado romper os cordões de segurança —, Mohamed Morsi dirigiu-se à nação na quinta-feira à noite. “Estes acontecimentos dolorosos aconteceram devido a diferenças políticas que deveriam ser resolvidas através do diálogo. Apelo ao diálogo com todos, líderes partidários, jovens revolucionários e altas personalidades do sistema judicial este sábado.”
O pecado original de Morsi
O pecado original do Presidente data de 22 de novembro, quando aprovou uma declaração constitucional dotando-se de poderes como nunca Mubarak teve — um golpe ditatorial, acusam os seus detratores. O Presidente justificou a medida com a necessidade de proteger a revolução dos fulul (remanescentes). Controlado por saudosistas do antigo regime, o Supremo Tribunal Constitucional preparava-se para dissolver a Assembleia Constituinte.
Este órgão tinha até fevereiro de 2013 para aprovar um projeto de Constitucional, mas após o decreto de Morsi e toda a contestação que se seguiu, o processo acelerou.
O novo texto constitucional viu a luz do dia fez ontem uma semana e Morsi apressou-se a marcar um referendo para o próximo dia 15.
No discurso de quinta-feira, o Presidente ignorou as grandes exigências dos opositores — o adiamento do referendo e a revogação do decreto constitucional. Mas disse que formará um novo órgão constituinte se o ‘não’ vencer o referendo.
“Eu separo a oposição legítima dos vândalos que cometem atos violentos”, disse. “A oposição acha que o Artigo 6.º (que confere a Morsi poderes absolutos para combater eventuais ameaças à revolução) é um problema. Eu não vou insistir em mantê-lo. De qualquer forma, o decreto termina após o referendo”, acrescentou. “Deixemos o povo votar ‘sim’ ou ‘não’.”
Nos últimos 15 dias, sete assessores de Morsi demitiram-se, quatro deles desde quarta-feira. Na quinta-feira de manhã, após a jornada de violência, veículos blindados do Exército tomaram posições junto ao palácio presidencial.
“O que me preocupa mais é a bandeira do meu país. Há muitos ‘cães’ a quererem-na”, comenta ao Expresso Waleed al-Taweel, professor de artes audiovisuais no Cairo. “Não sei o que o futuro trará, mas acho que a Irmandade Muçulmana não vai recuar nas suas decisões, as forças revolucionárias irão protestar o tempo todo e em todos os lugares e as Forças Armadas irão ter uma palavra a dizer. Esta situação pode levar ao regresso das leis marciais e do recolher obrigatório ao Egito”, conclui. “Está em curso uma degradação contínua da Irmandade Muçulmana.”
(INFOGRAFIA DE CARLOS ESTEVES)
… E UM PRESIDENTE ACIDENTAL
Mohamed Morsi fez um percurso discreto nas fileiras da Irmandade Muçulmana. Foi preso um par de vezes, até que a História o fez trocar de lugar com Mubarak
Quando a Irmandade Muçulmana (IM) escolheu Mohamed Morsi como seu candidato às presidenciais de junho passado — que venceu —, depressa ganhou uma alcunha: “o substituto”. Morsi não fora a primeira escolha da organização. O seu nome apenas viera a lume após a candidatura de Khairat al-Shater — tido como o cérebro da IM — ter sido chumbada pela comissão eleitoral.
Não obstante, a escolha de Morsi não foi um acaso. Em 2000, Shater levara-o para o Gabinete de Orientação da IM — a autoridade máxima da organização — e, em 2011, indicara-o para a liderança do Partido Liberdade e Justiça, o braço político da Irmandade, criado para disputar a cena política pós-Mubarak.
A ascendência de Morsi na IM está, pois, fortemente ligada ao percurso de Shater, uma espécie de eminência parda que é apresentado como o arquiteto da nahda (renascimento), o programa eleitoral da IM. Por isso, o seu perfil enquanto Presidente em muito dependerá da sua habilidade para se libertar da ‘sombra’ de Shater.
Professor na América
Mohamed Morsi nasceu em 1951, numa aldeia da província de Sharqiya, no Delta do Nilo. O pai era camponês. Com a mãe, aprendeu a rezar e a ler o Corão. Era o mais velho de cinco filhos do casal.
Em 1975, licenciou-se em Engenharia na Universidade do Cairo. Beneficiando de uma bolsa, rumou aos EUA em 1982 para fazer o doutoramento em Ciências de Materiais na Universidade do Sul da Califórnia. Foi também professor assistente na Universidade do Estado da Califórnia. Casado com a prima Naglaa desde 1979, viu nascer dois filhos (tem cinco) em solo americano. Ambos têm hoje cidadania dos EUA, apesar de correr um processo na justiça egípcia para que seja revogada. De regresso ao Egito, em 1985, foi docente na Faculdade de Engenharia da Universidade Zagazig, cidade próxima da sua aldeia natal e bastião da Irmandade. Tornou-se então ativista.
O seu nome começou a ganhar eco dentro da IM após ser eleito deputado nas legislativas de 2000. Até 2005, liderou a bancada da Irmandade no Parlamento. Foi reeleito em 2005 — quando a IM arrebatou um quinto dos lugares —, mas a participação em ações de apoio na rua a juízes reformistas levou-o à prisão durante sete meses.
Ao contrário de outros ‘irmãos’, a imagem de Morsi não emana de décadas de prisão. Ainda assim, ele foi preso várias vezes pelo regime de Mubarak, a última das quais na ‘sexta-feira da ira’, a 28 de janeiro de 2011. Ano e meio depois, trocaria de posição com Mubarak: um condenado a prisão perpétua e outro o primeiro Presidente civil democraticamente eleito. Prometeu ser o Presidente de todos os egípcios, mas a violência desta semana prova que ainda não o conseguiu.
“O Presidente e a sua Assembleia Constituinte estão a encenar um golpe contra a democracia. A legitimidade do regime está a corroer-se rapidamente. À luz da firme e ampla oposição, Morsi devia abdicar da sua declaração constitucional ‘de assalto ao poder’ antes que a situação fique fora de controlo” (Mohamed ElBaradei, Prémio Nobel da Paz, líder do Partido da Constituição)
“As autoridades governamentais devem respeitar o povo egípcio e explicar-nos o roteiro que se seguirá no caso de a maioria votar ‘não’ no referendo à Constituição. O sentido do meu voto dependerá muito da decisão dos juízes de supervisionarem, ou não, o referendo” (Wael Ghonim, Antigo executivo da Google, administrador da página do Facebook onde foram convocados os primeiros protestos, em janeiro de 2011)
“O Egito entrou num período diferente que não é o período democrático em que tínhamos esperança nem o Estado de direito que exigíamos. Deus nos salve” (Amr Moussa, Ex-secretário-geral da Liga Árabe, candidato nas eleições presidenciais de junho)
“A Irmandade Muçulmana não entende que a revolução nunca vai morrer! Lutaremos até à última gota de sangue. Acreditem, vocês não irão durar muito nesta batalha! Por este andar, Morsi não chega ao primeiro aniversário da revolução desde que é Presidente” (Gigi Ibrahim, Socialista, jovem revolucionária da Praça Tahrir)
PRIMAVERAS ÁRABES
VITÓRIA DAS RUAS
Tunísia É o farol das revoluções árabes. Zine El Abidine Ben Ali não deu luta, mas esta semana, confrontos entre islamitas e esquerdistas revelam que a transição não está isenta de problemas.
Egito Hosni Mubarak esteve 30 anos no poder, mas não resistiu a 18 dias de protestos. A Irmandade Muçulmana venceu legislativas e presidenciais e tem no Egito a sua prova de fogo para demonstrar que Islão e democracia são compatíveis.
Líbia Muammar Kadhafi não sobreviveu à ira popular e com ele ruiu o sonho da Grande Revolução de Jamahiriya Popular Socialista da Líbia. O novo país continua refém da existência de milícias armadas.
Iémen Ali Abdullah Saleh abandonou o poder pelo próprio pé, mas a revolução está por concluir. Esta semana, em Sana, manifestantes pediram o afastamento dos “remanescentes” do antigo regime, ainda no poder.
Marrocos Mohamed VI conteve os protestos, ao promover uma revisão da Constituição que gerou esperanças de uma reforma democrática genuína. Nessa sequência, o Partido Islamita da Justiça e Desenvolvimento venceu as eleições em 2011.
VITÓRIA DO PODER
Síria A guerra civil continua sem fim à vista. Bashar al-Assad não dá mostras de querer sair do poder e a comunidade internacional está dividida e sem plano de ação. Estima-se que mais de 40 mil pessoas já tenham morrido.
Bahrain É uma revolução esquecida, nas margens do Golfo Pérsico. A maioria da população é xiita e o poder é sunita. Esta semana, houve confrontos em Manama.
REVOLUÇÕES LATENTES
Argélia É o único país do Norte de África que não foi tocado pela primavera árabe. O poder segue centralizado, mas as memórias da sangrenta guerra civil parecem inibir o povo na hora de sair à rua.
Jordânia Manifestações populares recentes pediram, expressamente, o fim da monarquia. Abdallah II tentou acalmar as ruas convocando eleições para janeiro de 2013.
Líbano O complexo xadrez étnico libanês torna o país vulnerável sempre que há problemas na vizinhança. O arrastar do conflito na Síria e a insegurança no Iraque fazem recear contágios e trazem de volta os fantasmas das anteriores guerras civis.
Artigo publicado no “Expresso”, a 8 de dezembro de 2012




