Esta terra (não) é de todos

Em Hebron, há linhas desenhadas nas ruas a separar judeus e árabes. Em Jerusalém, há palestinianos que destroem as próprias casas à marretada para não serem presos. Dezenas de organizações israelitas denunciam a política discriminatória das suas próprias autoridades no tratamento dos palestinianos. O “Expresso” acompanhou o trabalho de duas delas. Reportagem na Palestina 

Interdita aos árabes, a Rua Shuhada, em Hebron, foi batizada pelos palestinianos de “Rua do Apartheid” HEBRONITE999 / WIKIMEDIA COMMONS

A casa de Issa Amro é um lugar surreal. Situada no topo da colina de Tel Rumeida, com vista privilegiada sobre a parte velha de Hebron (sul da Cisjordânia), tem como vizinho um colonato judeu, onde meia dúzia de famílias vivem protegidas por 50 soldados israelitas. O quintal dos colonos estende-se até um metro da varanda onde Issa tem montada uma mesa. Sempre que decide tomar uma refeição ao ar livre, tudo pode acontecer — de insultos a cuspidelas.

Há um mês, os colonos tentaram incendiar-lhe a casa, durante a noite. A foto da fogueira apagada junto à porta de entrada circulou pelo Facebook como o último exemplo da violência dos colonos sobre populações palestinianas. “Apresentei queixa. Foi a quarta vez, mas nunca acontece nada. Sou sempre culpado até prova em contrário.” Em 2012, o Supremo Tribunal de Israel decretou que os colonos estão ali ilegalmente, mas a ordem de saída está por cumprir.

Um dos vizinhos de Issa é o fanático Baruch Marzel, fundador do movimento Kach (extrema-direita). Em fevereiro, tentou invadir a casa de Issa. “Atingiu-me na cara e pontapeou-me várias vezes. Empurrei-o para fora. A polícia israelita acusou-me de o atacar e prendeu-me.” Baruch vinha escoltado por um militar israelita armado até aos dentes. O confronto foi filmado e está no YouTube.

Este ano, Issa, de 32 anos, já foi detido três vezes. Numa delas, recusara-se a caminhar pelo lado esquerdo da rua, como soldados israelitas mandaram; o lado direito era para os judeus. Nalgumas ruas, há linhas pintadas no pavimento a fazer a divisão. “Gente má há-a em todo o lado”, diz. “Governos fanáticos, como o de Israel, também. O que não é normal é que a comunidade internacional apoie de forma cega o apartheid que eles praticam. Já há autocarros para judeus e árabes… Há tempos, uma mulher de um colonato sonhou que uma fonte aqui próxima estava ligada a Abraão. A fonte está num terreno privado árabe e muita gente tomava lá banho. Lembraram-se em 2013 que a fonte é dos judeus?”

Yehuda Shaul mostra uma foto comparando a agitação comercial de há uns anos com o abandono de hoje MARGARIDA MOTA

A casa de Issa é paragem obrigatória nas visitas guiadas pela ONG israelita Breaking the Silence (Quebrar o Silêncio) a Hebron. Fundada em 2004, por militares que serviram nos territórios palestinianos durante a segunda Intifada (2000-2005), dedica-se a divulgar junto do público israelita a experiência de jovens soldados destacados para controlar núcleos civis.

“Em Israel, mandam-nos fazer o trabalho, mas não imaginam o que isso significa”, diz Yehuda Shaul, um dos fundadores, durante um percurso pelo H2, a parte de Hebron controlada por Israel e onde fica a casa de Issa. “Servir em Hebron não é o mesmo que estarmos de serviço num checkpoint, maldispostos, porque o pequeno-almoço chegou tarde e a comida estava fria e então descarregamos a frustração implicando com um palestiniano que sorriu, algemando-o, vendando-o e pondo-o a secar ao sol 18 horas. Hebron não é isto. É um abre-olhos, onde fazemos perguntas que nunca antes fizemos.”

Yehuda tem 30 anos. Filho de canadiano e norte-americana, é um ortodoxo praticante e vive em Jerusalém. Andou na escola num colonato. A irmã vive ainda num colonato. Dos três anos de serviço militar obrigatório, cumpriu 14 meses em Hebron. O ponto de viragem na sua vida aconteceu após deixar a tropa, em 2004. “Quando paramos de pensar como um soldado, perdemos as justificações para 90% dos nossos atos”, diz. Subitamente, as fotos ao lado de cadáveres tiradas durante o serviço militar causavam-lhe asco. “Hoje, somos civis e dizemos: ‘Ouçam aquilo que nos mandaram fazer’.”

“Yehuda, conta a verdade!”, grita um colono na via pública. “Os colonos adoram-me”, ironiza. Pouco depois, ouve-se outra boca. Por pudor, ele não traduz. Para os colonos, ele é um traidor. Para Yehuda, os colonos são parte do problema. Em Hebron, vivem 175 mil palestinianos e 850 colonos. Para protege-los, há na cidade 650 militares israelitas. Se um colono ataca um palestiniano, pedem o reforço da segurança… dos colonos.

Militares israelitas jogam à bola com uma criança no colonato de Tel Rumeida MARGARIDA MOTA

A violência dos colonos é, para Yehuda, uma das razões que transformaram Hebron numa “cidade fantasma”. Outra é a atuação quotidiana do exército israelita. Há patrulhas a circular pelas ruas e efetuam-se raides nas casas árabes, de forma aleatória e a coberto da noite. Os palestinianos sentem-se perseguidos e, com o tempo, a vontade de partir sobrepõe-se ao amor à terra.

Em Hebron vivem 850 colonos protegidos por 650 soldados israelitas. Se um colono ataca um árabe, os militares pedem reforços

A terceira causa para a desertificação de Hebron é a mais visível aos olhos do visitante. Há ruas onde o trânsito está proibido a carros árabes; outras vedadas aos peões; noutras, os árabes estão proibidos de abrir lojas. Yehuda fala de uma “estratégia de esterilização” que passa pela criação de zonas tampão entre as duas comunidades, “terras de ninguém” onde não se vê vivalma, as portas de ferro dos edifícios estão soldadas e há placas de betão a bloquear o acesso pelas ruas laterais. Outrora, a principal artéria comercial da cidade, com lojas e vendedores ambulantes ao estilo de um bazar árabe clássico, a Rua Shuhada está hoje interdita aos palestinianos. A sua abertura é agrande reivindicação local.

Às poucas famílias palestinianas que resistem nas “zonas estéreis” só resta ser criativo na hora de sair à rua. Com a porta principal virada para uma “rua estéril” ou recorrem a uma porta alternativa ou sobem ao telhado e saem pelas casas dos vizinhos… Um pormenor denuncia as casas ainda habitadas: as janelas estão forradas com redes de malha fina — nos casos mais extremos, estão envoltas em gaiolas em ferro — para aparar as pedras atiradas pelos colonos.

Um relatório de 2007 elaborado pelas duas maiores organizações israelitas dos direitos humanos (B’Tselem e Associação para os Direitos Civis de Israel), com base em inquéritos porta a porta, revelou que pelo menos 1014 famílias (42% da população) já tinham abandonado a cidade e 1829 lojas (77%) tinham fechado.

Disputa há 4000 anos

Hebron é o coração do conflito israelo-palestiniano. É, aliás, a única cidade palestiniana com colonatos (quatro) no centro. Aqui, as datas clássicas desta questão — 1948 (criação de Israel) e 1967 (Guerra dos Seis Dias) — quase são irrelevantes. A disputa pela cidade dura há 4000 anos, quando, crê-se, Abraão comprou a terra onde hoje se ergue o Túmulo dos Patriarcas, na área H2. Ali, jazem os patriarcas (Abraão, Isaac e Jacob) e as matriarcas (Sara, Rebeca e Leah) do Judaísmo. Para o Islão, foi Abraão quem construiu a Caaba, em Meca. No interior do monumento há uma sinagoga e uma mesquita. A rua de acesso está dividida por uma rede: a via para os judeus está asfaltada; a dos muçulmanos é de terra.

“Se se perguntar às autoridades de Israel acerca do que se passa em Hebron, a resposta será: ‘segurança’. No início da segunda Intifada, este era o sítio mais perigoso para um israelita estar. Em março de 2001, Shalhevet Pass, um bebé de 10 meses, foi morto no carrinho por um sniper palestiniano. Em 2002 e 2003, morreram 20 israelitas aqui. É importante não sermos cínicos em relação à reivindicação de segurança. Mas qual é a linha vermelha? O argumento ‘segurança’ justifica tudo?”

“Esta terra foi roubada pelos árabes a seguir ao massacre de 67 judeus de Hebron em 1929”, denuncia a comunidade judaica num cartaz junto a uma torre de vigia israelita MARGARIDA MOTA

Hebron dista 30 quilómetros de Jerusalém, a cidade santa disputada por israelitas e palestinianos para sua capital. Aqui, outra ONG israelita, Ir Amim (Cidade de Nações), dedica-se ao levantamento de ‘factos no terreno’ que possam afetar a estabilidade da cidade, como a expansão de colonatos, o traçado do muro que separa Israel dos territórios palestinianos, a anexação de terras e a destruição de casas árabes.

Para irem à rua, algumas famílias palestinianas têm de subir ao telhado das suas casas e saírem pelas casas dos vizinhos

Betty Herschman é a guia numa volta por Jerusalém Oriental, anexada por Israel em 1967, facto nunca reconhecido internacionalmente. Esta israelita distribui um mapa da “Grande Jerusalém”, onde três linhas serpenteiam ao estilo de uma imagem a três dimensões: a linha verde corresponde à fronteira de 1967 (reconhecida internacionalmente); a vermelha ao chamado muro da Cisjordânia; a azul delimita áreas de construção, para lá da linha verde, planeadas por Telavive ou já em desenvolvimento.

A antiga estação de camionagem é hoje um colonato. A antiga entrada é agora as traseiras MARGARIDA MOTA

Num monte alto a sul de Jerusalém, na direção da cidade palestiniana de Belém, Betty identifica, no horizonte, o colonato de Har Homa, onde vivem 13 mil pessoas. À vista desarmada, parece uma pequena cidade, cuidadosamente desenhada, tal é a simetria das construções. Olhando-se para o mapa, percebe-se a razão que leva Betty a apontá-lo: quanto mais ele cresce, mais isoladas ficam as aldeias palestinianas em redor.

Ali próximo, também o colonato de Givat Hamatos se expande. “Estão previstos vários hotéis. Vão arruinar o turismo em Belém”, diz Betty. Mais ao lado, Gilo também cresce. “O Governo aprovou 1800 novas casas. E em Beit Safafa, a área palestiniana que fica entre Gilo e Givat Hamatos, os bulldozers já arrasaram uma zona para ser construída uma autoestrada com seis vias… sem necessidade.”

Impostos pagos a horas

Para a israelita, a dinâmica da colonização no perímetro sul de Jerusalém é “o prego no caixão da solução de dois Estados”. A mancha de povoações israelitas entre as cidades palestinianas de Ramallah (no centro) e Belém (no sul), dividirá a Cisjordânia em dois. A Palestina passará a ser uma manta de três retalhos, com Gaza ao longe.

Placas de betão impedem o acesso dos palestinianos a algumas ruas MARGARIDA MOTA

Em Jerusalém Oriental, vivem 350 mil árabes (um terço da população) que Israel trata como imigrantes, sem direito a voto, nem passaporte. Apenas 8 a 10% do orçamento municipal destina-se aos bairros árabes. Telavive tenta manter um rácio de 70% de judeus e 30% de árabes e, para tal, recorre a subterfúgios administrativos. Se um árabe de Jerusalém for estudar para o estrangeiro, por exemplo, pode perder a licença de residência quando regressar. “Nos bairros árabes, os impostos municipais são pagos religiosamente”, diz Betty. “As pessoas têm medo de ficar sem autorização de residência.”

Há um mês, um tribunal israelita decretou que a casa de Motasem Farrah, no bairro árabe de Beit Hanina, era ilegal e ordenou-lhe que a destruísse. Farrah pegou numa marreta e assim fez. Caso contrário, viriam as retroescavadoras municipais e teria de arcar com os pesados custos do serviço. Ou poderia ser preso. “Agora imaginemos a cena”, diz Betty: “Uma criança chega da escola e vê o pai e a mãe a destruir a casa…”.

NÚMEROS

91% das queixas apresentadas por palestinianos após serem atacados por colonos são arquivadas. Segundo a ONG israelita Yesh Din, os processos morrem por “falta de provas” ou “agressor desconhecido”

156 casas palestinianas foram demolidas por Israel este ano. A contabilidade é feita pelo Comité Israelita Contra as Demolições de Casas (ICAHD). Israel fá-lo em Jerusalém para manter a maioria de judeus

10 novos colonatos foram legalizados durante o último Governo de Benjamin Netanyahu (2009-2013). Segundo a ONG israelita Peace Now, quase 40% das novas construções iniciadas por Netanyahu situam-se a leste do muro de separação. Mais de meio milhão de colonos vivem na Cisjordânia e arredores de Jerusalém

66 pontos de passagem existem no muro entre Israel e a Cisjordânia. A maioria só abre na época da colheita da azeitona. A Machsom Watch, um movimento de mulheres israelitas, organiza visitas a checkpoints para observar a forma como os soldados tratam os palestinianos

2011 foi o ano em que o Parlamento de Israel aprovou uma lei que criminaliza apelos públicos ao boicote a produtos israelitas. A 12 de junho, a organização pacifista israelita Gush Shalom recorreu ao Supremo Tribunal no sentido de continuar a publicar uma lista de produtos a boicotar, por serem oriundos de colonatos. O Tribunal deu 60 dias ao Estado para responder, o que ainda não aconteceu

O Expresso viajou a convite do representante da UE na Cisjordânia e Gaza

Artigo publicado na Revista do Expresso, a 4 de maiol de 2013

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