Alepo. Uma cidade-ruína dividida e bombardeada diariamente. Jihadistas andam de BMW e a comida e a água valem ouro

A possibilidade de um ataque dos Estados Unidos à Síria tirou as imagens da guerra dos ecrãs, como se uma trégua tivesse entrado em vigor enquanto Barack Obama decidia o que fazer. Porém, na Síria, as bombas nunca deixaram de cair.
“Todos os dias ouço mais de dez bombas. Durante a noite, os caças do regime rondam, intimidando as populações. Nunca se sabe qual vai ser o próximo alvo”, relata ao Expresso Gabriel Chaim, fotógrafo brasileiro de 31 anos, em Alepo, maior cidade síria, disputada há meses entre guerrilha e exército.
Várias vezes, Gabriel dormiu com roupa e botas, preparado para fugir do quarto. “Quando a noite cai, sei que vai ser longa. O barulho das bombas faz tremer as paredes. Parece que entra no corpo.” À noite, os motoristas guiam de faróis apagados para não se tornarem alvos.
A maior parte da cidade está nas mãos de Assad, cujo poder aéreo — que os rebeldes não têm — faz toda a diferença. Gabriel circula pelo lado controlado pelos rebeldes. “Alepo está toda destruída. Há muitas pessoas armadas, misturadas com a população.”
Durante o dia, vive-se uma aparente normalidade. “Os mercados abrem e muita gente aproveita para fazer as compras básicas. Por vezes, eu estou em mercados e, ao fundo, ouço barulhos de bombas. Ninguém se preocupa muito. Talvez a cidade já esteja habituada a tantas bombas e mortes. Passou a ser rotina.” Não há falta de alimentos nos mercados. Mas por causa da guerra, a libra síria desvalorizou muito. “Tudo está mais caro, às vezes 700%.” A eletricidade falha muitas vezes ao dia e o preço da água aumentou muito. Gabriel só tomou o primeiro banho ao terceiro dia em solo sírio. A internet é melhor após a meia-noite, contrabandeada desde a Turquia.
Gabriel entrou no país no passado dia 4, dentro de uma ambulância. Na Síria, acompanhara os trabalhos de uma ONG síria que distribui bens de primeira necessidade às populações, gere abrigos e apoia o funcionamento de escolas. O brasileiro visitou cinco escolas improvisadas em subterrâneos de casas. No caso de caírem novas bombas, professores e alunos estão mais seguros abaixo da terra. As verdadeiras escolas foram bombardeadas ou abandonadas.
Professores pagos com comida
“Os professores recebem apenas comida como forma de pagamento. Comida básica que, dizem, não é suficiente”, conta Gabriel, que nos primeiros dias comia apenas feijão enlatado e pão. “Com a guerra, a comida tornou-se um luxo. Muitos professores já foram embora. É difícil encontrar pessoas que aceitem dar aulas em troca de comida básica e arriscando a própria vida. Algumas organizações estrangeiras, sobretudo italianas, começaram a ajudar. Alguns professores recebem 20 euros…”
Além dos dois milhões de refugiados registados pelas Nações Unidas — sírios que atravessaram a fronteira para fugir à guerra —, a Síria vive um drama humano ainda maior dentro de portas: a guerra já fez cerca de 4,5 milhões de deslocados internos.
Gabriel Chaim anda sempre acompanhado por três seguranças do Exército Livre da Síria (ELS), o principal grupo rebelde. A presença de grupos jihadistas, com ligações à Al-Qaeda, salta à vista, mas além do ódio a Bashar al-Assad as duas fações pouco têm em comum. “Andam nas mesmas ruas, mas não lutam juntos. OELS não gosta da Al-Qaeda, considera-a um grupo radical. Porém, lutam para derrubar o poder e respeitam-se, como irmãos de armas.” Em Alepo, há também jihadistas da República Islâmica do Iraque.
Gabriel visitou o quartel-general da Al-Qaeda, um antigo palácio de cinco andares, protegido por barricadas e muito movimentado, cheio de gente armada. “A Síria tornou-seumreduto da Al-Qaeda”, diz. “Andam em carros importados, BMW e outros carros caros, geralmente pretos, diferentes de tudo o resto. Os carros do ELS são velhos.”
Se Obama atacar, Assad ataca
Entre os combatentes do ELS há mecânicos, padeiros, cidadãos comuns que, de um dia para o outro, pegaram em armas para lutar contra o regime. Gabriel diz que estes rebeldes não querem a Al-Qaeda na Síria, nem desejam uma intervenção militar norte-americana. “Dão sempre o exemplo da invasão do Iraque. Dizem que os Estados Unidos vão entrar, devastar tudo e, depois de acabar com a Síria, vão embora.”
Por outro lado, receiam que Assad use as armas químicas como retaliação por um ataque dos EUA. “Todos falam nisso, demonstrando certeza que é o que vai acontecer. Mal os EUA lancem a primeira bomba, Assad lança uma ofensiva com mísseis Scud com ogivas químicas. Eles dizem que o regime tem 500 e que já usou cerca de 100.”
Oriundo de São Paulo, este filho de libaneses elegeu como “prioridade” das suas viagens pelo mundo o contacto com populações refugiadas — o que já aconteceu na Jordânia, Irão, Iraque, Faixa de Gaza e Turquia. Gabriel tem um projeto chamado “Kitchen4Life” que combina a paixão pela fotografia (que estudou em Itália), pela gastronomia (que estudou no Brasil) — fez uma especialização em Fotografia de Comida no Dubai — e a solidariedade para com as vítimas de conflitos e da intolerância. “Não vim para cá para fotografar a morte. Vim fotografar a vida, para tentar sensibilizar o mundo para as consequências da guerra.”
Faz hoje uma semana, Gabriel viveu algo que jamais esquecerá. “Fui até um hospital perto da frente de batalha. A maioria dos doentes eram combatentes. Entrevistei um médico e depois fomos fumar um cigarro, fora do hospital. Subitamente, um caça começou a disparar a menos de um quilómetro. Assustámo-nos e fugimos para dentro. Dez minutos depois, começaram a chegar os feridos, rebeldes do ELS. Sem recursos, o médico estava desesperado, tentando salvar aquelas vidas. Nenhum sobreviveu. Após morrer o último, uma enfermeira, numa sala ao lado, chamou-me. Queria mostrar-me algo. Um bebé acabava de nascer…”

QUEM SÃO OS JIHADISTAS?
Domenico Quirico, jornalista italiano, esteve cinco meses refém de grupos jihadistas na Síria. Libertado há uma semana, descreve “o surgimento de gangues, como na Somália, que se aproveitam do Islão e do contexto revolucionário para controlar partes do território, saquear, raptar pessoas e encher os bolsos”. Um dos grupos era liderado pelo emir Abu Omar, que disfarçava tráficos e atividades ilícitas com uma aura islamita. “Essa fação faz parte do Conselho Nacional Sírio (oposição reconhecida pelo Ocidente) e os seus representantes reúnem-se com governos europeus.” Quirico foi mais bem tratado enquanto esteve cativo da Frente Al-Nusra, o maior grupo jihadista. “Davam-me da comida deles. Levam uma vida simples. São radicais, islamitas fanáticos que querem tornar a Síria um Estado islâmico e transformar o Médio Oriente, mas face aos inimigos — nós, cristãos ocidentais — sentem honra e respeito.” Muitos carcereiros eram “jovens desequilibrados que aderiram à revolução por esta ter passado a ser feita por grupos, a meio caminho entre o banditismo e o fanatismo”. Jovens que seguem quem lhes dá armas e dinheiro, vestem Adidas e fumam Malboro. “Eu, que não fumo nem bebo, tinha um ar mais islâmico do que a maior parte deles.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 14 de setembro de 2013

