Vitória grande, prisões cheias

Abdel Fattah el-Sisi venceu as presidenciais de forma esmagadora. O povo quer estabilidade e prosperidade económica

ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF

Uma vitória eleitoral superior a 90% leva qualquer democrata a franzir o sobrolho. O resultado oficioso das presidenciais no Egito revelou que o ex-chefe das Forças Armadas Abdel Fattah el-Sisi terá um resultado desse calibre — o oficial será conhecido até 5 de junho. Em declarações ao Expresso, o eurodeputado Mário David, chefe da missão de observadores da União Europeia, afastou desconfianças: “Formalmente, o ato eleitoral correu extremamente bem. A votação foi transparente. Os observadores visitaram mais de 1600 assembleias de voto e não presenciaram qualquer fraude. Mas sabemos em que circunstâncias as eleições ocorreram, com muitos dirigentes da Irmandade Muçulmana presos”.

O português fala de um ambiente eleitoral sereno. Os 150 observadores foram a 26 das 27 províncias (faltou o norte do Sinai, por razões de segurança) e “não testemunharam um único incidente”. E refere que a sociedade está dividida, intolerante e em grande tensão. “O ambiente era de apertado controlo sobre o direito de reunião. As liberdades de imprensa e de expressão estavam, muitas vezes, autocensuradas.”

Ao calor para votar

Planeada para durar dois dias, a votação foi prolongada 24 horas (terminou quarta-feira) para dar tempo aos eleitores para se dirigirem às assembleias onde estavam registados e também por causa do calor. Terça-feira, no Cairo, o termómetro subiu aos 47 graus. Alguma imprensa justificou a decisão com a fraca afluência às urnas — mais baixa do que nas eleições de 2012, ganhas por Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, afastado por um golpe liderado por El-Sisi.

A taxa de participação fixou-se nos 47,3% (mais 0,9% do que em 2012). Samir Hany, 24 anos, que vive no Cairo, votou em El-Sisi com convicção. “Teve um desempenho histórico num momento crítico”, diz ao Expresso. “Tomou a decisão de depor Morsi apoiado por milhares de egípcios que saíram à rua a 30 de julho de 2012. O seu programa vai ajudar os egípcios a prosperar e vai fazer reformas no Estado porque pertenceu a uma instituição poderosa (militar). Gosto da sua honestidade. E por ter carisma tem grande popularidade em todo o mundo árabe.”

Mário David encontrou-se com El-Sisi e com Hamdeen Sabahi, o outro candidato. “Sou presidente da delegação do Parlamento Europeu para as relações com o Egito e ambos demonstraram muito interesse em relação à possibilidade de auxílio financeiro.” A importância geoestratégica do Egito é enorme, mas o país não tem riquezas naturais para suprir as necessidades de 94 milhões de habitantes (e de uma explosão demográfica de 2,4 milhões de pessoas ao ano). E as pirâmides estão sem turistas.

Artigo publicado no Expresso, a 31 de maio de 2014

Os recados políticos da viagem papal

O Papa Francisco convidou palestinianos e israelitas para reunião no Vaticano

Papa Francisco, num momento de oração junto ao Muro das Lamentações, a 26 de maio de 2014 POLÍCIA DE ISRAEL / WIKIMEDIA COMMONS

Berço das três religiões monoteístas, a Terra Santa assemelha-se politicamente a um campo de minas. A visita de três dias do Papa Francisco, que terminou segunda-feira, é disso uma prova, com muitos gestos do chefe da Igreja Católica a merecerem interpretações políticas. “O Papa chegou à Palestina vindo da Jordânia e não de Israel… Isto é uma mensagem”, diz ao Expresso Hikmat Ajjuri, embaixador da Palestina em Portugal.

“Outra foi a sua paragem e oração junto ao muro de anexação, ilegal e racista. Em 2002, o Papa João Paulo II, que criticou este muro construído em terras roubadas aos palestinianos e que separa agricultores dos seus campos e impede palestinianos de chegarem ao trabalho e às escolas, disse: ‘A paz na Terra Santa precisa de pontes, não de muros’. Ao ver o Papa Francisco a rezar ali, estou certo que ele pediu a Deus a demolição daquele muro.”

Cimeira no Vaticano

Recebido pelo Presidente palestiniano Mahmud Abbas em Belém — onde o Papa se referiu ao “Estado da Palestina” — e em Jerusalém pelo primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu — a quem corrigiu as palavras dizendo que Jesus falava aramaico e não hebraico como ‘Bibi’ defendeu —, Francisco não se limitou ao papel de observador e convidou os Presidentes israelita e palestiniano para um encontro no Vaticano.

“Ele disse que não quer atuar como mediador”, continuou o embaixador. “Mas talvez com a sua bênção esse encontro possa ajudar a derreter este gelo entre israelitas e palestinianos.”

A cimeira entre Mahmud Abbas e Shimon Peres no Vaticano está previsto para 6 de junho. Antes disso, deverá ser anunciado o tão aguardado governo palestiniano de união nacional, que confirmará a reconciliação entre a moderada Fatah e o islamita Hamas, desavindos há sete anos — a Fatah controla a Cisjordânia e o Hamas a Faixa de Gaza.

“Ambos acordaram que o Governo será liderado pelo atual primeiro-ministro (Rami Hamdallah). Os restantes ministros serão tecnocratas e nenhum deles será membro da Fatah, do Hamas ou de qualquer outra fação”, diz o diplomata.

Segundo o acordo de reconciliação selado a 23 de abril, em Gaza, seguir-se-ão eleições gerais — o mandato do Presidente palestiniano, por exemplo, expirou em janeiro de 2010 e para evitar um vazio de poder, um mês antes, a Organização de Libertação da Palestina (OLP) determinou a sua extensão por tempo indeterminado até ser possível realizar eleições.

Precisamente esta semana, na quarta-feira, a OLP assinalou o seu 50º aniversário. A organização desapareceu das notícias, mas é, na realidade, a entidade política reconhecida internacionalmente como único e legítimo representante de todos os palestinianos. “A OLP foi formada para transformar aquilo que se preparava para ser apenas um problema de refugiados palestinianos (que surgiu na sequência da criação de Israel, em 1948) numa questão política relativa às aspirações dos palestinianos de estabelecerem o seu próprio Estado independente e soberano nas terras da Palestina histórica”, ou seja, nos atuais territórios da Palestina e de Israel.

Desespero palestiniano

Foi a OLP que, em 1993, assinou com Israel os Acordos de Oslo, que criaram a Autoridade Palestiniana (AP), a instituição que detém o poder executivo. “A AP é um filho da OLP. Foi criada para atender aos palestinianos que vivem no interior da Palestina (Cisjordânia e Faixa de Gaza). Mas a OLP atende a todos os palestinianos, onde quer que se encontrem (incluindo os refugiados).” Dos cerca de 11 milhões de palestinianos em todo o mundo, metade vive entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo (incluindo 20% da população de Israel, que é árabe).

Hikmat Ajjuri recorda que 2014 é o Ano Internacional da Solidariedade com o Povo Palestiniano. Porém, a solução de dois Estados está cada vez mais distante. “Israel está a empurrar os palestinianos para o desespero, e mesmo para a violência e para tudo o que sirva para a mentalidade sionista provar que os palestinianos não merecem ter um Estado.”

Artigo publicado no Expresso, a 31 de maio de 2014

ONU quer drones a proteger as suas missões

Em 2013, morreram 106 capacetes azuis. As Nações Unidas querem investir em aparelhos não tripulados para proteger o seu ‘staff’

Em média, morre um ‘capacete azul’ a cada 30 dias, alertam as Nações Unidas. Os soldados da paz estão no terreno desde 1948, mas segundo Hervé Ladsous, chefe do Departamento de Operações de Manutenção de Paz da ONU, é urgente que a organização atualize a tecnologia ao serviço das suas missões.

O francês apela mesmo ao investimento em drones (aviões não tripulados) para reduzir riscos e proteger as equipas no terreno. “Precisamos deles em países como o Mali, a República Centro-Africana e, claramente, o Sudão do Sul”, disse na quinta-feira, durante a cerimónia de atribuição da Medalha Dag Hammarskjöld – o secretário-geral da ONU morto em funções, num acidente de viação suspeito na então Rodésia do Norte (atual Zâmbia), em 1961 – dada a título póstumo a trabalhadores mortos em missões da ONU. 

“Em pleno século XXI, não podemos continuar a trabalhar com ferramentas do século XX”, acrescentou Hervé Ladsous, recordando que “nalguns casos, o uso de tecnologia pode ser necessário para não termos tantos militares no terreno”, disse em Nova Iorque.

Em missão e em risco

A ONU tem usado drones na República Democrática do Congo. Os aparelhos são considerados vitais para monitorizar as movimentações de grupos armados e proteger populações vulneráveis, o que já aconteceu com 90 mil civis no conflito no Sudão do Sul.

Desde 1948, mais de um milhão de pessoas já serviram em mais de 70 operações em quatro continentes. Mais de 3200 morreram, incluindo 106 no ano passado (e também 22 civis), a maioria em África e particularmente no Darfur e no Sudão do Sul.

Atualmente, mais de 116 mil capacetes azuis, oriundos de 120 países, servem em 16 operações de manutenção da paz espalhadas por todo o mundo, “com grandes riscos pessoais”, afirma o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon.

As Nações Unidas instituíram o dia 29 de maio como Dia Internacional das Forças de Manutenção da Paz da ONU.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de maio de 2014. Pode ser consultado aqui

Egito prolonga votação presidencial por mais um dia

Os egípcios tiveram esta quarta-feira um dia extra para votar nas presidenciais. Nos dois dias inicialmente previstos, a taxa de afluência foi baixa

A fraca adesão às urnas nos dois dias estabelecidos para as eleições presidenciais levou as autoridades egípcias a decretarem mais um dia de votação, que se cumpre esta quarta-feira.

No fim da dupla jornada, a taxa de afluência às urnas rondava os 37%, bastante abaixo dos 52% das últimas presidenciais, em 2012, que foram boicotadas por várias fações políticas e que elegeram o candidato da Irmandade Muçulmana Mohamed Morsi, afastado no ano passado por um golpe militar. 

staff das campanhas dos dois candidatos — o ex-chefe das Forças Armadas Abdel-Fattah El-Sisi e o político de esquerda Hamdeen Sabahi — multiplicaram-se nos apelos ao voto, mas ambos criticaram a extensão do período de votação por mais um dia e apresentaram queixas na Comissão Eleitoral.  

Segundo o site noticioso egípcio Aswat Masriya, Sabahi retirou mesmo todos os seus delegados das mesas de voto. 

Criticada por não permitir que os eleitores votem em assembleias de voto que não aquela onde se registaram, a Comissão Eleitoral anunciou que irá acionar o artigo 47 da lei eleitoral e aplicar multas no valor de 500 libras egípcias (cerca de 50 euros) aos eleitores que não exerçam o voto e não apresentem uma justificação para essa ausência.

Esta quarta-feira está a ser dia normal de trabalho, mas na véspera fora decretado um feriado para facilitar e encorajar a ida às urnas. 

Jornada tranquila… relativamente 

Mais de três anos após a revolução da Praça Tahrir, a transição no Egito tarda em criar instituições políticas estáveis e, nas ruas, o clima continua a ser de insegurança.

No primeiro dia de votação registaram-se confrontos isolados entre forças de segurança e apoiantes da Irmandade Muçulmana e de Mohamed Morsi — o Presidente democraticamente eleito e deposto por golpe militar — para quem este ato eleitoral é ilegítimo. Segundo a publicação egípcia Ahram Online, a polícia dispersou protestos no Cairo, Alexandria e Minya.  

Porém, as eleições têm decorrido de forma mais tranquila, e menos sangrenta, comparativamente a sufrágios anteriores. No primeiro dia, registou-se uma explosão junto a uma assembleia de voto na cidade de Fayoum, a 130 km a sudoeste do Cairo, que não provocou quaisquer feridos. Terça-feira, uma outra explosão na Praça Roxy, na área cairota de Heliopolis, feriu uma pessoa.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de maio de 2014. Pode ser consultado aqui

FARC, 50 anos de vida e de luta

A maior guerrilha colombiana celebra hoje 50 anos. No país, as FARC decretaram um cessar-fogo, enquanto na capital cubana negoceiam a paz com o Governo

Aos 50 anos de vida, a guerrilha mais antiga da América Latina acusa o peso da idade. As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) assinalam esta terça-feira meio século de atividade, cumprindo um cessar-fogo unilateral, decretado a 20 de maio para vigorar durante as eleições presidenciais. O escrutínio realizou-se no domingo e o seu resultado é revelador do desgaste do povo colombiano relativamente às ações da guerrilha.

Juan Manuel Santos, o Presidente em funções, que tem promovido “negociações de paz” com as FARC desde finais de 2012, não foi além do segundo lugar com 25,6% dos votos. As eleições foram ganhas pelo candidato conservador do Centro Democrático, Óscar Iván Zuluaga (29,2%), um firme opositor a esse diálogo que ganhou popularidade ao defender uma política de tolerância zero para com as FARC. Zuluaga prometeu mesmo suspender as conversações até que a guerrilha “termine todas as atividades criminosas”.

A segunda volta das presidenciais está marcada para 15 de junho. A trégua das FARC termina amanhã.Não é a primeira vez que os guerrilheiros pousam as armas. Durante as conversações em curso com o Governo já o fizeram por três vezes, mas este cessar-fogo unilateral foi o primeiro decretado conjuntamente com o outro grupo rebelde colombiano, o Exército de Libertação Nacional (ELN).

Cessar-fogo inédito 

Em entrevista à agência Efe, o chefe do gabinete das Nações Unidas na Colômbia, Fabrizio Hochschild, considerou a trégua conjunta “um sinal do fim do conflito armado e uma esperança de futuro”.

Porém, a confiança mútua escasseia entre as partes… Numa mensagem comemorativa do 50º aniversário das FARC, o seu líder, Rodrigo Londoño Echeverri, conhecido como “Timochenko”, afirmou: “Sabemos bem que a única coisa que a oligarquia espera de nós é uma entrega humilhante, mas na mesa somos duas partes e as nossas aspirações são totalmente diferentes”.

As conversações entre Governo e guerrilha decorrem na capital cubana. “Não fomos para Havana por nos considerarmos vencidos, nem por temer a extinção com a qual pretendem amedrontar-nos todos os dias. Estamos ali porque entendemos que nada está definido na luta de classes e interesses na nossa pátria”, afirmou o líder das FARC.

O Governo colombiano, por seu lado, anunciou que, apesar da trégua, manterá as operações militares. “Não vamos deixar de persegui-los simplesmente porque fazem o favor de deixar de cometer um dos seus tantos crimes”, afirmou o ministro da Defesa, Juan Carlos Pinzón. “Cada vez que adotamos tréguas bilaterais, isso significa um fortalecimento dos grupos armados. Quando renunciarem às armas, iremos parar de persegui-los, com muito gosto.”

Coca e sequestros são lucro

As FARC nasceram a 27 de maio de 1964 na região de Tolima (região andina da Colômbia) para defender a República de Marquetalia, um pequeno território autónomo, habitado por agricultores comunistas, que o exército pretendia controlar. Entre os que, então, pegaram em armas para defender a comunidade estava Manuel Marulanda, fundador e comandante carismático das FARC. Conhecido como Tirofijo (“tiro certeiro”), dada a precisão dos seus disparos, morreu em 2008. Segundo as FARC, de ataque cardíaco.

Marxistas-leninistas, bolivarianas e anti-imperialistas, as FARC mantêm, 50 anos depois, as reivindicações de sempre: combater a oligarquia burguesa que controla o Estado e liderar uma revolução social no país em defesa dos mais desfavorecidos.

Têm como fontes de financiamento os sequestros, a extração mineira ilegal e a produção e tráfico de drogas. A 17 de maio último, em Havana, a guerrilha comprometeu-se a cooperar com o Governo no sentido de convencer os agricultores a cultivarem colheitas alternativas à coca. Até 2013, a Colômbia liderou a produção mundial de cocaína, hoje é o Peru.

As FARC continuam a controlar grandes áreas rurais do país. Estima-se que o número de combatentes não supere os 20 mil homens e mulheres (há fontes que apontam para menos de metade) e que a guerra civil já tenha morto 200 mil pessoas.

IMAGEM Bandeira das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de maio de 2014. Pode ser consultado aqui